Débora Gozzo**

 

Um dos aspectos mais importantes no campo do Direito das Sucessões é aquele que diz respeito à legítima, pois ela significa uma limitação ao direito da pessoa de dispor livremente sobre seu patrimônio por meio de testamento. Assim, nos limites da extensão proposta por este Boletim serão examinados basicamente os artigos 1.784, 1.846, 1.857 do Anteprojeto e os a eles relacionados, no sentido de ampliar a discussão que se faz necessária sobre as alterações propostas.

Segundo o art. 5º, inciso XXX da Constituição da República, constitui a herança um direito fundamental. Desse modo, só em casos excepcionais, como o da exclusão de herdeiro por indignidade (CC, arts. 1.814 e s,) ou deserdação (CC, arts. 1.961 e s.), poder-se-á afastar a garantia constitucional. Em ambos os casos, para se alcançar a exclusão, será necessária a propositura de ação, que tramitará pelo rito ordinário, garantindo-se o amplo direito ao contraditório, chegando-se a final com sentença definitiva transitada em julgado, que dê pela exclusão do herdeiro.  No caso da indignidade, todo e qualquer herdeiro poderá ser excluído, ao passo que, na hipótese de deserdação, só herdeiros necessários (CC, art. 1.845). Aqui, inclusive, uma outra particularidade: o pedido de deserdação começa com cláusula testamentária na qual o testador tenha feito menção a um dos motivos expressos nos arts. 1.962 e 1963 do Código Civil/2002.  Afinal, se o herdeiro tem direito garantido a receber a herança, seja ele legítimo ou testamentário, só pelo exercício do contraditório poderá ele ser tornado indigno ou deserdado. E essas hipóteses continuam no Anteprojeto, mas com algumas mudanças significativas e positivas.

Sabendo-se que todos têm direito fundamental de herança, chega-se agora ao ponto de ser o Direito Sucessório regido por dois princípios de extrema importância. O primeiro encontra-se previsto no art. 1.784 do Código Civil, isto é, o da saisine: “Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.”  Em outras palavras, aos mortos sucedem os vivos. O segundo é o da liberdade para testar, que todos têm. Realmente, todos são livres para dispor do respectivo patrimônio como bem entenderem. Todavia, o direito brasileiro restringe esse direito por meio da chamada legítima, isto é, a parte correspondente à cinquenta (50%) por cento do patrimônio do autor da herança. Em outras palavras, se o testador não tiver herdeiros necessários – descendentes, ascendentes e cônjuge sobrevivente (CC, art. 1.845) –, ele tem garantido seu direito de testar livremente. Caso contrário, sua vontade só será livre no concernente à outra metade do patrimônio.  A esta denomina-se de parte disponível, regulamentando o art. 1.789 da lei civil vigente o que segue: “Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança”.

Interessante observar, aliás, que a legítima “não poderá ser incluída no testamento”, conforme consta do § 1º. do art. 1.857 do Código Civil. No entanto, nada impede que essa parte do patrimônio do testador, reservada que é aos herdeiros necessários, seja gravada com as cláusulas de incomunicabilidade, de inalienabilidade e de impenhorabilidade. Como todo herdeiro tem assegurado constitucionalmente o direito fundamental de herança, conforme já assinalado acima, para que essas cláusulas produzam efeito, necessário que o testador tenha justificado, no negócio jurídico testamentário, o motivo pelo qual ele restringe o direito do herdeiro de ter acesso irrestrito ao patrimônio recebido por transmissão “causa mortis”. Trata-se, aqui, da justa causa, expressão utilizada pelo legislador de 2002, como consta do art. 1.848, caput, da lei civil vigente. Assim, cabe ao magistrado dizer o que é ou não justa causa. No Código Civil de 1916, o testador poderia apor tais cláusulas aos bens da legítima, sem precisar justificá-las. Ele era o titular do direito de propriedade. Ponto. Isto em decorrência do primeiro Código Civil brasileiro ter base em visão liberal-individualista[1]. Função social da propriedade não era um tema numa sociedade basicamente formada por grandes latifundiários, com uma população urbana muito ínfima[2].  Por isso, o testador tinha poderes para dispor de seus bens como melhor lhe aprouvesse, ainda que isto significasse impedir o herdeiro necessário de ter acesso irrestrito aos bens da legítima, exceto para depois de sua morte, dispondo deles por meio de testamento.

O Código Civil de 2002 regulamentou esta matéria de modo completamente diverso, até porque esta lei é regida pelos princípios da eticidade, da socialidade e da operabilidade. Esse poder de disposição do patrimônio, nos moldes existentes na lei civil de 1916, portanto, não se coadunaria com as normas jurídicas ora vigentes. O fato é que, com a entrada em vigor do Código Civil de Miguel Reale, em janeiro de 2003, as disposições transitórias determinaram que o testador que tivesse aposto qualquer uma dessas cláusulas – ou todas! – em relação à legítima, deveria aditar o negócio jurídico testamentário, justificando-a. Em caso de não justificação, a cláusula não produzirá efeito (CC, art. 2.042).

