Giovana Benetti**
Em mais de 300 páginas, o Relatório Final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e pela atualização do Código Civil apresenta diversas propostas de modificação de suas normas, relativamente às quais muito se tem debatido[1]. Diante da extensão das propostas, registro, desde logo, um alerta ao(à) caro(a) leitor(a): estas breves reflexões cuidam tão somente do inciso IV do § 1º do Art. 421-C do Anteprojeto de Código Civil[2], sem adentrar nas discussões sobre a temática dos contratos empresariais, paritários e simétricos[3].
A referida proposta trata da cláusula de não-concorrência, que consiste no ajuste por meio do qual o devedor assume a obrigação de se abster de desenvolver atividade econômica que implique concorrência ao credor[4]. Dentre as justificativas para abordar esse tema no Código Civil, está a necessidade de se fixar “como regra geral, a licitude das cláusulas de não competição, desde que limitadas no espaço e no tempo, e desde que respeitem o disposto na legislação específica de defesa da concorrência”[5].
Com efeito, no ambiente empresarial, é usual a restrição à concorrência, sempre observados certos limites. Muito conhecido é o exemplo da vedação ao restabelecimento do empresário que celebra contrato de trespasse do estabelecimento comercial, ficando impedido de “fazer concorrência ao adquirente, nos cinco anos subsequentes à transferência”, por força do disposto no Código Civil[6].
Tal previsão não se confunde com a restrição à concorrência de cunho convencional e não pode ter a sua aplicação estendida para qualquer situação. A restrição convencional deriva da autonomia privada, admite diferentes nuances e se sujeita a limites próprios. Para compreender o que se entende por cláusula de não-concorrência, tratarei, brevemente, de sua definição e de sua função. Na sequência, abordarei, sinteticamente, os requisitos de validade apontados pela doutrina e, ao final, apresentarei sugestão para adicionar uma limitação ao inciso IV do § 1º do Art. 421-C.
(I) DA NOÇÃO E DA FUNÇÃO DA CLÁUSULA DE NÃO-CONCORRÊNCIA
Como regra geral, os indivíduos são livres para exercer atividades econômicas, ingressando em novos mercados ou deles se retirando, assim como para ampliar o espaço no mercado de sua atuação. Essa esfera de liberdade decorre de dois valores fundantes da ordem jurídica brasileira: a liberdade de iniciativa e a livre concorrência[7].
A liberdade de iniciativa consiste no livre ingresso em segmento de mercado, assim como a liberdade de o empresário fixar o seu negócio, definir como produzir e estabelecer quais técnicas negociais serão desenvolvidas. Já a livre concorrência compreende a “liberdade de disputa por clientes e, consequentemente, pela manutenção ou pelo aumento do market share das empresas concorrentes”[8].
A tutela desses valores é direcionada tanto ao indivíduo que deseja exercer atividade econômica e disputar clientes no mercado quanto aos cidadãos potencialmente afetados pelo ambiente de competitividade reduzida. Daí a necessidade de avaliar atentamente eventuais restrições a essas esferas de liberdade, as quais não podem chegar a ponto de suprimir direitos fundamentais ou restringi-los de modo irrazoável.
É neste contexto que a cláusula de não-concorrência se apresenta como o ajuste convencional voltado a restringir a liberdade econômica individual[9], pois o devedor é impedido de praticar atos de concorrência frente às atividades desenvolvidas pela contraparte, observadas certas limitações.
Ao se comprometer a não concorrer com o outro contratante, o indivíduo assume obrigação negativa, pois lhe é exigida uma abstenção. Trata-se de uma obrigação de não fazer, regida pelos artigos 250 e 251 do Código Civil.
Como todo negócio celebrado entre empresários apresenta uma função econômica[10], é importante identificar qual é a função desempenhada pela cláusula de não-concorrência.
A cláusula de não-concorrência é acessória à operação econômica subjacente. Ou seja, essa cláusula serve a finalidades diversas a depender da operação econômica envolvida. O próprio Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) já reconheceu lógicas distintas quando, por exemplo, a operação for a alienação de estabelecimento ou a criação de parceria societária, o que repercute tanto no objetivo visado pelas partes quanto no lapso temporal para a exigibilidade da obrigação[11].
