Elena de Carvalho Gomes**

A perda da “majestade” da lei como fonte normativa representa fenômeno muito bem documentado em doutrina, em suas mais diversas manifestações. Entre nós, passados poucos anos do início da vigência do Código Civil atualmente em vigor, já registrava João Baptista Villela, com certa melancolia: “Quem quer que observe o panorama jurídico do País e sobre ele reflita perceberá, contudo, que, decididamente, este, por que passamos, não é um momento de esplendor e glória da lei. Está longe de ser raro ou infrequente o afastamento de sua observância sem razões plausíveis ou consistentes”[1]. Em tempos mais recentes, e com referência, especificamente, ao contexto italiano, assinalou Stefano Troiano que se vive uma crise do papel ordenador da lei escrita, em boa medida ligadaà incapacidade do Poder Legislativo. Muitas seriam as razões para o fenômeno: falta de preparo e inércia da classe político-administrativa, desorganização dos procedimentos de aprovação, deslocamento dos foros de decisão normativa, etc. Como quer que seja, não se trata – tem por bem precisar o Autor – de mero questionamento da proeminência formal da norma escrita em favor de um positivismo formalista há muito superado. Trata-se, antes, de constatar um deslocamento de papeis entre lei e juiz, “bem além dos limites assinalados do mais consolidado modo de entender os poderes do intérprete”[2].

A ênfase no papel do juiz, em detrimento da lei – traço dos tempos atuais – carrega, em seu bojo, o risco concreto de comprometimento de uma virtuosa sinergia[3] entre legislador e magistrados, com a indesejável e perigosa consequência de que se abram as portas a decisões que concretizem mais um sentido pessoal daquilo que se entende como justo[4], do que opções políticas referendadas democraticamente pelo processo legislativo. Parece ter razão Troiano quando afirma que a “hipertrofia do ativismo judicial” a que tal arranjo de coisas pode dar lugar surge como contratendência em relação ao fenômeno de gradual erosão dos espaços reservados à jurisdição, a chamada “desjudicialização[5], de que seria exemplo a atribuição, aos notários, de competências de jurisdição voluntária mesmo quando estejam em pauta interesses de incapazes. Chega-se, assim, a uma situação que muito longe está do ideal de segurança e certeza a que aspira o direito: de um lado, a, por assim dizer, “fuga” do Judiciário mesmo em situações em que sua intervenção poderia ser tida como importante; de outro, a acentuação, amiúde sem controle e sem balizas claras, do papel criativo do magistrado, não raro com o sacrifício de valores fundantes do ordenamento.

É esta a chiave di lettura da análise ora desenvolvida a respeito da disciplina do direito das sucessões constante do Anteprojeto de Reforma do Código Civil, cuja amplitude e profundidade no que concerne às alterações propostas não condiz com o abreviadíssimo – para dizer o mínimo – interstício entre o início das discussões e a consolidação do respectivo texto final.

O direito das sucessões já foi objeto de algumas edições do presente Boletim, em que, com propriedade, destacaram-se não poucas perplexidades suscitadas pela “reforma”, especialmente no tocante à legítima[6]. A tais reflexões não se pretende voltar. Sendo certo que, para além deste fundamental instituto, haveria diversos pontos cuja disciplina mereceria reparos – e aqui cabe, apenas à guisa de exemplificação, a insistência na categoria “nulidade de pleno direito”[7] – pretende-se examinar as alterações sob a ótica dos fenômenos descritos: de um lado, a “desjudicialização”; de outro, a ênfase exagerada no papel do juiz. Já se adiantando a conclusão a que o exame das disposições sob este ângulo dá lugar, o Anteprojeto parece conviver com mixed emotions, para ficar com o título da famosa canção inglesa: Pretende, tanto quanto possível, promover a “fuga” da jurisdição em matéria sucessória. Ao mesmo tempo, expande – exageradamente, e sem grande preocupação quanto ao estabelecimento de critérios objetivos – a intervenção do juiz. Não raro, na contramão daquilo que a própria Comissão declaradamente buscava tutelar: a “extensão dos espaços de autonomia privada na sucessão”[8].

A desjudicialização manifesta-se sem cerimônia ou constrangimento já no texto que se pretende conferir ao caput do art. 1.796: “No prazo fixado na lei processual, instaurar-se-á inventário do patrimônio hereditário, preferencialmente perante o tabelionato de notas, para fins de liquidação e, quando for o caso, de partilha da herança”. Parece claro que o dispositivo foi ditado antes pelo imperativo – menos nobre, mas não por isso ignorável[9] – de diminuir a carga de processos no Judiciário, do que como uma reação ao “ativismo judicial”. Ainda assim, não deixa de causar estranheza o emprego do advérbio preferencialmente, eis que não há sanções ou incentivos para a conduta que a norma pretende promover. Se a desjudicialização em matéria sucessória integra, de fato, a atual política legislativa, teria sido melhor que o legislador a assumisse abertamente, e não simplesmente que pedisse “por favor”.