Outro ponto relevante nesta discussão remete ao ano de 2017, quando o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil[3], com repercussão geral[4]. Este era o único dispositivo na lei civil vigente sobre a sucessão dos companheiros, tendo ab-rogado a Lei n. 9.278/1996. Em consequência dessa decisão, o companheiro supérstite passou a ser, ao lado do cônjuge sobrevivente, o terceiro na ordem de vocação hereditária, conforme art. 1.829, III do Código Civil. Compete a ele, ademais, concorrer com descendentes e ascendentes, como o cônjuge. Essa interpretação não significou, para o Supremo Tribunal Federal, a inclusão do companheiro sobrevivente no rol de herdeiros necessários. No entendimento dos Ministros, essa inserção no rol taxativo do art. 1.845 do CC, seria atribuição do legislador.  Passados sete anos, o legislador ainda não se debruçou sobre essa questão, o que faz com que o Judiciário decida a favor ou contra considerar-se o companheiro sobrevivente como herdeiro necessário. Se o for, a legítima será a ele garantida, restringindo-se novamente o direito do testador de testar livremente.

Feitas estas brevíssimas explicações sobre o direito sucessório vigente, passar-se-á, nos próximos parágrafos, à análise dos dispositivos correspondentes no Anteprojeto de Código Civil, atualmente em apreciação no Congresso Nacional.

A Comissão revisora manteve as normas dos arts. 1.784 e s., conforme a lei civil vigente. Isso significa que a legítima continua a existir, basicamente, nos moldes ora previstos. Assim, segue correspondendo à metade do patrimônio do autor da herança, desde que esse tenha herdeiros necessários. Todavia, diferentemente do direito vigente, uma grande inovação da lei projetada será a retirada, do rol de herdeiros reservatários (CC, art. 1.845), do cônjuge sobrevivente[5], tendo sido mantidos exclusivamente os descendentes e os ascendentes nesta categoria. A redação ora proposta evoca o Código Civil de 1916. Se assim o for, a intenção do legislador de 2002 de proteger patrimonialmente o cônjuge supérstite terá fim. Ademais, não se questionará mais sobre a inclusão ou não do companheiro sobrevivente entre estes herdeiros, como feito atualmente. Se aprovado o Anteprojeto na sua versão atual, a disposição do patrimônio por meio do testamento será ampliada, uma vez que só a existência de descendentes e ascendentes poderá limitar o direito do testador de dispor livremente sobre seus bens. Trata-se, aqui, de uma inovação que volta a dar maior ênfase à vontade do testador.

Chama a atenção em todo esse contexto, o parágrafo único do artigo 1.846 do Anteprojeto: “O testador, se quiser, poderá destinar até um quarto da legítima a descendentes e ascendentes que sejam considerados vulneráveis ou hipossuficientes.” (Grifos Nossos). Inicialmente, cabe ressaltar que a qualificação jurídica de quem virá a ser considerado herdeiro vulnerável ou hipossuficiente, conceitos estes indeterminados, será atribuição conferida ao Magistrado. Seguindo-se à interpretação do artigo mencionado, salta aos olhos que alguns herdeiros necessários, vulneráveis ou hipossuficientes, poderão ser beneficiados duas vezes, resultando na infração do parágrafo 6º. do art. 227 da Constituição da República, pelo menos na classe dos descendentes. Isto porque, o citado dispositivo constitucional é o responsável, desde 1988, pelo princípio da igualdade entre os filhos. Afinal, alguns descendentes que forem considerados vulneráveis ou hipossuficientes, além de estarem garantidos pelo direito à legítima, poderão ter direito à quota-parte de até um quarto dos bens que compõem esta legítima. Por óbvio que aqui se poderá argumentar que se trata de caso excepcional, mas o legislador constituinte não cuidou de eventuais diferenças. O ideal seria que esse montante saísse da parte disponível, ou que a legítima só fosse garantida aos herdeiros necessários que de fato demonstrem sua vulnerabilidade ou hipossuficiência. A proposta pode ser ousada, mas talvez seja o momento para se repensar a função da legítima no Brasil.

Cabe, ainda, levantar outro ponto. Se o vulnerável ou hipossuficiente for um ascendente, mesmo que haja descendentes, sabendo-se que ambos são herdeiros necessários, o testador poderá beneficiá-lo com a quantia correspondente a até um quarto da parte da legítima? Neste caso, tal cláusula testamentária reduziria o direito à legítima dos descendentes? Ou essa deixa testamentária deverá sair da parte disponível do patrimônio do testador, não sendo a classe dos ascendentes a chamada a perceber a herança? Estes aspectos precisariam ser mais bem avaliados, inclusive porque a norma é dispositiva. O testador poderá – não deverá! – fazer a deixa testamentária para favorecer os herdeiros necessários vulneráveis ou hipossuficientes. Se ele desconhecer a norma, deixará de beneficiar esse seu herdeiro reservatário. O ideal, portanto, salvo melhor juízo, teria sido o dever de, independentemente de testamento, na eventualidade de os herdeiros necessários vulneráveis ou hipossuficientes existirem, a norma de ordem cogente incidir, garantindo-se a eles uma fração patrimonial maior do que a dos outros herdeiros necessários.

