Tula Wesendonck[1]

O ano que marca os vinte anos de vigência do Código Civil pode ser também o da modificação de boa parte do Direito Civil brasileiro. No segundo semestre de 2023, a Comissão instituída pelo Senado Federal iniciou um processo, ainda em curso, para a “revisão e atualização do Código Civil”. Subdividida em subcomissões, sob relatorias e coordenações diferentes, a Comissão é formada por juízes, advogados, professores, promotores e assessores jurídicos que apresentam as mais diversas filiações intelectuais.[2]

Os textos apresentados pela subcomissão de Responsabilidade Civil têm gerado preocupação na comunidade acadêmica[3], seja por propor “novas e revolucionárias” soluções, seja por apresentar institutos jurídicos (ou sua alteração) em descompasso com a realidade jurídica e social e a tradição do pensamento jurídico brasileiro. Aborda-se, neste artigo, alguns dos problemas que permeiam a disciplina da Responsabilidade Civil[4].

O relatório da Exposição de Motivos da respectiva subcomissão[5] justifica uma “revisão e atualização” do Código Civil sob o argumento de que “a quase totalidade dos dispositivos do Código Reale projeta o conteúdo do Código Civil de 1916, apenas com pequenas alterações”. Diz, ainda, que “de relevante o CC/2002 tão somente inovou na cláusula geral do risco (parágrafo único do art. 927), na redução equitativa da indenização (parágrafo único, art. 944)”. E conclui haver “um desajuste temporal de mais de 100 anos” entre o texto do Código de 2002 e a realidade atual.

O argumento é factualmente insustentável. Basta comparar o texto do Código de 2002 com o anterior, assim como com Códigos contemporâneos que são considerados avançados na sua técnica legislativa, por conta de suas cláusulas gerais de responsabilidade objetiva e subjetiva, hipóteses específicas de responsabilidade civil objetiva, modalidades de ilicitude fundadas na violação do direito alheio e no exercício abusivo, disposições sobre a reparação de danos etc.

O texto apresentado inicialmente trazia o deslocamento das disposições constantes nos artigos 186 e 187 do Código atual para a matéria de responsabilidade civil[6], retirando-os da Parte Geral, talvez pela crença de que a única possibilidade de remoção do ilícito[7] seja a responsabilidade civil. Porém, como é sabido, esta não é a única consequência da ilicitude, como já fora bem tratado pelo legislador de 2002 ao dispor no art. 187 de uma modalidade de ilicitude independente ou desvinculada da ocorrência de dano, para além da introdução na legislação civil de mais de uma modalidade de ilicitude, enquadrando sistematicamente o exercício jurídico ilícito (incluso o abusivo) na Parte Geral do Código.[8]

Aí não cessam os equívocos. Para exemplificar de modo concreto as preocupações suscitadas pela proposta de reforma, podem ser citados os enunciados que tratam sobre a ilicitude civil, sendo o ato ilícito um dos pressupostos do dever de indenizar.

O texto apresentado no relatório final mantém as disposições sobre ilicitude na Parte Geral, todavia altera a redação dos artigos 186 e 187[9]. Já no art. 186 se percebe o descuido e a confusão redacional. No caput parece sobrar uma vírgula, o que dificulta o entendimento, e caracteriza a ilicitude como descumprimento “de dever” em vez de utilizar a expressão “do dever” jurídico.

O primeiro parágrafo do art.186 define que a “ilicitude pode provir de fato natural” – como se a imputação de consequências jurídicas não fosse sempre a “alguém”, e não a “algo” – e inclui no sistema de ilicitude uma discussão tão danosa quanto desnecessária sobre a intencionalidade para sua caracterização. O retrocesso e a falha lógica são evidentes.

Já no regime do Código de 1916, a referência à intencionalidade era dispensada pela lógica de que se há ilicitude pela conduta menos gravosa, que é a culpa, por óbvio a conduta mais gravosa, marcada pela intencionalidade, será também considerada como ilícito. O mais grave, porém, é confundir ilicitude (pressuposto) com culpa (fator de atribuição). Além disso, o dispositivo destaca que a ilicitude pode ocorrer em “ambiente natural ou virtual”, como se fosse necessária essa distinção. O parágrafo termina com ponto e vírgula em vez de ponto final. Embora pareça preciosismo, salta aos olhos a desatenção que revela pressa na elaboração do texto, sem reflexão e revisão.

