Fernanda Mynarski Martins-Costa[1]

Negócios jurídicos condicionais têm em seu âmago a incerteza. Aos figurantes o futuro é incerto, e consequentemente permeado de riscos. Situações há em que os potenciais celebrantes de um negócio julgam ser menor o risco de constituir um vínculo jurídico antes da ocorrência de um evento futuro incerto – que entendam ser necessário para execução do negócio – do que nenhum negócio celebrarem, então perdendo-se uma boa “oportunidade” negocial. É eminentemente um interesse prático diante de uma incerteza de cunho objetiva que deu base à construção da figura jurídica chamada condição. Essa consiste na cláusula pela qual as partes deslocam a exigibilidade de um ou todos os efeitos de um negócio jurídico em razão de um fato futuro e incerto, como determina o art. 121 do Código Civil.

Conquanto seja a condição uma figura jurídica tradicional nos ordenamentos de civil law, vem sendo utilizada na prática em negociações complexas derivadas da common law, sobretudo nos contratos de Fusões & Aquisições. Diante desta mudança inevitável (e necessária) da práxis, novos desafios apresentam-se ao intérprete.

Pense-se, por exemplo, na condição em benefício do comprador em contrato de M&A segundo a qual a sociedade-alvo deve ter cumprido com todas as Leis Ambientais até a data do Fechamento. No período interino surge uma suspeita de ocorrência de violação daquela Lei, mediante uma denúncia anônima na ouvidoria da sociedade-alvo, sem documentos lhe dando suporte. Paralelamente, no desenrolar do período interino, mesmo já sabendo desta suspeita, o comprador, por diversas vezes, tenta renegociar informalmente o contrato, o que vem a ser negado pelo vendedor no dia do Fechamento. Valendo-se da referida suspeita, o comprador afirma que não procederá à execução do contrato, pois a condição não teria sido implementada. Poderia, então, o comprador exercer seu direito de saída (right to walk away) pela não satisfação da condição de inexistência de violação da Lei Ambiental? A determinação sobre o implemento da condição unilateral depende apenas do julgamento da parte que se beneficia desta cláusula?

Ou ainda, vejamos a hipótese em que havia condição pactuada em contrato de M&A o qual, em seu considerandum, já dizia que o tônus da operação era a aquisição pelo comprador do controle acionário da sociedade-alvo. Assim, estipulou-se como condição em benefício do comprador a expressa renúncia, ou não exercício, pelos minoritários, do direito de preferência relativo às ações a serem alienadas até a data do Fechamento.

Ocorre que, durante o período interino, o comprador não se manifesta a respeito da – então já evidente – não implementação daquela condição. Chega-se à data do Fechamento, e o vendedor entende não ter ocorrido o implemento. O comprador, então, nesta ocasião pós-Fechamento, declara renunciar a condição. Questiona-se: o comprador pode a qualquer tempo do iter contratual exercer a renúncia? A renúncia pode desvirtuar o próprio objeto do contrato que antes era assegurar o controle e agora, com a renúncia, seria apenas a aquisição de parcela minoritária da sociedade-alvo?

Diante dessas questões práticas, nessas notas pretendo avaliar as peculiaridades advindas das condições unilaterais em contratos de M&A, principalmente sob a ótica de três questões: o beneficiado pela condição unilateral pode renunciá-la? Se sim, até que momento do iter contratual? E qual o critério de avaliação da realização, ou não, de uma condição unilateral?

Para respondê-las é preciso estar consciente que a condição, tradicionalmente, foi elaborada em vista de negócios bilaterais – ou seja, pressupondo que os dois figurantes teriam interesse comum na dissipação da incerteza advinda de evento futuro e incerto; logo, nenhum poderia, por isso, renunciá-la. O que muitas vezes ocorre na prática, no entanto, é que a condição pode também ser aposta ao negócio no interesse de um único figurante e que nada há de ilícito em conferir a este o poder de renunciá-la.