Além da acessoriedade, o caráter instrumental da cláusula de não-concorrência contribui para explicitar a sua função econômica. O credor da obrigação deve apresentar interesse legítimo[12] na sua pactuação a fim de que a restrição ampare a efetiva utilidade colhida a partir do contrato[13].
Se a cláusula for voltada a utilidade desconectada da operação econômica subjacente, não preencherá a necessária instrumentalidade. É o que ocorre, por exemplo, quando a cláusula restringe o exercício de atividades econômicas em todo o território nacional, mas a atuação do credor está circunscrita a uma única cidade.
Pode-se dizer, então, que a função econômica da cláusula de não-concorrência é restringir a prática de atos de concorrência frente às atividades desenvolvidas pela contraparte, desde que a restrição guarde relação com a operação econômica subjacente e atenda a interesse legítimo do beneficiário, observadas, ainda, certas limitações.
A obrigação de não-concorrência que se desvie de sua função econômica carecerá de sentido. Assim também ocorrerá com a cláusula que não observe os requisitos para ser considerada válida.
(II) DOS REQUISITOS DA CLÁUSULA DE NÃO-CONCORRÊNCIA
Os limites à obrigação de não-concorrência são apontados como “requisitos essenciais, verdadeiros pressupostos de validade”[14], pois a restrição a valores fundamentais apenas é admitida quando não ultrapasse as “fronteiras da liberdade jurídica”[15]. Conforme o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já reconheceu, “a restrição à concorrência no ambiente jurídico nacional, em que vige a livre iniciativa privada, é excepcional”[16].
Diante das restrições impostas à livre iniciativa e à livre concorrência[17]–[18], os requisitos de validade para cláusulas que contemplem obrigações dessa natureza são de ordem material, temporal, geográfica e pecuniária.
O requisito de ordem material consiste na necessidade de a cláusula de não-concorrência especificar o ramo das atividades desenvolvidas pelo agente econômico (estabelecimento, pela sociedade-objeto ou pelo empreendimento) concorrente, bem como os produtos ou os serviços que constituem a atividade econômica explorada pelo beneficiário da restrição[19]. Logo, não se admite cláusula que impeça a realização de qualquer atividade profissional, sem especificações.
O aspecto temporal liga-se à necessidade de se estabelecer prazo razoável para a duração dessa obrigação, pois a ausência de parâmetro temporal – ou a fixação de período irrazoável – acabaria por restringir demasiadamente o direito de a contraparte exercer livremente a atividade econômica[20].
O requisito temporal consta, expressamente, do inciso IV do § 1º do Art. 421-C do Anteprojeto de Código Civil, assim como o geográfico. A cláusula deve especificar a área em que poderia, de fato, haver disputa de mercado, não sendo válida a que “imponha a não concorrência fora da área geográfica que sofre influência dos estabelecimentos concorrentes”[21].
Já o requisito de ordem pecuniária atine à contrapartida financeira pela pactuação da obrigação de não-concorrência, pois o devedor dessa obrigação fica temporariamente impedido de reingressar no mesmo segmento de mercado. A contrapartida financeira é tida como medida adequada diante da restrição a direitos fundamentais. Daí a “ausência de remuneração proporcional àquele que fica impedido de realizar a atividade econômica” ser considerada “ilegal”[22].
Preenchidos os requisitos antes referidos, a cláusula de não-concorrência será reputada como válida. É possível, porém, que algum requisito não esteja presente ou seja defeituoso, levando à invalidade da cláusula ou à necessidade de adequação de seus efeitos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do exposto, percebe-se que o inciso IV do § 1º do Art. 421-C do Anteprojeto de Código Civil andou bem em prever a licitude, em geral, da pactuação da cláusula de não-concorrência, estabelecendo a observância de certos limites relacionados ao tempo e ao espaço. Afinal, a redação atual do Código Civil trata da não concorrência no Art. 1.147, o qual é aplicável apenas às situações de cessão, de arrendamento ou de usufruto do estabelecimento.