Ainda na linha do fenômeno da “fuga do juiz”, prescreve o texto proposto para o § 4º do art. 1.796 que “se não houver oposição do curador do incapaz nem conflito com o cônjuge ou convivente supérstite, e esse for o desejo de todos os herdeiros, será expedido alvará para que o inventário se processe nos termos dos §§ 1º e 2º deste artigo com a participação do Ministério Público”. Ao que parece, o que se desejava era que o inventário em que houvesse interessado ou herdeiro incapaz se processasse preferencialmente perante o tabelionato de notas, como prescreve o caput do art. 1.796, desde que se verificassem os requisitos previstos pelo § 4º. No entanto, a remissão pelo dispositivo feita não aponta diretamente nesse sentido. Com efeito, os §§ 1º e 2º referem-se a outras situações: de um lado, aos valores referentes ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), ao fundo de participação PIS/PASEP e às verbas trabalhistas e benefícios previdenciários, que serão pagos aos dependentes habilitados perante a Previdência Social ou àqueles designados em testamento ou codicilo e, em sua falta, aos herdeiros legítimos nominados em alvará judicial, “independentemente de inventário ou arrolamento[10]. De outro, à transferência de titularidade de bens móveis cujo valor não ultrapasse cem salários mínimos, que pode realizar-se por alvará judicial ou termo de autorização para alienação de bens perante o tabelionato de notas, “independentemente de inventário ou arrolamento[11]. Ou seja, a remissão pelo § 4º proposta quanto ao inventário em que haja herdeiro ou interessado incapaz tem como referência situações em que se dispensa o próprio inventário!

Não só: o legislador parece partir do pressuposto de que todos os incapazes são necessariamente maiores, já que o inventário, em tais casos, apenas poderá processar-se nos termos dos §§ 1º e 2º “se não houver oposição do curador do incapaz nem conflito com o cônjuge ou convivente supérstite, e se esse for o desejo de todos os herdeiros”. E se o herdeiro incapaz for menor? Pois, em tal caso, não há curador. E se todos os demais herdeiros desejarem que o inventário se processe perante o tabelionato de notas, mas um ou os dois representantes ou assistentes dos menores a isso se oponham? Obviamente, negativa há de ser a resposta, ainda que o legislador não tenha da hipótese cuidado. Como quer que seja, o que se tem, em resumo, é que a almejada desjudicialização merece profundo aprimoramento no texto do Anteprojeto de Reforma.

A desjudicialização representa, como se viu, uma contratendência à ênfase exagerada no papel do juiz, aspecto que igualmente se manifesta sem constrangimentos no texto do Anteprojeto, com recorrente sacrifício à autonomia privada por ele supostamente patrocinada. Uma combinação que, ao fim e ao cabo, confere ao texto viés marcadamente autoritário.

A propósito, cabe ter presente as normas contidas no art. 1.791-B, cujo caput, sem embargo, convive em perfeita harmonia com a proteção constitucional conferida ao sigilo das correspondências e das comunicações telegráficas: “Salvo expressa disposição de última vontade e preservado o sigilo das comunicações, as mensagens privadas do autor da herança difundidas ou armazenadas em ambiente virtual não podem ser acessadas por seus herdeiros”.

O problema reside, no entanto, na exceção contida no § 2º do dispositivo em questão, que estabelece: “Por autorização judicial, o herdeiro poderá ter acesso às mensagens privadas do autor da herança, quando demonstrar que, por seu conteúdo, tem interesse próprio, pessoal ou econômico de conhecê-las”. Por meio da regra, confere-se ao juiz a possibilidade de, mesmo sem outras balizas mais claras, concretizar conceitos que podem acomodar verdadeiramente tudo, para, ao final, admitir o ingresso de terceiros na esfera privada do de cujus, ainda que contra a vontade dele em vida manifestada. Além do exagerado poder conferido ao magistrado, a norma suscita questionamentos quanto à própria constitucionalidade. Pois sendo certo que eventual interesse público poderia, sendo o caso, mitigar a proteção conferida ao sigilo das comunicações do autor da herança – entre as quais não estão expressamente previstas aquelas realizadas por meio digital, é verdade – é no mínimo discutível que herdeiros, invocando um genérico “interesse próprio”, cuja concretização há de ser feita pelo magistrado, tenham legitimidade para fazer valer os próprios interesses na contramão de garantia tida pelo legislador constituinte por fundamental.