Outro ponto que sobressai no Anteprojeto consiste na possibilidade de o testador clausular a legítima como bem lhe aprouver, de acordo com a nova redação que está a ser proposta ao art. 1.849[6]. Tudo independerá de justa causa. Afinal, o patrimônio é do testador e ele restringirá o direito de seu herdeiro necessário como desejar. O herdeiro, no entanto, conforme consta do § 1º. do mencionado artigo, poderá recorrer ao Judiciário, obtendo autorização, desde que haja justa causa – aqui ela reaparece! –, para alienar “os bens gravados, mediante sub-rogação, ou levantados os gravames, salvo se a conversão for determinada em dinheiro.”

Por fim, mencione-se que o modo pelo qual a legítima será calculada será mantido nos moldes do direito vigente, o qual seguiu a lei civil revogada (1916). Continuará, assim, a dispor o art. 1.847: “Calcula-se a legítima sobre o valor dos bens existentes na abertura da sucessão, abatidas as dívidas e as despesas do funeral, adicionando-se, em seguida, o valor dos bens sujeitos à colação.”

A partir de todo exposto, resta inequívoco que a Comissão revisora da lei civil de 2002, garante ao titular do direito de propriedade a disposição de seus bens como melhor lhe aprouver, inclusive assegurando-se a ele a possibilidade de clausular a legítima, independentemente de justa causa. Isto parece, sem sombra de dúvida, em pleno século XXI, um verdadeiro retrocesso, uma vez que restringe o acesso desembaraçado do herdeiro ao patrimônio ao qual ele tem garantido direito fundamental. No mais, o texto projetado tem acertos e desacertos, necessitando de uma leitura mais acurada, a fim de ser aperfeiçoado. Isto, contudo, na hipótese desse Anteprojeto caminhar no Congresso, o que, espera-se, não aconteça. Problemas pontuais do Código Civil atual, uma vez que lei perfeita não existe, poderão ser solucionados sem que se altere sua estrutura, sua letra e sua principiologia tal qual proposto no Anteprojeto.

** Pós-doutora pelo Max-Planck-Institut, Hamburgo/Alemanha. Doutora em Direito pela Universidade de Bremen/Alemanha. Mestre em Direito pela Universidade de Münster/Alemanha e pela USP/Brasil. Professora Titular do PPG em Ciências do Envelhecimento e Professora Titular de Direito Civil – USJT. Visiting Professor das Universidades de Bonn, Heidelberg/Mannheim, e Bucerius Law School/Alemanha. Advogada e Consultora. Contato: @profa.deboragozzo. E.mail: deboragozzo@gmail.com.

[1] Sugere-se a leitura do texto de: BRANCO, Gerson Luiz Carlos. O culturalismo de Miguel Reale e sua expressão no Novo Código Civil, in: MARTINS-COSTA, Judith. BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 1 e s., especialmente p. 67.

[2] Sugere-se, aqui, a leitura de dois livros elucidativos sobre o tema: 1) GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2003; GRIMBERG, Keila. Código Civil e Cidadania. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

[3] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4744004&numeroProcesso=878694&classeProcesso=RE&numeroTema=809#:~:text=1.790%20do%20C%C3%B3digo%20Civil%2C%20que,1.829%20do%20mesmo%20C%C3%B3digo.&text=Decis%C3%A3o%3A%20O%20Tribunal%2C%20por%20unanimidade,termos%20do%20voto%20do%20Relator.

Acesso em: 1 jul.2024. A autora do presente texto, respeitosamente discorda da decisão. No ano de 2009, inclusive, em razão de questionamentos sobre haver ou não discriminação entre cônjuge e companheiro, defendeu a ideia de que casamento e união estável são entidades familiares não idênticas e, portanto, merecedoras cada uma delas de normas próprias. GOZZO, Débora. Discriminação do Companheiro frente ao Cônjuge: Uma análise do art. 1.790 do Código Civil, in: LEITE, Eduardo de Oliveira. (Coord.). Grandes Temas da Atualidade: União Estável. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2009, vol. 8, p. 25-44.

[4] V. Temas 498 e 809 do STF.

[5] Esta autora entende que o companheiro sobrevivente não integra esse rol, a despeito da posição de inúmeros julgados e doutrinadores que defendem a tese, a partir da decisão do STF de 2017.

[6] Interessante observar que a proibição de clausular a legítima, como estabelecido pelo direito vigente, também foi previsto pelo Anteprojeto de Código Civil de Orlando Gomes, do ano de 1963. Dispunha o art. 791 do referido texto: “Proibição de Cláusulas Restritivas – A legítima não pode ser clausulada de inalienabilidade, ou sujeita a quaisquer encargos ou condições restritivas, inclusive a conversão em outras espécies dos bens que a constituam”. O testador só poderia, conforme o parágrafo único do citado artigo, “impor a incomunicabilidade dos bens que constituem a legítima do herdeiro”. GOMES, Orlando. Código Civil: Projeto Orlando Gomes. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 225-226.