Apesar de ter contemplado limites geográficos e temporais, o inciso IV do § 1º do Art. 421-C do Anteprojeto de Código Civil poderia ter disciplinado outras limitações igualmente “razoáveis” e “coerentes”. A título de sugestão, poderiam ser adicionadas as restrições de ordem material e pecuniária referidas no item “II” acima, pois não se pode admitir cláusula que impeça pessoas físicas ou jurídicas de realizarem qualquer atividade econômica, sem especificações, ou que não preveja contrapartida financeira ao contratante temporariamente impedido de reingressar no mesmo segmento de mercado.
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** Doutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Professora do Departamento de Direito Privado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A autora agradece aos Organizadores do Boletim IDiP-IEC pelo honroso convite para participar desta publicação.
[1] A título de exemplo, vide diversas edições do Boletim IDiP-IEC, assim como o Curso sobre a Reforma do Código Civil, organizado por CPA – Curso Prático de Arbitragem, disponível em: https://www.youtube.com/playlist?list=PLS0rR8QrBlobx0ZL52WD6YsnvefYns6Fp.
[2] “Art. 421-C. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos, se não houver elementos concretos que justifiquem o afastamento desta presunção, e assim interpretam-se pelas regras deste Código, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais.
- 1º Para sua interpretação, os contratos empresariais exigem os seguintes parâmetros adicionais de consideração e análise:
[…] IV – são lícitas em geral as cláusulas de não concorrência pós-contratual, desde que não violem a ordem econômica e sejam coerentemente limitadas no espaço e no tempo, por razoáveis e fundadas cláusulas contratuais; […]”.
[3] A este respeito, vide, a título de exemplo TRINDADE, Marcelo. A reforma do Código Civil e os Contratos. In: MARTINS-COSTA, Judith; MARTINS, Fábio; CRAVEIRO, Mariana; XAVIER, Rafael (Orgs.). Boletim IDiP-IEC. Vol. XXII, Canela-São Paulo, Publicado em 12.06.2024. Disponível em https://canalarbitragem.com.br/xxii-boletim-idip-iec/a-reforma/; Osny da Silva Filho, Paridade e simetria no Anteprojeto de Reforma do Código Civil, Revista Jurídica Profissional, volume especial, 2024 [no prelo].
[4] Tratei do assunto de modo mais aprofundado em BENETTI, Giovana. A cláusula de não-concorrência no contrato de compra e venda de participações societárias: noção, requisitos e remédios à luz do Direito brasileiro. In: ADAMEK, Marcelo Vieira von; PEREIRA, Rafael Setoguti. (Org.). Fusões e Aquisições (M&A). 1ed. São Paulo: Quartier Latin, 2022, p. 295-320.
[5] Relatório Final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, p. 291 do PDF.
[6] Código Civil, art. 1.147.
[7] A liberdade de iniciativa é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (Constituição Federal de 1988, art. 1º) e de sua ordem econômica, a qual tem como princípio a livre concorrência (Constituição Federal de 1988, art. 170).
[8] NERY JR., Nelson. Cláusula de não concorrência e seus requisitos – prejudicialidade externa entre processos. In: Soluções Práticas de Direito, vol. 7, p. 467-513, set. 2014. Acesso RT Online.
[9] LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Convenção impediente de novo estabelecimento. In: LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Pareceres. Vol. 1. São Paulo: Editora Singular, 2004, p. 689.
[10] FORGIONI, Paula A. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 116.
