Paulo Doron R. de Araujo**

  1. Introdução

Quem se propõe a ler o texto do Projeto de Lei nº 04/2025, contendo proposta de reforma do atual Código Civil brasileiro, nota aumento de 650% nas referências legais à expressão “função social” em comparação ao texto vigente. São duas referências atuais contra treze no texto proposto, entre função social do contrato e da propriedade.

O aumento expressivo das referências à função social do contrato na proposta de reforma poderia indicar um esforço para dar maior precisão a um conceito jurídico até então aplicado de forma vacilante pela doutrina e jurisprudência. No entanto, essa expectativa não se concretiza, pois, em vez de esclarecer e delimitar seu alcance, o projeto amplia a indeterminação do princípio, aplica-o de forma contraditória e colabora para a consagração do uso meramente retórico do conceito jurídico indeterminado[1]. Esse movimento vai no sentido oposto da interpretação e da compreensão do que efetivamente vem a ser a função social do contrato atualmente no Direito brasileiro.

Ao longo deste brevíssimo estudo, pretende-se abordar a evolução da função social do contrato no Brasil desde sua introdução no Código Civil de 2002, a captura ideológica do debate, a mudança na jurisprudência após a Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019) e os riscos, o descompasso e a inoportunidade da nova proposta legislativa, que, se aprovada como está, importará em grave retrocesso.

  1. Passado tumultuado

A VI Conferência Acadêmica de Inverno da Law Schools Global League (LSGL), realizada na Universidade de Edimburgo, na Escócia, entre 16 e 18 de fevereiro de 2025, teve como tema geral as relações entre Direito em nível global e os atuais conceitos de comunidade e solidariedade (Global Law, Community and Solidarity)[2].  Ali, pudemos apresentar trabalho especialmente desenvolvido para a ocasião, em que tratamos da experiência de mais de vinte anos da introdução de um conceito indeterminado de cunho assumidamente solidarista no Direito Privado brasileiro: a função social do contrato[3].

Tomada certa distância no tempo e olhando para trás, vê-se claramente a oposição de duas correntes de pensamento presentes nos textos doutrinários escritos nos primeiros quinze anos de vigência do art. 421 do Código Civil.

De um lado, os adeptos da escola do Direito Civil Constitucional, inspirados em autores europeus como Canaris[4] e Perlingeri[5], defendem que os contratos são instrumentos para promoção da justiça distributiva. Propõem, assim, a flexibilização das regras pactuadas para proteger a parte mais fraca, restabelecer o equilíbrio contratual, proibir cláusulas abusivas, conservar contratos, proteger direitos difusos e garantir a tutela externa do crédito.

De outro, os defensores da Análise Econômica do Direito, influenciados por Coase[6] e Posner[7], sustentam que a função social do contrato deve reforçar a segurança e previsibilidade jurídica. Para essa corrente, modificar a distribuição de riscos originalmente pactuada comprometeria a estabilidade contratual e, a longo prazo, poderia prejudicar os mais vulneráveis com preços elevados e escassez de bens e serviços.

O debate sobre o preenchimento da função social do contrato no Brasil nas primeiras duas décadas do século XXI ocorreu, portanto, em um cenário de polarização ideológica. Enquanto a corrente progressista ou solidarista prevaleceu na produção acadêmica e argumentação doutrinária, a abordagem econômica encontrou apoio em setores do mercado e da academia, culminando na edição da Lei da Liberdade Econômica.

Já a jurisprudência, diferentemente da doutrina, mostrou-se inicialmente reticente quanto à aplicação da função social do contrato nos primeiros anos de vigência do Código Civil de 2002. Em um estudo abrangente[8], analisamos 9.678 decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) proferidas entre 2004 e 2024, nas quais a expressão “função social do contrato” foi mencionada na ementa. O número de referências só ultrapassou quinhentas por ano a partir de 2015, demonstrando uma crescente adoção do conceito entre magistrados paulistas. Esse crescimento contínuo levou a mais de 1.200 acórdãos citando o princípio em 2024, mais que o dobro das ocorrências registradas em 2015.

Os poucos estudos que analisam a jurisprudência nos primeiros quinze anos de aplicação do princípio indicam que sua utilização teve caráter predominantemente retórico. Na maioria dos casos, a função social do contrato foi mencionada ao lado de outros fundamentos jurídicos suficientes para solucionar a controvérsia, especialmente a boa-fé objetiva[9]. Além disso, os principais domínios em que o princípio foi aplicado envolvem planos de saúde e contratos bancários, com ênfase na revisão judicial das cláusulas. Curiosamente, há também registros de sua utilização como reforço ao princípio do pacta sunt servanda[10], revelando certa ambiguidade em sua aplicação.