Outro exemplo do viés autoritário do texto do Anteprojeto, fomentado por meio da expansão dos poderes do magistrado, encontra-se nas regras acerca da “renúncia de todos os direitos sucessórios”, que será ineficaz quando o renunciante, na data da abertura da sucessão, não possuir outros bens ou renda suficiente para a própria subsistência, como dispõe o § 5º do texto proposto para o art. 1.808. A regra coloca-se na linha do que prescreve o vigente art. 548 do Código Civil no tocante ao contrato de doação, há que se reconhecer. A censura não passa, com efeito, pela falta de coerência da Comissão, mas pela perda de excelente oportunidade de promover a “autonomia privada em matéria sucessória”. Pois é precisamente na renúncia que se situa a mais radical expressão do direito como instrumento de liberdade[12], já advertia João Baptista Villela:

“A renúncia é a expressão verdadeiramente emblemática da autonomia da vontade. Mais do que na ideia geral do autorregramento de interesses, que não supõe necessariamente perdas, na renúncia o titular do direito dele simplesmente abdica sem que se lhe atribua, a título de compensação ou contraprestação, qualquer vantagem econômica. Poder renunciar é, portanto, a faculdade que denota o mais elevado grau de afirmação da pessoa no ordenamento jurídico, pois faz dela juiz soberano de si mesma, livre de intromissões exógenas senhor do próprio destino. Pode-se dizer, de um modo geral, que uma sociedade é tanto mais livre e desenvolvida quanto mais se reconhece a cada um o direito à autodeterminação de si mesmo e de seu patrimônio. Portanto, quanto mais extenso for o seu poder de renunciar. Basta lembrar que, em sentido mais amplo, porém não totalmente diverso, sem renúncia não há generosidade, e sem ser generoso ninguém se realiza plenamente como ser social e humano”[13].

A verdade, no entanto, é que a disciplina proposta para a renúncia aos direitos sucessórios não deixou apenas de ampliar o espaço reservado à autonomia privada. A regra que se segue à do § 5º do art. 1.808, e que a complementa, representa uma aberta agressão a esse valor, eis que infantiliza o renunciante, retirando-lhe o poder de autorregramento dos próprios interesses para depositá-lo nas mãos do juiz!

Assim prescreve o texto do § 6º do art. 1.808: “Na hipótese anterior, o renunciante interessado, no prazo de 180 dias, pedirá ao juiz que fixe os limites e a extensão da renúncia, de modo a assegurar a sua subsistência”. Isto é: a generosidade e o desprendimento serão, por assim dizer, dosados pelo magistrado, que – não se sabe com base em quais parâmetros – traçará a linha do mínimo de que disporá o renunciante para a própria subsistência. Uma regra que, além de embaraçante para os juízes, mal disfarça o próprio autoritarismo.

Infelizmente, há no Anteprojeto de Reforma, vários outros dispositivos que, em matéria sucessória, enfatizam exageradamente os poderes judiciais, com o indesejável efeito de comprometimento da segurança jurídica e também da própria autonomia privada[14]. Tal circunstância representa um índice importante da falta de amadurecimento do texto, pois valores tão fundamentais ao ordenamento não podem ser sacrificados de forma irrefletida e sem um motivo relevante. Em jogo está o tipo de sociedade em que queremos viver: com previsibilidade, segurança e respeito às singularidades de cada um; ou, talvez, com alguém – no caso, o juiz – que nos diga o que fazer mesmo quando estiverem em pauta circunstâncias que não digam respeito a ninguém, senão a nós mesmos.

Em conclusão e para retomar o ponto de onde se partiu: o Anteprojeto de Reforma do Código Civil pretende utilizar a própria lei para aumentar ainda mais o poder dos magistrados, hoje já tão pronunciado, e por isso mesmo muito questionado. Na contramão da advertência de Troiano, que pondera: “Ampliando desmedidamente o papel dos juízes se arrisca, no final das contas, de alimentar aquela que se poderia definir uma verdadeira e própria ‘esquizofrenia’ (ou um ‘estrabismo’) do ordenamento”[15].

Paralelamente, o Anteprojeto de Reforma patrocina uma erosão da jurisdição em matéria sucessória de maneira pouco apurada e igualmente questionável, dispensando a intervenção do juiz onde ele, talvez, poderia desempenhar papel relevante. Como se vê, motivos não há para endossar o texto, que consegue abraçar, da pior forma possível, tendências opostas.

** Professora Adjunta de Direito Civil na Faculdade de Direito da UFMG. Mestra e Doutora em Direito pela UFMG. Doutora em Persone e Tutele Giuridiche pela Scuola Superiore Sant’Anna di Studi Universitari e di Perfezionamento, em Pisa, na Itália. Professora Visitante na Università degli Studi di Verona, na Itália. Advogada em Belo Horizonte.