No §2º do art. 186, há menção à ilicitude “em razão de relação pré-contratual, contratual ou pós-contratual”, remetendo a matéria aos artigos 389 a 420. É desnecessária essa disposição “classificatória”, pois abandona a tradição de regular a matéria de modo genérico, aos moldes da cláusula geral do art. 159 do CC de 1916 e do art. 186 do Código vigente, cuja estrutura redacional permitiu a evolução da disciplina ao longo de mais de um século.[10] Por outro lado, enseja a dúvida: não poderia a ilicitude provir de outros atos e negócios jurídicos que não o contrato?

No art. 186-A, cria-se uma modalidade de ilicitude subjetiva (isto é, informada pela culpa como fator de atribuição) restrita à pessoa natural o que leva ao questionamento: a pessoa jurídica não pratica ato ilícito culposo? Ao se referir à culpa, perde também o reformador a oportunidade de incluir a imperícia como uma das expressões da culpa.

No art. 187, o texto inclui uma alínea elencando as hipóteses em que haverá ilícito independentemente da prova de culpa. Ao fazê-lo, deixa de fora exercício jurídico ilícito (abuso do direito, exercício disfuncional de posição jurídica), o qual é tratado somente no caput do art. 187, na sequência do art. 186-A, dispositivo que trata da ilicitude fundada na culpa. Assim, da leitura do art. 187-A fica a dúvida se o reformador quis condicionar o abuso de direito à culpa ou se houve mais um descuido ao redigir o texto.

Além disso, o art. 187-A prevê no inciso primeiro que haverá ilícito independentemente de culpa quando “a atividade, por sua natureza, causar risco”. A regra é problemática. Dirigir um automóvel, manejar um cortador de grama, fabricar um medicamento seriam atividades ilícitas? A relação entre uma atividade e o risco não é de “causação”, motivo pelo qual o verbo implicar, tal como utilizado pelo atual parágrafo único do art. 927, seria de melhor técnica. Há confusão entre pressuposto e fator de atribuição.

No inciso II do art. 187-A, considera-se o ilícito independente de culpa quando o incapaz causa dano. Da leitura do dispositivo surgem muitas dúvidas: todo e qualquer dano gerado pelo incapaz caracteriza hipótese de ilícito sem culpa? E se o incapaz agir sob uma das hipóteses de excludente de ilicitude?  O responsável pelo incapaz  responderá mesmo que a sua ação não pudesse ser caracterizada como uma conduta ilícita?

O inciso III do art. 187-A inclui entre a ilicitude independente de culpa as hipóteses de omissão da pessoa que tem o dever especial de evitar um dano. Nesse passo cabe questionar: quem seriam essas pessoas? Agentes de segurança? Os pais ou os filhos que devem prestar assistência aos filhos ou ascendentes e não o fazem; quando se omitirem, praticarão ilicitude independente de culpa por abandono afetivo ou abandono afetivo inverso?

Por fim, o inciso IV do art. 187-A inclui uma modalidade de ilícito independente de culpa pelo fato da coisa ou animal. Quanto à possibilidade do fato do animal gerar responsabilidade ao proprietário, possuidor ou guardião não é em si novidade (já estava nas fontes romanas); todavia o inciso amplia a hipótese de ilicitude para incluir o fato de coisas de maneira genérica sem deixar claro a quem será imputada a ilicitude: se ao proprietário, ao possuidor, ao guardião, ou se criou uma hipótese de solidariedade sem mencioná-la.  Sobre esse dispositivo é possível questionar: ao se emprestar um machado, um automóvel ou um cavalo para alguém, o dano provocado por meio desses objetos receberá o mesmo tratamento? A responsabilidade por dano derivado de automóvel em acidentes de trânsito passará a ser sempre apurada independente de culpa?

A resposta a todas as perguntas revela confusão entre ilicitude, que é contrariedade ao direito e é pressuposto do dever de indenizar; fator de atribuição (culpa e risco); nexo de imputação da responsabilidade civil por fatos de terceiros, fato da coisa, fato do animal etc.

Contudo os problemas não param na regulação da ilicitude. Foram inseridos diversos artigos que reformulam completamente o instituto da Responsabilidade Civil. A leitura das propostas gera perplexidade. Dentre os vários desacertos, merece destaque um ponto que parece confundir os critérios para definição do valor indenizatório e a fixação de alimentos, que levam em conta a possibilidade e necessidade.