[11] Parecer 33/2016/CGAA5/SGA1/SG (versão pública), assinado por Paulo Vinicius Ribeiro de Oliveira, referente ao Processo 08700.012600/2015-20: “Cabe lembrar, desde logo, que a lógica para a aceitação de uma cláusula de não-concorrência pelo Cade (e pelo direito civil e comercial) é a seguinte: (i) no caso do vendedor de um negócio, é razoável que o contrato exija que este se abstenha de concorrer com o negócio desinvestido durante certo período de tempo, a fim de propiciar que o comprador efetivamente se aposse do negócio, de seus clientes e todos os demais elementos que o compõem, o que demanda que o vendedor não alicie e ‘usurpe’ clientes e know how para formar um novo negócio concorrente de forma imediata, frustrando o objetivo da compra; (ii) no caso de uma sociedade que é formada, ou de um sócio que entra no capital de um negócio, é razoável exigir que este sócio não concorra com o negócio investido enquanto durar a sociedade, já que isso seria contraditório com seus deveres de trabalhar no melhor interesse da companhia, e não de concorrentes dela”, destacou-se.
[12] LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Convenção impediente de novo estabelecimento. Op. Cit., 2004, p. 689; CAMILO JUNIOR, Ruy Pereira. Cláusulas de não competição nas alienações societárias. In: ADAMEK, Marcelo Vieira von; PEREIRA, Rafael Setoguti. (Org.). Fusões e Aquisições (M&A). 1ed. São Paulo: Quartier Latin, 2022, p. 899.
[13] CAMILO JUNIOR, Ruy Pereira. Cláusulas de não competição nas alienações societárias. Op. Cit., 2022, p. 900.
[14] NERY JR., Nelson. Cláusula de não concorrência e seus requisitos – prejudicialidade externa entre processos. Op. Cit., 2014, Acesso RT Online.
[15] É o raciocínio aplicado por Orlando Gomes às obrigações de não fazer (Obrigações. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 39).
[16] STJ. REsp 1.203.109-MG. 3ª Turma. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. J. 05.05.20215. Destacou-se.
[17] Segundo Giovanni Nanni e Adriano Ferriani, requisitos de validade da cláusula de não-concorrência decorrem “da incidência de três princípios constitucionais, a saber, da livre iniciativa, da livre concorrência e da liberdade de profissão” (Cláusula de não concorrência na alienação de participação societária: exame de seus requisitos de validade e ineficácia superveniente. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 9, n. 2, 2020. Disponível em: <http://civilistica.com/clausula-de-nao-concorrencia/>. Acesso em 22.01.2023).
[18] Na jurisprudência, já se decidiu que “a validade e aplicação” das cláusulas de não-concorrência “depende de cumprimento de requisitos razoáveis, como por exemplo, limitação geográfica, sob pena de ferir o princípio constitucional da livre concorrência” (TJRS. 6ª Câmara Cível. Ap. 50899406-84.2020.8.21.0001/RS. Des. Rel. Gelson Rolim Stocker. J. 29.09.2022). De modo semelhante, considerou-se que “A vedação de concorrência para ser validada, deve observar uma limitação temporal e territorial” (TJSP. 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. Des. Rel. Ricardo Negrão. J. 08.11.2022).
[19] CASTRO NEVES, José Roberto de. Aspectos da cláusula de não concorrência no direito brasileiro. Revista Trimestral de Direito Civil – RTDC, ano 3, vol. 12, p. 205-218, out./dez. 2002. Na doutrina estrangeira, vide LECLERCQ, Didier. Les conventions de cession d’actions: analyse juridique et conseils pratiques de rédaction. 2ª ed. Bruxelas: Larcier, 2017, p. 516.
[20] CASTRO NEVES, José Roberto de. Aspectos da cláusula de não concorrência no direito brasileiro. Op. Cit., 2002; WALD, Arnoldo; XAVIER, Alberto. Pacto de não-concorrência – Validade e seus efeitos no direito brasileiro. Doutrinas Essenciais de Direito Empresarial, vol. 2, p. 847-863, dez. 2010. Acesso RT Online.
[21] NERY JR., Nelson. Cláusula de não concorrência e seus requisitos – prejudicialidade externa entre processos. Op. Cit., 2014, Acesso RT Online.
[22] As ideias deste parágrafo foram baseadas em NERY JR., Nelson. Cláusula de não concorrência e seus requisitos – prejudicialidade externa entre processos. Op. Cit., 2014, Acesso RT Online.