[1]VILLELA, João Baptista. A Lei e os Juízes. Revista Del Rey Jurídica, Belo Horizonte, n. 23, 1. Sem. 2010: p. 62-63, p. 63.

[2] TROIANO. A razoabilidade no direito privado italiano: potencialidade e insídias de um conceito com vocação “totalitária”. In: CAPRARA, Andrea et al. (org.). Direito, transformações e tecnologias – estudos de direito comparado. Belo Horizonte: D’Plácido. No prelo.

[3] TROIANO. A razoabilidade…, cit.

[4] TROIANO. A razoabilidade…, cit.

[5] TROIANO. A razoabilidade…, cit.

[6] Cf. GOZZO, Débora. Direito à Legítima: de lege lata e “de lege ferenda”. [XXVI] Boletim IDiP-IEC. 10/07/2024. Disponível em: https://canalarbitragem.com.br/em-boletim-idip-iec/xxvi/. Acesso em 21/11/2024;  COSTALUNGA, Karime. O Direito de Família e o Direito das Sucessões no Anteprojeto de Código Civil: estudo crítico de propostas de alterações. XXXVII Boletim IDiP-IEC. 06/11/2024. Disponível em: https://canalarbitragem.com.br/xxxvii-boletim-idip-iec/o-direito-de-familia/. Acesso em 21/11/2024.

[7] Cf. art. 1.791-A, § 3º. A propósito, nunca é demais recordar a vetusta, porém sempre atual lição de Valle Ferreira: “Assim nos textos legislativos como nas exposições dos comentadores, encontramos referência frequente a uma nulidade de pleno direito. A expressão é simples resíduo verbal de sistemas há muito superados e, assim, na linguagem de hoje só pode perturbar, como frequentemente ocorre. Não há nulidade de pleno jure, tudo porque, mesmo inquinado do vício mais grave, o ato quase sempre conserva uma aparência de regularidade, que só pode ser destruída pela declaração do juiz. Esta presunção de regularidade, este respeito pelas aparências, é um dos grandes princípios da organização civil, cuja aplicação mais brilhante e frequente, segundo assinalou De Page (I, n. 96), encontramos na posse, um estado aparente do direito de propriedade, que às vezes é protegido até mesmo contra o verus dominus”: VALLE FERREIRA. Subsídios para o Estudo das Nulidades. Revista da Faculdade de Direito [da Universidade de Minas Gerais], Belo Horizonte, a. 14, n. 3 (nova fase), p. 29-38, out. 1963, p. 31.

[8] Cf. Relatório Final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, [p. 304]. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/assessoria-de-imprensa/arquivos/anteprojeto-codigo-civil-comissao-de-juristas-2023_2024.pdf>. Acesso em 21/11/2024.

[9] TROIANO. A razoabilidade…, cit.

[10] Grifos nossos.

[11] Grifos nossos.

[12] VILLELA, João Baptista. Contrato de Doação: Pouca Luz e Muita Sombra. In: FARIA, Juliana Cordeiro de; MARX NETO, Edgard Audomar; GOMES, Elena de Carvalho; FROES, Julia Vieira (org.). João Baptista Villela. Obra Selecionada. São Paulo: Dialética, 2023: p. 533-549, p. 540.

[13] VILLELA, João Baptista. Sobre Renúncia e Transação no Direito do Trabalho. In: FARIA, Juliana Cordeiro de; MARX NETO, Edgard Audomar; GOMES, Elena de Carvalho; FROES, Júlia Vieira (org.). João Baptista Villela. Obra Selecionada. São Paulo: Dialética, 2023: p. 153-172, p. 153.

[14] Veja-se, por exemplo, o § 1º proposto para o art. 1.850, cujo caput trata da exclusão do cônjuge – que, pela proposta, não mais será herdeiro necessário – do companheiro e dos colaterais da “herança”, quando o testador disponha de seu patrimônio sem os contemplar. Esta é a redação do § 1º: “Sem prejuízo do direito real de habitação, nos termos do art. 1.831 deste Código, o juiz instituirá usufruto sobre determinados bens da herança para garantir a subsistência do cônjuge ou convivente sobrevivente que comprovar insuficiência de recursos ou de patrimônio”. Não há qualquer parâmetro para a instituição do usufruto em questão – a não ser, é claro, a necessidade daqueles por ele beneficiados – que, nos termos lacônicos da proposta, incidirá sobre “determinados bens da herança” (grifos nossos). Ou seja: mais uma vez, reserva-se ao juiz uma espécie de “juízo de equidade”, que, no limite, pode levar ao total desequilíbrio na distribuição dos bens que compõem o acervo hereditário, considerados os vários direitos que sobre eles podem incidir. Uma solução em tudo contrária à certeza e à segurança jurídicas.

[15] TROIANO. A razoabilidade…, cit.