No art. 944, é incluído um parágrafo primeiro que amplia as possibilidades de redução equitativa da reparação, referindo que se a indenização privar do necessário o ofensor ou as pessoas que dele dependam, poderá o juiz reduzir equitativamente a indenização. A proposta confunde a fixação ou arbitramento da indenização com dificuldades próprias do processo de execução na hipótese de inadimplemento da obrigação de indenizar. A discussão em torno da preservação do mínimo existencial é tema que tradicionalmente pertence a outra seara, normalmente sendo debatida em torno dos conceitos de bem de família, bens impenhoráveis e outros temas que dizem respeito à fase de execução da obrigação de indenizar.

Para concluir, caberia lembrar a necessidade de coerência sistemática inerente ao Direito das Obrigações, do qual a responsabilidade civil é um capítulo.

Uma reforma legislativa deve ser realizada de maneira cautelosa e equilibrada, sem atropelos e precipitações. Tome-se o exemplo da tentativa de reforma da responsabilidade civil no Código Civil francês, a partir dos anos 2000[11]. A discussão perdura por cerca de 20 anos, período de vigência do nosso jovem Código Civil!

Uma reforma não pode redundar na desagregação da ordem e unidade do Código Civil.[12] No entanto, não é isso que ocorre com as propostas apresentadas.

Mesmo quem defende o trabalho da subcomissão, admite haver dissonância entre as propostas das subcomissões de obrigações e de responsabilidade civil[13]. Afirma-se que, diante desse impasse, a questão é saber qual das propostas melhor se ajusta à sociedade atual. Trata-se de afirmação reveladora sobre os conflitos internos da comissão, algo incompatível com a coerência e unidade necessária em um processo dessa envergadura[14].

Não é demasiado referir a seriedade que deve acompanhar o processo legislativo, pois as decisões tomadas por quem sugere a redação podem impactar substancialmente a vida das pessoas, a segurança jurídica e a própria economia do país. Alterações precipitadas desvirtuam o sistema jurídico e o pior cenário seria o da alteração de um código ainda jovem, que possui dispositivos ainda pouco compreendidos.

Essa coerência, ordem e unidade necessárias para um projeto tão importante quanto é o da “constituição do cidadão comum” tem relevância que vai para além da vida dos juristas e afeta as relações intersubjetivas das pessoas, das empresas e das entidades da sociedade civil. A reflexão necessária para que não se perca a unidade sistemática e a coerência não é mera preocupação acadêmica, mas também prática, tendo em vista que a estabilização dos efeitos da codificação depende de longos anos de conformação social, podendo ser muito caro para a sociedade uma regulação que não corresponda à melhor técnica e que provoque deformações no sistema. Não é por outra razão que desde a independência do Brasil tivemos dois Códigos Civis, um em 1916 e outro em 2002, apesar de quase uma dezena de Constituições.

[1] Professora de Direito Civil da Graduação e do Corpo Docente Permanente do PPGD da Faculdade de Direito da UFRGS. Advogada.

[2] Diferentemente do Código Civil vigente que foi elaborado por uma comissão de juristas preocupados com a unidade sistemática do Direito Civil, conforme informado em: MARTINS-COSTA, Judith e BRANCO, Gerson. Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2002.

[3] Sobre o assunto sugere-se a consulta ao texto da Prof.ª Gisela Sampaio da Cruz Guedes intitulado

“O perigo das implicações sistêmicas provocadas por reformas legislativas: o exemplo da proposta de reforma do art. 942 do Código Civil” disponível no site https://canalarbitragem.com.br/vii-boletim-idip-iec/o-perigo-das-implicacoes-sistemicas-provocadas-por-reformas-legislativas-o-exemplo-da-proposta-de-reforma-do-art-942-do-codigo-civil/ acesso em fevereiro de 2024. No texto, a Prof.ª Gisela alerta para o risco de se estar diante de uma alteração legislativa que redundaria num “sistema caótico”.

[4] A proposta de revisão e atualização do Código Civil apresentada pela subcomissão de Responsabilidade Civil foi objeto de exame e discussão na Comissão de Juristas. Que. em 26 de fevereiro de 2024. apresentou um relatório final no Senado, com uma proposta de redação para alteração do Código Civil (Informação disponível no site https://legis.senado.leg.br/comissoes/arquivos?ap=7996&codcol=2630 acesso em fevereiro de 2024).

[5] Informação disponível no site https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/b02f40e3-8cb9-4c02-8a13-98bdd1a05d93 p. 5, acesso em fevereiro de 2024.

[6] Informação que pode ser conferida na página 114 do relatório disponível no site https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/2e04a747-3186-43a3-a61e-f0a5f68b8056 acesso em fevereiro de 2024.

