Karime Costalunga**
No mês de agosto do passado presente, foi realizado evento[1] – dentre muitos que surgem com o mesmo propósito e apresentam o mesmo calibre de exposições – capitaneado pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, no qual foi possível a abordagem de temas de enorme relevância para o Direito Civil Brasileiro. A troca – sempre tão frutífera – deixou registrada a inconformidade com o Anteprojeto de Código Civil que, em velocidade assustadora, foi discutido, desenvolvido e, portanto, consolidado.
Dentre as grandes constatações decorrentes de análise mais aprofundada – e, de certa forma, flagrante sua presença em todos os Livros do Direito Civil – vêm à tona as inúmeras contradições e antinomias que a proposta de norma carrega; a litigiosidade portanto instaurada; e, não menos importantes, as proposições recheadas de insegurança jurídica e, até mesmo, de retrocesso.
A respeito disso, há a preocupação quanto ao manejo do tempo. Ou melhor, da falta de tempo suficiente para reflexão, eis que o resultado é fruto de pouco menos de um ano de trabalho. Mais ainda: da falta de tempo suficiente por parte da sociedade em termos de expressão de valores já consolidados a ponto de demandar normatização. Em seara oposta, ainda que sua tramitação tenha sido por demasiado demorada, vem o Código Civil de 2002, que foi objeto de delongada maturação e discussão, desaguando em norma da qual transborda conteúdo valorativo apto para atentar às necessidades externadas pelo sujeito.
Assim colocado, dentre as áreas do Direito que foram abordadas naquele evento, coube a final e tangencial análise do Direito de Família e das Sucessões, tendo em vista as grandes mudanças que o Anteprojeto propõe para incorporação pelo Direito Civil Brasileiro. A título exemplificativo do conteúdo preocupante do Direito de Família, nota-se a proposição a respeito de regra dispondo sobre o registro de paternidade[2]. O registrador deverá promover o registro do vínculo a partir da manifestação por parte da declarante, inclusive no que diz com indicação de suposto pai, ainda que este não esteja presente ou tampouco de acordo. A regra, se aprovada, gerará insegurança, pois os efeitos pessoais desse registro decorrerão de mera declaração da interessada frente ao registrador.
A insegurança jurídica que daí surge vem travestida de ponderação e consequente maior peso dado ao direito de reconhecimento por parte do filho e concretização do estado de filiação. Não defendem as presentes laudas preponderância diversa, mas sim a necessária atenção para o quanto o ato declaratório, por si só, pode e deve merecer atenção frente à grandeza de registro de paternidade e os seus consequentes efeitos jurídicos. Dentre esses, de alertar, a pronta fixação de alimentos sem qualquer comprovação efetiva do vínculo, e sim apenas a declaração por parte da mãe.
Ainda, vem neste texto ora apresentado mais um exemplo de propositura de normatização que merece atenção, estando agora focada a análise nos efeitos patrimoniais decorrentes de referida proposição. O Anteprojeto carrega a fixação de alimentos compensatórios de alcance muito mais amplo do que seria o reestabelecimento de acesso de um dos cônjuges ao patrimônio comum do qual fora alijado por força do formato e exercício da gestão. Na proposta de lei, vem à tona um caráter voltado à tentativa exacerbada de manutenção do padrão de vida do qual usufruía enquanto constituída a sociedade conjugal[3].
Vale dizer, trata-se de uma proposta de flexibilização do regime de separação de bens, mesmo se assim escolhido pelo casal, tendo em vista o prévio modus vivendi do casal e a inexistência de meação decorrente da sociedade conjugal, o que leva à fixação de prestação periódica, ou até mesmo única, com um solar objetivo: manutenção de padrão de vida. Se recepcionada referida proposição, seria possível e até mesmo questionável o propósito e consequente efetividade na escolha pelo regime de separação de bens, tendo em vista iminente risco de fixação de prestação complementar, mas que, desde logo, portadora de característica mormente patrimonial, e nada assistencial.
De outra feita, se mostra relevante e necessário, também, revisitar neste momento, em contrapartida, o Direito das Sucessões. Talvez seja o Livro do Direito Civil no qual as menores e menos profundas modificações tenham sido apresentadas; ou, talvez, as mudanças que apresente sejam todas baseadas no conceito de exercício das liberdades. Ainda assim, não se apresentam menos importantes e despiciendas, tendo em vista o iminente equilíbrio que decorre das relações familiares e seu caráter assistencial eventualmente criado pela confiança consolidada.
Primeiramente, de relevo alertar que propõe o Anteprojeto a exclusão da figura do cônjuge sobrevivente dentre o rol de herdeiros necessários, mantendo, entretanto, apenas descendentes e ascendentes do morto[4]. Isso significa atribuir ao sobrevivente que não fosse proprietário de meação necessária providência para a própria sobrevivência – ou, até mesmo, a expectativa do exercício da generosidade do morto, a ponto de contemplar e estancar o dreno decorrente da falta de renda e inevitável responsabilidade pelas despesas até mesmo ordinárias.
Em contrapartida, também representa a proposta de exclusão do cônjuge sobrevivente da condição de herdeiro necessário um respeito decorrente do disposto em pacto, quando assim ocorrer. Mais do que isso, resta verificado o cumprimento fiel à autonomia privada manifestada por meio de pacto, o que serve como demonstração do foco do Anteprojeto, que visa permitir o exercício mais frequente das disposições patrimoniais, ainda que almejando efeitos somente para após a morte.
