Pietro Benedetti Teixeira Webber**
“Nas Lêis, mais convém a simplicidade, nunca a dificuldade. […]
Simplicidade, isto é, clarêza nas palavras, lucidêz na ordem”[1].
No Anteprojeto de Código Civil apresentado ao Senado Federal, foi proposta a inclusão do art. 421-C, § 1º, inc. IV, atinente à cláusula de não concorrência. Retomo o exame do tema, já abordado no Volume XXX do Boletim IDiP-IEC[2], para expor as razões pelas quais entendo tratar-se de proposta que, além de contrariar a justificativa apresentada pela própria Comissão de Juristas[3], é desnecessária e pode gerar impactos nocivos ao Direito Privado.
Inicie-se pela leitura do texto proposto:
“Art. 421-C. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos, se não houver elementos concretos que justifiquem o afastamento desta presunção, e assim interpretam-se pelas regras deste Código, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais.
- 1º Para sua interpretação, os contratos empresariais exigem os seguintes parâmetros adicionais de consideração e análise: […]
IV – são lícitas em geral as cláusulas de não concorrência pós-contratual, desde que não violem a ordem econômica e sejam coerentemente limitadas no espaço e no tempo, por razoáveis e fundadas cláusulas contratuais” (Destacou-se).
Advêm dessa redação pelo menos seis questionamentos principais:
(i) Regra de licitude. É um truísmo afirmar que, no Direito Privado, tudo o que não for vedado por lei é permitido[4]. Por isso, surpreende a proposta de afirmar a licitude, “em geral”, de cláusulas de não concorrência. A principal questão sobre a qual doutrina e jurisprudência se debruçam diz respeito aos requisitos de validade dessas convenções[5], e não sobre a possibilidade de sua pactuação. A licitude, prima facie, de cláusulas de não concorrência é indiscutida[6].
Essa proposta, porém, não é mero truísmo. Embora se afirme o propósito de valorizar o exercício da autonomia privada, promovendo “segurança jurídica para a formalização jurídica da vontade dos cidadãos e dos agentes de mercado”[7], a redação conferida ao art. 421-C, § 1º, inc. IV aponta ao sentido oposto. Ao afirmar abstratamente a licitude, a Lei passaria a restringir o campo de atuação da liberdade na conformação da declaração negocial. A proposta é inovadora ao indicar, por exclusão, hipóteses de ilicitude na pactuação de cláusulas de não concorrência – isto é, quando não houver “limitação coerente” no espaço e no tempo, por “razoáveis e fundadas cláusulas contratuais”.
(ii) Abrangência da regra. O art. 421-C, § 1º compõe o regime dos “contratos empresariais”, o qual pretende ser, nas palavras da Comissão de Juristas, “mais livre e menos intervencionista”[8]. Nessa perspectiva, os equívocos metodológico e sistemático do Anteprojeto[9] ficam ainda mais evidentes.
Se o Anteprojeto apenas afirma a licitude das cláusulas de não concorrência pactuadas em contratos empresariais, essa regra incidiria a quaisquer contratos, ou apenas nos empresariais? A contrario sensu, seriam ilícitas as cláusulas insertas em contratos “civis”, nos quais são igualmente relevantes? E se essas obrigações forem pactuadas em contratos empresariais celebrados sob “flagrante disparidade econômica entre as partes”, os quais não se submetem às regras do art. 421-C, nos termos do seu § 2º[10]? Mesmo que sejam consideradas lícitas, as cláusulas estariam sujeitas aos mesmos requisitos de validade incidentes ao regime dedicado aos contratos empresariais? A proposta acumula dúvidas e mais dúvidas.
(iii) “Parâmetro adicional” de interpretação? O § 1º do art. 421-C indica que os seus incisos contêm “parâmetros adicionais de consideração e análise” à atividade de interpretação de contratos empresariais. Como já se afirmou, os incisos do art. 421-C, § 1º configuram um “aglomerado de regras que não apresentam coesão temática”[11]. Nesse aglomerado, insere-se a afirmação abstrata da licitude de cláusulas de não concorrência e a alusão a requisitos de validade. É de difícil compreensão como essa regra, concernente à validade do negócio jurídico, possa contribuir à hermenêutica contratual.
(iv) Objeto da cláusula. O art. 421-C, § 1º, inc. IV reputa lícitas as “cláusulas de não concorrência pós-contratual”. Ao especificar o período em que a obrigação de não fazer pode projetar a sua eficácia, estaria o legislador impedindo a celebração de cláusula de não concorrência atinente a período concomitante à execução contratual? Cogite-se de joint venture cujos contratantes se comprometem a não concorrer com a atividade conjuntamente desenvolvida; ou de cláusula de raio celebrada em contrato de locação em shopping centers; ou, então, do período interino em contratos de M&A, nos quais a obrigação de não concorrer pode exercer papel fundamental. Essas cláusulas se tornariam ilícitas? Ou ineficazes temporalmente, só passando a projetar efeitos no final das relações?