A partir de 2014, o panorama político no Brasil começou a se transformar, impulsionando o fortalecimento do discurso liberal. Esse movimento culminou, em 2018, na eleição de um presidente da República e de maioria no Congresso Nacional alinhados com a ideologia de direita. Com isso, os defensores da Análise Econômica do Direito ganharam espaço, promovendo a necessidade de modificar a redação do art. 421 do Código Civil para restringir a interferência judicial nos contratos. Foi aprovada, pois, a Lei da Liberdade Econômica, que alterou o caput e introduziu um parágrafo único ao dispositivo que regula a função social do contrato, procurando reforçar a excepcionalidade da intervenção estatal na esfera contratual privada[11].

Os debates doutrinários reacenderam-se, dividindo opiniões entre aqueles que veem um retrocesso[12], os que acreditam na manutenção do papel coadjuvante do conceito[13] e os que reconhecem a tentativa legislativa de limitar sua aplicação, sem abrir mão da leitura progressista[14]. Quanto ao impacto na jurisprudência, um estudo sobre julgados do TJSP entre 2019 e 2024, analisando 196 casos aplicando o novo parágrafo único do art. 421, revelou que, em 157 deles, as cláusulas contratuais foram mantidas, predominando decisões sobre contratos bancários.

Em nosso estudo recente[15], ampliamos a análise qualitativa para 2.809 julgados do TJSP (2022-2024) e constatamos que a aplicação da função social do contrato permanece majoritariamente retórica (80% dos casos), sendo mais frequente em contratos de planos de saúde (60%) e bancários (25%). Em três de cada quatro vezes, o princípio fundamenta a revisão contratual.

Dois aspectos, porém, apontam uma mudança recente relevante: na jurisprudência sobre contratos bancários, a maioria das decisões passou a utilizar a função social para manter o conteúdo contratual e, nos casos em que o princípio foi aplicado em conjunto com outro fundamento, um terço resultou na manutenção das avenças.

  1. Presente discreto

O balanço dos vinte anos de aplicação da função social do contrato revela que sua indeterminação conceitual facilitou a apropriação ideológica do debate, transformando-o em reflexo de disputas mais amplas sobre o papel do Estado na esfera privada. A inexistência de parâmetros claros favoreceu a predominância da corrente solidarista na jurisprudência, ampliando as hipóteses de aplicação do princípio. Contudo, com a Lei da Liberdade Econômica, observa-se um movimento contrário em alguns tipos contratuais, reforçando a força obrigatória dos pactos.

Entre os campos em que a função social encontrou aplicação recorrente, destacam-se os litígios envolvendo planos de saúde, onde é amplamente utilizada para fundamentar decisões contra a negativa de cobertura de tratamentos. Já nos contratos bancários, embora o princípio siga presente, nota-se um redirecionamento para justificar a manutenção dos termos originalmente pactuados, alinhando-se às diretrizes da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão judicial.

De um modo geral, seja na fase de prevalência da interpretação solidarista, seja na recente inclinação liberal, os dados indicam que a função social do contrato raramente foi determinante para o Direito Contratual brasileiro, sendo invocada, na grande maioria dos casos, de forma retórica. O resultado é que sua influência concreta tem se restringido a nichos específicos, mais para flexibilizar contratos, mas também para reforçar sua estabilidade.

Isso não significa, contudo, que o princípio seja irrelevante. Há situações excepcionais e juridicamente complexas em que sua aplicação se justifica de maneira substancial, como apontado em estudos empíricos anteriores[16].

  1. Futuro sombrio

O projeto de reforma do Código Civil parece ignorar as duas décadas de controvérsias que, à custa da segurança e da efetividade jurídicas, levaram a função social do contrato a um papel secundário, com nichos de aplicação mais definidos e uma utilidade reduzida, porém mais clara. A maior evidência disso é a previsão de que a violação da função social acarreta a invalidade do contrato e de suas cláusulas (art. 421, § 2º do Projeto)[17].

Como já exposto, a corrente solidarista predominante nos primeiros quinze anos de vigência do Código consolidou a visão de que a função social opera tanto no âmbito interno da relação contratual quanto externamente, afetando outros agentes e fatores sociais (eficácias interna e externa) [18]. Ainda que haja debate sobre sua aplicação dentro da relação entre as partes, não há controvérsia quanto ao fato de que seu domínio sempre esteve na esfera dos efeitos contratuais, e não no plano da validade.

