O anteprojeto do Código Civil, elaborado pela Comissão de Juristas designada pelo Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, suscita, como é natural de um Estado democrático, variadas discussões. Há uma legítima preocupação em garantir a higidez sistemática da lei e a de proteger conquistas importantes, como a correta aplicação do princípio da boa-fé.

 A violação da boa-fé como fator de ineficácia:

uma vitória da segurança jurídica

 

José Roberto de Castro Neves[1]

Dizem que o novo sempre vence. Novos tempos, novas verdades. Apesar disso, o Direito Civil se revela resiliente. Essa firmeza tem sua razão. Parte considerável de sua dogmática se assenta em institutos estabelecidos há milênios, digeridos por gerações de estudiosos e experimentados por ordenamentos diversos ao longo dos séculos. O civilista é, por esse ângulo, um conservador. Enraizado na sua formação, guarda a ideia de estabilidade, de segurança jurídica – conceitos que não convivem com uma constante alteração legal. Melhor assim. Não seria positivo para a sociedade que sua lei civil fosse constantemente alterada, gerando todo tipo de instabilidade.

Para os devotos da solidez da lei, alterar o Código Civil seria um pecado – heresia comparável a quem deseja reescrever uma passagem da Bíblia. Contudo, como mostra a experiência, o radicalismo não costuma dar bons frutos. A verdade é que a regra legal ganha maior serventia se se sintoniza com os valores da sociedade. Se os valores mudam, melhor que a lei se harmonize com esses valores.

O legislador civil, portanto, deve caminhar atento em conservar a segurança jurídica – evitando alterações frequentes e desnecessárias – e, ao mesmo tempo, garantir que a lei espelhe valores ostensivamente desejados pela sociedade.

Um eloquente exemplo de alteração benéfica na lei civil foi a inclusão, no Código Civil de 2002, da boa-fé objetiva, a fim de incorporar valores éticos às práticas obrigacionais.

A boa-fé objetiva é um princípio. Nessa condição, a boa-fé, na lição de Paulo Sanseverino, “exerce múltiplas funções, desde a fase anterior à formação do vínculo, passando pela sua execução, até a fase posterior ao adimplemento da obrigação: interpretação das regras pactuada (função interpretativa), criação de novas normas de conduta (função integrativa) e limitação dos direitos subjetivos (função de controle contra o abuso de direito).”[2]

Na sistemática da Lei Civil de 2002, a boa-fé possui a função de orientar a interpretação dos negócios jurídicos, tal como expresso no artigo 113, de limitar o exercício de direitos, na forma do artigo 187, assim como é fonte de deveres segundo o artigo 422. Com efeito, a partir do advento do Código Civil de 2002, incorporou-se na legislação civil o dever jurídico, no âmbito das relações obrigacionais, de a parte atuar em conformidade com a boa-fé. Logo, a parte que viola esse dever comete um ato contrário ao ordenamento, fica em mora ou incorre em violação positiva do contrato, respondendo pelas consequências daí resultantes.

Em trabalho clássico da nossa literatura jurídica, Negócio Jurídico: Existência, Validade e Eficácia,[3] Antônio Junqueira de Azevedo explica, com a simplicidade própria dos grandes mestres, os três planos de análise do negócio jurídico (registrando que Pontes de Miranda já previa essa forma de apreciação). Ensina-se que há elementos de existência (sem os quais o negócio sequer existirá, como, por exemplo, se houver ausência de partes); requisitos de validade (como a licitude do objeto e a capacidade das partes) e os fatores de eficácia.

A aferição dos fatores da eficácia ocorre por mais de um ângulo. Encontram-se fatores de atribuição de eficácia amplos, como, v.g., a subordinação do negócio a uma condição suspensiva ou a fatores específicos de eficácia – tais como a relação do mandatário sem poderes e o terceiro. Há ainda fatores supervenientes aptos a fazer cessar a eficácia do negócio, como o distrato ou a resolução do contrato.

Uma das possíveis consequências do inadimplemento é que a parte lesada reclame a perda da eficácia, total ou parcial, do negócio.

Como a boa-fé se relaciona a um dever obrigacional, a sua violação se coloca no plano da eficácia.

O Código do Consumidor, Lei nº 8.078, de 11.9.1990, arrolou, entre as hipóteses de nulidade das cláusulas contratuais, aquelas que estabeleçam obrigações incompatíveis com a boa-fé (artigo 51, IV). Esse dispositivo, desde a sua promulgação, originou fundada crítica de parte da doutrina, na medida em que a falta de boa-fé se qualifica como fator de eficácia.[4]

Em resposta à alegada falta de apuro técnico, Nelson Nery Júnior defende que, por se tratar de um microssistema, o Código do Consumidor poderia arrolar a boa-fé como requisito de validade para anular cláusulas de um contrato.[5] Essa nulidade por abusividade, no âmbito das relações de consumo, decorrente da violação da boa-fé, demandaria o reconhecimento judicial. Explicou o professor: “Cumpre ao magistrado pesquisar se as partes agiram com boa-fé para a conclusão do negócio jurídico de consumo, a fim de verificar se a cláusula sob exame é ou não válida à luz do preceito legal sob comentário.”[6]

Embora a regra do artigo 51, IV, da Lei do Consumidor trate da nulidade de cláusulas (e não de todo o negócio jurídico, como faz o Código Civil quando disciplina o regime das nulidades), houve, neste particular, uma deficiência técnica, evidenciadas por dois fundamentos.

Em primeiro lugar, identificar à violação à boa-fé como requisito de nulidade representa uma deficiência na organização do ordenamento jurídico como sistema.