As respostas parecem evidentemente negativas. São inúmeras as conformações que a autonomia privada pode atribuir às cláusulas de não concorrência, não havendo razão para gerar dúvidas quando voltadas a período concomitante à execução do negócio ao qual seja acessória, restringindo-se textualmente a sua licitude ao momento “pós-contratual”.
(v) Limitação coerente. O Anteprojeto também exige que as cláusulas de não concorrência “sejam coerentemente limitadas no espaço e no tempo”. Quais são os parâmetros para compreender se determinada restrição ao exercício de atividade concorrente é, ou não, coerente? A pretendida coerência deve ponderar conjuntamente os critérios espacial e o temporal? Concretamente, poderia ser convencionada a obrigação de não concorrer por dez anos, desde que restrita a um endereço específico? Ou, então, poderia ser ajustada restrição espacial a toda a América Latina, por apenas um ano?
Seriam os requisitos espacial e temporal os únicos incidentes à cláusula de não concorrência? Outros requisitos de validade, usualmente utilizados para examinar as cláusulas de não concorrência[12], passam a ser anódinos?
A dificuldade em compreender a “limitação coerente” ainda é agravada por outra modificação proposta pelo Anteprojeto. Ao tratar do contrato de trespasse, o art. 1.147 do Código vigente estipula, em regra legal supletiva, o prazo de cinco anos durante os quais o alienante do estabelecimento não pode concorrer com o adquirente. Essa regra vem sendo utilizada, em interpretação analógica, para a limitação da eficácia da cláusula de não concorrência ao prazo de cinco anos[13].
Todavia, o Anteprojeto também propõe eliminar essa regra supletiva, passando a permitir que o alienante concorra diretamente com o estabelecimento alienado, “salvo solução diversa pactuada por escrito entre as partes, quanto ao tempo e ao espaço de não-concorrência”[14]. Além de se poder criticar a conveniência dessa proposta[15], a modificação do art. 1.147 impacta diretamente o exame das cláusulas de não concorrência. Com a supressão do prazo de cinco anos, até então adotado como referência, quais poderão ser os critérios aplicados para a compreensão dos limites temporais coerentes à obrigação de não concorrer?
É possível antever que o art. 421-C, § 1º, inc. IV atribuirá maior relevância à atividade do julgador, que precisará determinar casuisticamente se o conteúdo da obrigação foi, ou não, limitado “coerentemente”. O Anteprojeto não permite identificar quais os requisitos para se concretizar a coerência.
(vi) Cláusulas “razoáveis e fundadas”. Como se a exigência de coerência não bastasse, o Anteprojeto – pródigo em adjetivos e advérbios – ainda propõe que as restrições à livre-concorrência devam ser pactuadas em “razoáveis e fundadas cláusulas contratuais”. Agregam-se, assim, conceitos indeterminados ao enunciado normativo. Além das dificuldades inerentes à aplicação do postulado normativo da razoabilidade, como se deve compreender uma cláusula contratual “fundada”? Seria ilícita uma limitação à livre-concorrência que, apesar de coerente, tenha sido estabelecida por cláusula reputada “irrazoável” ou “infundada”? Como interagem esses diversos parâmetros?
* * *
As perguntas superam as respostas. Sob o pretexto de valorizar a autonomia privada, e afirmando atender a “juízos de prudência e cautela”, o Anteprojeto propõe enunciados normativos cujos escopos são incertos. Por um lado, a proposta não alude aos demais requisitos de validade já utilizados para o exame de cláusulas de não concorrência. Por outro, estabelece requisitos repletos de conceitos indeterminados, cuja concreção é dificultada pelo próprio Anteprojeto.
O alerta de Teixeira de Freitas referido na epígrafe desse texto não poderia ser mais apropriado. Na tentativa de afirmar abstratamente a incontroversa licitude da cláusula de não concorrência, o Anteprojeto propõe regras de difícil compreensão. Falta clareza nas palavras. Falta lucidez na ordem. Há lacunas de regulação. É, contudo, evidente o seu pernicioso resultado: a validade de cláusulas de não concorrência passará a ser questionada mais intensamente, tumultuando os tribunais e impactando a segurança jurídica.
** Advogado. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (UFRGS), Especialista em Arbitragem (OAB) e Mestrando em Direito Civil (USP). Sócio de Judith Martins-Costa Advogados. É Assessor da Diretoria do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) e Secretário-Geral da Presidência do Instituto de Estudos Culturalistas (IEC).