Ao introduzir essa mudança, o Projeto corre o risco de reativar o embate ideológico que, em grande parte, esvaziou a função social do contrato como ferramenta prática no Direito Contratual brasileiro. Além disso, insiste em trilhar um caminho inexplorado por outras nações de tradição romano-germânica, repetindo o equívoco do legislador de 2002, que gerou mais polêmica do que soluções concretas para as relações contratuais no Brasil.

Outra proposta questionável surge no inciso IV do art. 475-A, que trata do adimplemento substancial, permitindo ao devedor alegá-lo para evitar a resolução do contrato pelo credor, com base na preservação da função econômica e social do pacto[19]. No Direito brasileiro, essa teoria sempre esteve fundamentada na boa-fé objetiva, sendo esse o critério predominante na doutrina e jurisprudência para avaliar sua aplicação. Ao incluir a função social como justificativa legal, o legislador apenas reproduz a retórica comum na jurisprudência, incentivando o emprego supérfluo do conceito. Além disso, ao ampliar os fundamentos do adimplemento substancial, compromete-se sua aplicação excepcional, contrariando a regra tradicional da resolução contratual em caso de inadimplemento.

Há também problema no inciso I do parágrafo único do art. 479, que utiliza a função social para justificar a impossibilidade ou irrazoabilidade da revisão contratual, conduzindo à resolução do contrato[20]. A contradição é evidente: enquanto no adimplemento substancial a função social serve para preservar o contrato, na revisão contratual ela se torna fundamento para sua extinção, mesmo sem solicitação da parte prejudicada.

Essa inconsistência legislativa transmite ao aplicador do Direito a ideia de que o princípio pode ser usado para qualquer propósito, abrindo caminho para duas consequências indesejáveis: ou sua utilização se torna meramente retórica, contrariando a ideia de que a lei não contém palavras inúteis, ou ele se transforma em um instrumento genérico para justificar qualquer decisão, favorecendo o arbítrio judicial e comprometendo a segurança jurídica.

Essa indefinição conceitual se repete no art. 609-F[21], que submete a utilização de inteligência artificial em serviços digitais a padrões éticos baseados na boa-fé e na função social do contrato. O mesmo ocorre no Livro de Direito Digital, que adota a função social como princípio norteador dos contratos digitais e sua regulação, sem oferecer critérios objetivos para sua aplicação. Esse uso impreciso reforça a fragilidade do conceito, que, em vez de trazer segurança e previsibilidade, amplia a margem para decisões subjetivas e contraditórias.

A trajetória conturbada da função social do contrato ao longo de vinte anos consolidou-a como o menos relevante dos princípios contratuais, tanto entre os novos (boa-fé objetiva e equilíbrio contratual) quanto diante dos tradicionais (pacta sunt servanda, res inter alios acta e liberdade contratual). A jurisprudência raramente a utiliza como fundamento decisivo, e, ainda assim, sua presença no debate doutrinário e legislativo, mesmo que retórica, acabou por lhe conferir algum contorno conceitual. Embora sua utilidade prática seja limitada, ao menos não tem contribuído para aumentar a insegurança jurídica, como evidenciado na aplicação recente a casos envolvendo contratos bancários.

O Projeto de reforma do Código Civil, no entanto, desconsidera essa evolução e reforça o uso retórico do princípio, aplicando-o de forma contraditória: ora para preservar contratos que deveriam ser resolvidos, ora para extinguir aqueles que se pretendia manter. Além disso, as formulações abertas e genéricas repetidas em mais de uma dezena de lugares no texto proposto transmitem a ideia de uma aplicação arbitrária, aumentando a incerteza jurídica.

Diante disso, é essencial que, durante a tramitação no Congresso Nacional, os parlamentares corrijam essa abordagem e mantenham a função social do contrato dentro dos limites já estabelecidos pela prática jurídica. Caso contrário, o Direito Civil brasileiro enfrentará um cenário de maior insegurança, comprometendo a previsibilidade e a estabilidade das relações contratuais.

 

** Graduado (Prêmio Jovem Jurista – 2005) e Doutor em Direito Civil (summa cum laude – 2011) pela Faculdade de Direito da USP. Desde 2006, professor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito SP). Professor visitante no Instituto Tecnologico Autono de Mexico (2017), da Univertá degli Studi di Torino (2019), do King’s College London (2023) e na Stockholm University (2025). Presidente do Comitê de Responsabilidade Civil da International Bar Association (IBA – 2021-2025). Vice-presidente da Comissão Especial de Estudos sobre o Projeto de Reforma do Código Civil, do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP – 2024-2026). Membro do IDiP. Advogado e árbitro.