Em contratos complexos de compra e venda de participações acionárias observa-se que, muitas vezes, a seção que contempla as “condições precedentes” seja dividida em três distintas cláusulas, a saber: das condições comuns às partes; das condições em benefício do comprador; e das condições em benefício do vendedor. Tome-se, como exemplo, a condição precedente em benefício do comprador segundo a qual deve haver a renúncia dos acionistas minoritários de seu direito de preferência estatutário quando da alienação das ações por algum de seus acionistas; ou a condição que exige a aprovação da operação por fornecedores da sociedade-alvo cujos contratos tenham cláusula de denúncia por alienação de controle. Nessas hipóteses, há quem diga que “a condição será, para essa parte, uma forma de autoproteção jurídica. Para a outra parte ou para as outras partes, essa cláusula será apenas um custo do contrato”[2].

A condição unilateral tem sido objeto de estudos dogmáticos sobretudo no direito italiano[3], com algumas vozes no direito português[4], mas ainda não no brasileiro, cuja doutrina não se tem ocupado do tema. Naqueles ordenamentos, discute-se a viabilidade jurídica da condição unilateral[5] ou incompatibilidade com o regime condicional[6], as possíveis teorias para justificá-las e a possibilidade de a elas renunciar[7].

Apesar de a doutrina brasileira estar, por ora, longe destas discussões, certo é que a celebração de condições unilaterais, embora fato corriqueiro, não é regulado de forma específica pelo nosso Código Civil, de modo que a renúncia e outras vicissitudes da condição unilateral não são objeto de disciplina legal. Essa circunstância não deslegitima sua celebração: muito pelo contrário.

Como é sabido, o Código enfatiza a atipicidade dos contratos, desde que observadas as suas normas gerais (art. 425 do Código Civil). A regra é, pois, a liberdade na modelação dos tipos negociais e no preenchimento de seu conteúdo.

Surgindo questão derivada da pactuação de condição unilateral, o ponto crucial é: com a unilateralidade da condição, surgem posições jurídicas potestativas aos beneficiados? E, ainda: se assim for, em que medida podem ser exercidos os poderes daí gerados?

Creio que a resposta para a primeira questão é positiva: sim, podem surgir posições potestativas. Nada mancha sua licitude se for observado o exercício funcional de posições jurídicas, ou seja, os limites do art. 187 do Código Civil. A funcionalidade aqui deve ser entendida por incerteza objetiva. O caráter unilateral da condição é a “porta de entrada” para a conjunção de interesses, é o interesse inicial subjetivo. Após, quando a outra parte anui com a subordinação da execução do negócio ao evento eleito pela parte beneficiada, a condição ganha caráter objetivo, ainda que com aparência de subjetiva.

Frisa-se esta assertiva não por acaso. É a manutenção do caráter objetivo da incerteza que justifica a aplicação do regime condicional, cujo âmago, como se disse, reside na incerteza objetiva. Na medida em que o figurante contrário anui com a incerteza do outro, passam ambos a compartilhar da mesma a incerteza, com finalidade não satisfativa para os resultados pretendidos pela parte beneficiada, mas visando à constituição do vínculo e à projeção futura da execução contratual. Ou seja: na condição em benefício do comprador de que os minoritários renunciem seu direito de preferência, o vendedor não tem interesse próprio em sua realização; porém, quando o comprador a exige como condição do negócio, passa o vendedor a ter interesse. O interesse não está na realização da operação para manter o controle do comprador na operação, mas em que a operação se realize.

Assim, polarizada está a renúncia da condição unilateral à possibilidade de execução contratual tal qual seria se o evento futuro incerto selecionado por uma das partes ocorresse. A subjetividade é inicial. A aceitação de sua renúncia, portanto, impõe limites ao beneficiário. A subjetividade não pode, na prática, tornar a condição puramente potestativa.

Essas constatações levam a várias consequências práticas, interessantes sobretudo àqueles que operam com contratos de M&A. A regra é: a renúncia à condição unilateral não pode ser exercida por quem dela se beneficia de modo ou em momento destinado a prejudicar o direito de outra parte. Dessa regra surgem as seguintes consequências.

Em primeiro lugar, tem-se o momento do exercício da renúncia. O poder de renúncia da condição unilateral só pode ser exercido durante a pendência da condição[8]. Caso se aceitasse o exercício fosse posterior, estar-se-ia abrindo possibilidades para um exercício disfuncional do direito de saída decorrente da renúncia, como no segundo exemplo acima referido.