[1] TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Regras de Dirêito. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1882, p. 602.
[2] BENETTI, Giovana. A Cláusula de Não Concorrência na Reforma do Código Civil. In: MARTINS-COSTA, Judith; MARTINS, Fábio; CRAVEIRO, Mariana; XAVIER, Rafael (Orgs.). Boletim IDiP-IEC. Vol. XXX, Canela-São Paulo, Publicado em 28.08.2024. Disponível em: <https://canalarbitragem.com.br/boletim-idip-iec/xxx-a-clausula/>.
[3] “Cuidou-se de seguir a tradição do Direito Civil, em prestigiar os institutos milenarmente amadurecidos, sem, porém, fechar as portas para novos arranjos e comportamentos contratuais da sociedade. […] A autonomia privada é prestigiada como um dos faróis do Direito Contratual, por espelhar o direito dos cidadãos em se autodeterminarem. […] Em suma, os trabalhos da Comissão de Atualização do Código Civil foram baseados em juízos de prudência e cautela, em um espírito de continuidade das produções jurisprudenciais e doutrinárias que vêm acudindo os novos reclamos sociais. A sociedade e o mercado encontrarão, na Reforma do Livro de Contratos, mais segurança jurídica para a formalização jurídica da vontade dos cidadãos e dos agentes de mercado, em total sintonia com os primados do Estado de Direito” (Relatório Final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, 2024, p. 285-288).
[4] “Concessum dicitur quidquid expresse prohibitum non reperitur”, como registra RODRIGUES, Dirceu. Brocardos jurídicos. São Paulo: Saraiva, 1941, p. 59.
[5] LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Convenção impediente de novo estabelecimento. In: Pareceres. São Paulo: Singular, 2004, p. 688.
[6] Nesse sentido, veja-se WALD, Arnoldo; XAVIER, Alberto. Pacto de não-concorrência: validade e seus efeitos no Direito brasileiro. In: Doutrinas essenciais de Direito Empresarial. Vol. II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 847-863.
[7] Vide nota de rodapé nº 3, supra.
[8] Relatório Final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, 2024, p. 287.
[9] TRINDADE, Marcelo. A reforma do Código Civil e os Contratos. In: MARTINS-COSTA, Judith; MARTINS, Fábio; CRAVEIRO, Mariana; XAVIER, Rafael (Orgs.). Boletim IDiP-IEC. Vol. XXII, Canela-São Paulo, Publicado em 12.06.2024. Disponível em: <https://canalarbitragem.com.br/boletim-idip-iec/xxii/>.
[10] In verbis: “Nos contratos empresariais, quando houver flagrante disparidade econômica entre as partes, não se aplicará o disposto neste artigo”.
[11] CARBONAR, Dante. Regras de interpretação dos contratos no Anteprojeto de Reforma do Código Civil brasileiro: artigos 421-C, 421-D e 421-E. Revista Jurídica Profissional, volume especial, 2024, p. 107.
[12] BENETTI, Giovana. A cláusula de não concorrência no contrato de compra e venda de participações societárias: noção, requisitos e remédios à luz do Direito brasileiro. In: ADAMEK, Marcelo Vieira von; PEREIRA, Rafael Setoguti J. Fusões e Aquisições (M&A). São Paulo: Quartier Latin, 2022, p. 287-291.
[13] LAPA, Vitória Neffá. Non compete em M&A. São Paulo: Quartier Latin, 2024, p. 112 e 159.
[14] Essa mudança radical foi justificada em apenas quatro palavras: “Desburocratização da atividade empresária” (Parecer nº 1 – Subcomissão de Direito Empresarial da Cjcodciv, de 15 de dezembro de 2023, p. 181).
[15] A proibição da concorrência é tradicionalmente considerada “efeito típico e peculiar do trespasse” (BARRETO FILHO, Oscar. Teoria do Estabelecimento Comercial. São Paulo: Max Limonad, 1969, p. 242). Por isso, ainda que não fosse convencionada cláusula de “não-restabelecimento”, entendia-se que a finalidade do trespasse somente seria atingida com a restrição à concorrência pelo alienante (VALLADÃO, Erasmo. Empresa, empresário e estabelecimento: a nova disciplina das sociedades. In: Temas de Direito Societário, Falimentar e Teoria da Empresa. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 523). O alienante não poderia “reestabelecer-se em situação tal que possa tirar ao outorgado parte ou toda a clientela que lhe cedera” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo XV. Rio de Janeiro: Borsoi, 1956, § 1.811, p. 377).