[1] Vide: ARAUJO, Paulo Doron R. de et al. 2. Obrigações e Contratos. In: MARTINS COSTA, Judith; MELO, Diogo Leonardo Machado de; ARAUJO, Paulo Doron R. de [Coord.]. Análise Preliminar do Anteprojeto de Reforma do Código Civil. Revista do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo. Vol. 38.1, Ano 27, São Paulo, jul. 2024, pp. 37-44.

[2] Vide https://lawschoolsgloballeague.com/events/call-for-papers-lsgl-academic-conference-18-february-2025/, acesso em 24.02.2025.

[3] ARAUJO, Paulo Doron R. de. Solidarism applied to Private Law: the Case of the Social Function of Contracts in Brazil (February 18, 2025). University of Edinburgh School of Law | LSGL Research Paper No. 2025/02, disponível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=5064144  ou http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.5064144. A versão em português do texto, ainda no prelo, aguarda aprovação final para publicação em breve.

[4] CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Trad. SARLET, Ingo Wolfgang; MOTA PINTO, Paulo.  Coimbra, Almedina, 2003.

[5] PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.

[6] COASE, Ronald H. The Problem of Social Cost. The Journal of Law & Economics. Vol. 3 (Oct., 1960), pp. 1-44.

[7] POSNER, Richard. Frontiers of Legal Theory. Cambridge: Harvard University Press, 2004.

[8] ARAUJO, Paulo Doron R. de. Ob. cit. p. 13.

[9] GARCIA, Rodrigo Saraiva Porto. Um estudo de caso da aplicação autônoma do princípio da função social do contrato. Revista de Direito Privado, vol. 85, jan. 2018, p. 85-102.

[10] TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. Uma Década de Aplicação da Função Social do Contrato: Análise da Doutrina e da Jurisprudência Brasileiras. Revista dos Tribunais. vol. 940/2014. Fev / 2014, p. 49.

[11] Art. 421.  A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.

Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.

[12] BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Comentário ao artigo 421 do Código Civil: a função social do contrato na Lei da Liberdade Econômica. In: Martins-Costa, Judith; Nitschke, Guilherme Carneiro Monteiro (org.). O direito privado na lei da liberdade econômica. São Paulo: Almedina, 2022, pp. 459-496.

[13] MARTINS, Fábio Floriano Melo. E agora, função social do contrato?. In: MARTINS-COSTA, Judith; MARTINS, Fábio; CRAVEIRO, Mariana; XAVIER, Rafael (Orgs.). Boletim IDiP-IEC. Vol. V, Canela – São Paulo. Publicado em: 12.12.2023. Disponível em: https://canalarbitragem.com.br/v-boletim-idip-iec/eagora-funcao-social-do-contrato/.

[14] FERNANDES, Micaela Barros Barcelos. Impactos da Lei 13.874/2019 no Princípio da Função Social do Contrato: A Liberdade Econômica em Foco. Revista dos Tribunais. vol. 1010/2019. p. 149-179. Dez / 2019.

[15] ARAUJO, Paulo Doron R. de. Ob. cit. pp. 14-17.

[16] GARCIA, Rodrigo Saraiva Porto. Ob. cit. pp. 99-101.

[17] Art. 421 (…)

  • 2° A cláusula contratual que violar a função social do contrato é nula de pleno direito.

[18] Por todos, ver GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função social do contrato: os novos princípios contratuais. São Paulo: Saraiva, 2004.

[19] Art. 475-A. O adimplemento substancial do contrato pelo devedor pode ser oposto ao credor, evitando a resolução, observando-se especialmente: (…) IV – a possibilidade de conservação do contrato, em prol de sua função social e econômica.

[20] Art. 479 (…)

Parágrafo único. Na hipótese em que o devedor tenha optado por pedir a revisão do contrato, nos termos deste artigo, poderá a outra parte, em resposta ao pedido, requerer a sua resolução, cabendo-lhe demonstrar, nesse caso, que, nos termos do artigo antecedente, a revisão:

I – não é possível ou não é razoável a sua imposição em razão das funções social e econômica do contrato;

[21] Art. 609-F. A utilização de inteligência artificial na prestação do serviço digital deve ser identificada de forma clara e seguir os padrões éticos necessários, segundo os princípios da boa-fé e da função social do contrato.