Na mesma toada, foram apresentadas propostas de alteração das regras quanto à possibilidade de contratação tendo como objeto a herança de pessoa viva[5], o que vem avalizado em determinadas circunstâncias, em especial, quando envolvido patrimônio societário. Entretanto, considerando a maneira como vem proposta a alteração, é constatada tentativa irrestrita de mudança na conceituação e qualificação dos contratos, unicamente com o objetivo de encaixar e, portanto, contemplar a permissão para a eliminação, desde logo, da expectativa do direito de herdar.
Por fim, de alertar a forma como vem desenvolvido no Anteprojeto o tema da parte legítima da herança, que foi mantida, muito embora venha este introduzir dispositivo que faculta a disposição por parte do testador privilegiando herdeiros compreendidos como hipossuficientes[6]. Proposta, portanto, a disposição protetiva em benefício de descendentes e ascendentes considerados dependentes do morto e vulneráveis, no limite de um quarto da legítima, o que pode representar, ainda que indiretamente, exercício da justa causa hoje ainda vigente, com o objetivo de garantir os sujeitos fragilizados, inclusive considerando que a sua própria definição dependeria de interpretação pontual e subjetiva.
Tudo isso posto, de concluir que as propostas de alteração dos Livros de Direito de Família e das Sucessões acabam por deflagrar o conflito decorrente do exercício desmedido da autonomia privada, o que leva à insegurança jurídica das soluções normativas propostas, que vêm consolidadas pela tentativa contraditória e incessante de desjudicializar os conflitos, em especial, na seara da necessária transmissão patrimonial por força de morte, ainda que esbarrem na função social e assistencial inerente à família. Necessário, portanto, cuidado e parcimônia!
** Doutora e Mestre em Direito Privado pela UFRGS. Advogada atuante na área de Direito de Família e Sucessões. Membro do IEC e de outras instituições voltadas ao estudo do Direito. Autora de artigos e livros, em especial, “Direito de herança e separação de bens: uma leitura orientada pela Constituição Federal e pelo Código Civil”, em 2009, e “O direito do meeiro do sócio na apuração de haveres: proposta de interpretação da legislação civil”, em 2019, ambas publicações da Editora Quartier Latin.
[1] Debates no Memorial do Ministério Público/RS. Reflexões sobre o Anteprojeto de reforma do Código Civil. Realizado aos 21 de agosto do passado presente, mediante a participação de juristas, dentre os quais, Judith Martins-Costa, Rafael Xavier, Vera Fradera, Guilherme Nitschke, Gerson Branco e a Signatária. Evento mediado pelos Promotores de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul Thiago Matos Conceição e Ana Maria Moreira Marchesan.
[2]Art. 1.609-A. Promovido o registro de nascimento pela mãe e indicado o genitor do seu filho, o oficial do Registro Civil deve notificá-lo pessoalmente para que faça o registro da criança ou realize o exame de DNA.
- 1º Em caso de negativa do indicado como genitor de reconhecer a paternidade, bem como de se submeter ao exame do DNA, o oficial deverá incluir o seu nome no registro, encaminhando a ele cópia da certidão.
- 2º Após encaminhará o expediente ao Ministério Público ou à Defensoria Pública para propor ação de alimentos e a fixação do regime de convivência.
- 3º Não sendo localizado o indicado como genitor, o expediente deverá ser encaminhado ao Ministério Público ou Defensoria Pública para a propositura da ação declaratória de parentalidade, alimentos e regulamentação da convivência.
- 4º A qualquer tempo, o pai poderá buscar a exclusão do seu nome do registro, mediante a prova da ausência do vínculo genético ou socioafetivo[2].
[3] Art. 1.709-A. O cônjuge ou convivente cuja dissolução do casamento ou da união estável produza um desequilíbrio econômico que importe em uma queda brusca do seu padrão de vida, terá direito aos alimentos compensatórios que poderão ser por prazo determinado ou não, pagos em uma prestação única, ou mediante a entrega de bens particulares do devedor.
[4] Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes e os ascendentes.
[5] Art. 426. Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva.
- 1o Não são considerados contratos tendo por objeto herança de pessoa viva, os negócios:
I – firmados, em conjunto, entre herdeiros necessários, descendentes, que disponham diretivas sobre colação de bens, excesso inoficioso, partilhas de participações societárias, mesmo estando ainda vivo o ascendente comum;
II – que permitam aos nubentes ou conviventes, por pacto antenupcial ou convivencial, renunciar à condição de herdeiro.
- 2o Os nubentes podem, por meio de pacto antenupcial ou por escritura pública pós-nupcial, e os conviventes, por meio de escritura pública de união estável, renunciar reciprocamente à condição de herdeiro do outro cônjuge ou convivente.
- 3o A renúncia pode ser condicionada, ainda, à sobrevivência ou não de parentes sucessíveis de qualquer classe, bem como de outras pessoas, nos termos do art. 1.829 deste Código, não sendo necessário que a condição seja recíproca.
- 4o A renúncia não implica perda do direito real de habitação previsto o no art. 1.831 deste Código, salvo expressa previsão dos cônjuges ou conviventes.
- 5o São nulas quaisquer outras disposições contratuais sucessórias que não as previstas neste código, sejam unilaterais, bilaterais ou plurilaterais.
- 6o A renúncia será ineficaz se, no momento da morte do cônjuge ou convivente, o falecido não deixar parentes sucessíveis, segundo a ordem de vocação hereditária.
[6] Art. 1.846. Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima.
Parágrafo único. O testador, se quiser, poderá destinar até um quarto da legítima a descendentes e ascendentes que sejam considerados vulneráveis ou hipossuficientes.