Em segundo lugar, a averiguação da ocorrência de uma condição unilateral não deve ser analisada em termos meramente subjetivos. Como aqui reiteradamente enfatizado, há um caráter objetivo nesta condição, o qual deve ser levado em consideração justamente no momento em que se verifica se as Exigências de Fechamento – isto é, situações de fato eleitas pelas partes que subordinam os efeitos plenos do negócio (transferências das participações societárias vs. pagamento do preço) – ocorreram, ou não, no mundo fático: i.e. na data do fechamento. Tome-se, aqui, o primeiro exemplo citado, o comprador sabia da existência da suspeita de violação à Lei Ambiental, nada o fez, e pelo insucesso na tentativa de renegociar os termos da operação, utiliza a suspeita como impedimento da operação. Acontece que “suspeitar da existência de uma violação” não é o mesmo que “configurar uma violação à lei”. Essa é apurada segundo critérios objetivos, como, entre outros, a existência de sentença transitada em julgado, ou a existência de processo judicial ou administrativo apurando tal violação.

Em suma: as condições unilaterais, figuras utilizadas comumente na prática de M&A, são, prima facie lícitas no Direito brasileiro, e submetem-se em princípio ao regime condicional, no que couber. Delas derivam posições jurídicas potestativas ao beneficiado que não são ilimitadas, devendo sempre serem respeitadas no seu manejo as balizas de licitude e do exercício funcional do direito.

 

[1] Doutora em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Sócia de Judith Martins-Costa Advogados.

[2] GERALDES, João. Sobre o Poder de Renunciar Unilateralmente a Condições Suspensivas. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 29, ano 8, p. 299-337, 2021, p. 304.

[3] Exemplificativamente, há trabalhos específicos sobre o assunto: BALDINI, Giovanni. La condizione unilaterale: implicazioni e problemi. In: ALCARO, F. (Coords.). La Condizione Nel Contratto. Padova: CEDAM, 2008; BACIN, Monica. La Condizione Unilaterale: Un Test Dell’Autonomia Privatta. Rivista di Diritto Civile, Ano XLIV,nº 4, p. 339-359, 1998.

[4] GERALDES, João de Oliveira. Tipicidade Contratual e Condicionalidade Suspensiva: Estudo sobre a exterioridade condicional e sobre a posição jurídica resultante dos tipos contratuais condicionados. Coimbra: Coimbra Editora, 2010.

[5] Contra a viabilidade jurídica: BACIN, Monica. La Condizione Unilaterale: Un Test Dell’Autonomia Privatta. Rivista di Diritto Civile, Ano XLIV,nº 4, p. 339-359, 1998.

[6] PETRELLI, Gaetano. La Condizione <<elemento essenziale>> del Negozio Giuridico: Teoria generale e profili applicativi. Milão: Giuffrè Editore, 2000, p. 228.

[7] TATARANO, Giovanni. ROMANO, Carminne. Condizione e Modus: Trattato di Diritto Civile del Consiglio Nazionale del Notariato. Napoli: Edizione Scientifiche Italiane, 2009, p. 170-175; NAZZARO, Ana Carla. La condizione tra uso atipico e abuso. In: ALCARO, F. (Coords.). La Condizione Nel Contratto. Padova: CEDAM, 2008, p. 374-375; BALDINI, Giovanni. La condizione unilaterale: implicazioni e problemi. In: ALCARO, F. (Coords.). La Condizione Nel Contratto. Padova: CEDAM, 2008, p. 147-155.

[8] TATTARANO, Giovanni; ROMANO, Carmine. Condizione e Modus: Trattato di Diritto Civile del Consiglio Nationale del Notariato. Sezione IV. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2009, p. 175, item 50; Em sentido similar, citando decisão do Tribunal de Verona: BIANCO, Raffaello. La Condizione Apposta Nell’interesse di uma Sola Parte. Tesi di Dottorato di ricerca in diritto dei rapporti economici e di lavoro. Universitá Degli Studi di Napoli. Orientador Ch.mo Prof. Biagio Grasso. Napoli, 2006, p. 10 e 98.