[7] A responsabilidade civil é uma das modalidades da remoção do ilícito. Essa matéria é muito bem tratada no texto MARTINS-COSTA. A linguagem da responsabilidade civil. In: BIANCHI, José Flávio; MENDONÇA PINHEIRO. Rodrigo Gomes de; ARRUDA ALVIM, Teresa (Coords.). Jurisdição e Direito Privado: Estudos em homenagem aos 20 anos da Ministra Nancy Andrighi no STJ. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 389-418.

[8] MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do abuso do Direito e o rumo indicado pela boa-fé. In: TEPEDINO, Gustavo (org.). Direito Civil Contemporâneo – Novos Problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, p. 57-95.

[9] O texto pode ser consultado a partir da página 19 do documento apresentado pela relatoria-geral, a se ver:

“Art. 186. A ilicitude civil decorre de violação a direito, ou de descumprimento de dever reconhecido.

  • 1º A ilicitude pode provir de fato natural, de atividade ou ação humana, intencional ou não, ocorrida em ambiente natural ou virtual;
  • 2º. À ilicitude civil verificada em razão de relação pré-contratual, contratual ou póscontratual, além das disposições do Título I, aplica-se o disposto nos artigos de 389 a 420 deste Código.

Art. 186-A. A pessoa natural capaz para os atos da vida civil que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito, comete ato ilícito.

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos por seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Art. 187-A. Haverá ilícito independentemente de prova de culpa, quando:

I – a atividade, por sua natureza, causar risco;

II – a ação de pessoa incapaz causar dano;

III – tendo a pessoa o dever especial de evitar o dano, omite-se;

IV – do fato da coisa ou do animal derivar dano.”

[10] A respeito da importância da cláusula geral, cabe referir a obra COUTO E SILVA, Clóvis. Princípios fundamentais da Responsabilidade Civil em Direito brasileiro e comparado, Fernanda Escobar Bins trad. – Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2022. Clóvis do Couto e Silva referia na p. 58 que, a exemplo do art. 1.382 do Código Francês, o Direito Civil brasileiro também possuía uma cláusula geral situada no art. 159 (que corresponde ao art. 186 do Código atual). Mais adiante, na p. 66, o autor referia que em razão do conteúdo do art. 159, os juízes teriam a possibilidade de desenvolver mais livremente os casos de reparação.

[11]Em 2005 foi composto o primeiro grupo dirigido por Pierre Catala e Geneviève Viney para reforma do Direito das Obrigações. Em 2008, outro grupo de trabalho dirigido por François Terré foi instaurado. Diante das propostas de alterações apresentadas o Ministério da Justiça apresentou um projeto de reforma da responsabilidade civil depois de uma consulta pública realizada em 2016. Em julho de 2020 foi apresentada a proposta de Lei n. 678 sobre a reforma da Responsabilidade Civil, estando ainda em curso o processo de reforma do Código francês.  Sobre a reforma francesa é possível conferir o desenvolvimento do processo na obra CERQUEIRA, Gustavo et MONTEILLET, Vanessa – Le Projet de Réforme du Droit de la Responsabilité Civile – Études à Lumière de la Proposition de Loi Senatoriale du 29 Juillet 2020, Paris: Dalloz, 2021, especialmente nas p. 1 e 2 e no Anexo I e JOURDAIN, Patrice Les enjeux dúne reforme de la responsabilité civile in La Responsabilité – Archives de Philosophie du Droit, Tome 63, Paris: Dalloz, 2022, p. 276 e ss.

[12] Exemplo dessa desagregação pode ser examinada na matéria publicada na Revista Veja no dia 1º de março no artigo de Matheus Leitão, intitulado “O principal obstáculo para a reforma do Código Civil”, que noticia os conflitos entre os membros da Comissão, que além de não terem unidade quanto aos propósitos da elaboração do Código Civil, possuem problemas graves de relacionamento que dificultam uma adequada coordenação. A matéria pode ser acessada no site https://veja.abril.com.br/coluna/matheus-leitao/o-principal-obstaculo-para-a-reforma-do-codigo-civil/ acesso em março de 2024.

[13] A defesa pode ser vista em texto publicado na coluna Migalhas de Responsabilidade Civil https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/401560/ampliacao-do-alcance-objetivo-e-subjetivo-da-responsabilidade-civil acesso em fevereiro de 2024.

[14] Os conflitos foram noticiados na publicação da Revista VEJA referida acima.