Como referido, a apreciação do negócio jurídico em degraus – existência, validade e eficácia – oferece ao intérprete um diagnóstico coerente, próprio de um sistema.[7]

A parte que viola o dever de atuar de boa-fé fica inadimplente. O inadimplemento não torna nulo o negócio, apenas tem potencial de afetar a sua eficácia, o que apenas será possível aferir no caso concreto.

A consequência decorrente do inadimplemento do dever de atuar lealmente dependerá da análise casuística. Pode ir desde o dever de indenizar o dano, até a perda, total ou parcial, da eficácia do negócio.

Atente-se, ainda, que, na sistemática adotada pelo Código Civil, a nulidade se relaciona aos fatos ocorridos na formação do negócio jurídico. Os deveres de atuar de boa-fé verificar-se-ão em todas os momentos, inclusive na fase de formação do contrato. Contudo, violações da boa-fé de menor importância – tal como a falha oferecer alguma informação menos relevante do bem objeto de uma compra e venda, por exemplo –, ocorridas na fase de formação do negócio, podem dar ensejo à responsabilidade pré-contratual, enquanto as de maior importância teriam, dependendo da situação, como afetar a própria vontade, incidindo em outros vícios do negócio jurídico, como o erro ou o dolo – atraindo o regime das nulidades.

No sistema há, como se vê, uma harmonia entre o princípio da boa-fé e o regime das nulidades.

O segundo fundamento se relaciona à própria natureza da boa-fé: um princípio.

Tanto princípios quanto as regras são normas jurídicas, “porque ambos dizem o que deve ser.”[8] Os princípios, em comparação com as regras, apresentam grau de generalidade mais alto, pois, afinal, os princípios apresentam vetores, ao passo que as regras esmiuçam situações determinadas. Os princípios de Direito admitem uma aplicação gradual, enquanto as regras, na maior parte dos casos, incidem como um “sim ou não”. Segundo Humberto Ávila, regras “são normas imediatamente descritivas de comportamento devidos ou atributivas de poder.”[9]

Vejam-se as hipóteses referidas no artigo 166 do Código Civil, no qual se enumeram as nulidades absolutas. As hipóteses mencionadas na lei incidem de forma binária: sim ou não. O negócio foi celebrado por pessoa incapaz? Sim ou não. O objeto é ilícito? Sim ou não. Faltou alguma solenidade considerada imprescindível pela lei para a validade do ato? Sim ou não. O negócio é uma simulação absoluta? Sim ou não. Em caso positivo, o negócio está condenado. Nulo. Em não havendo nenhuma dessas hipóteses, o negócio é valido. Vale ou não, o que se determina a partir do reconhecimento de um fato objetivo.

O artigo 166 do Código Civil se apresenta como exemplo de regra jurídica – e da boa técnica empregada pelo legislador.

Na prática, seria impossível uma aferição objetiva – tal como a que se encontra no artigo 166 – se dele constasse um princípio, como o dever de agir de acordo com a boa-fé. Afinal, a boa-fé, como princípio, abarca uma infinidade de situações.[10]

Ao apreciar se a parte, no âmbito de uma relação obrigacional, cumpriu os deveres laterais de informação, colaboração e cooperação, a resposta dificilmente será um acachapante e singelo “sim ou não”. A experiência mostra que a falha da adoção de um comportamento leal de uma parte pode variar desde pequenos pecadilhos até a mais completa deslealdade, ingressando em tipos penais como o estelionato e a falsidade ideológica.

A referência à violação de um princípio como hipótese de nulidade do negócio jurídico acarretaria uma indesejável insegurança, abrindo a porta para o subjetivismo.

Na sistemática do Direito Civil, como mencionado, cumpre ao intérprete averiguar se os requisitos de validade do ato se encontram presentes. O termo “requisitos”, referido por Antônio Junqueira de Azevedo, revela-se oportuno. Isso porque, para garantir a segurança jurídica e social, a lei indica, de forma objetiva, fatos que garantem a legalidade – cujas ausências, de outro lado, condenam o negócio a sequer ter validade. Geraria grande insegurança jurídica se um princípio de amplo aspecto fosse incluído, sem maior precisão, no rol das hipóteses de nulidade. Dessa forma conservadora, como é sua vocação, se posiciona o artigo 166 do Código Civil.

Bem vistas as coisas, delimitar a boa-fé ao campo da eficácia não diminui esse princípio. O que enfraquece a aplicação desse fundamental princípio é seu inadequado enquadramento dogmático, retirando-lhe a segurança técnica – e, por consequência, diminuindo sua força jurídica.

Incorporar a boa-fé no Código Civil, como fez o legislador de 2002, foi um grande acerto. Uma benéfica alteração, que abraçou valores éticos, seguindo um legítimo interesse da sociedade de proteger os atos leais e honestos. A lei fez bem em apontar esse princípio como bússola da interpretação e como criador de deveres no âmbito das obrigações. Do ponto de vista técnico, o Código Civil de 2002, corretamente, não seguiu a orientação do Código do Consumidor, deixando de incluir a ausência de boa-fé como hipótese de nulidade do negócio, o que acarretaria uma deficiência sistemática e seria fonte de insegurança. Afinal, o Direito é uma ciência – e não uma moda.

 

 [1]             Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Direito pela Universidade de Cambridge, Inglaterra. Professor de Direito Civil da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio). Advogado.

[2]             Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, Responsabilidade civil no Código do Consumidor e a defesa do fornecedor, 3ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010, p. 17.

[3]             Negócio Jurídico: Existência, Validade e Eficácia, São Paulo, Ed. Resenha Tributária, 1974.

[4]             Vera Maria Jacob de Fradera, A ineficácia das cláusulas abusivas no Código de Defesa do Consumidor. Uma abordagem clássica, in Revista do Direito do Consumidor, v. 43, São Paulo. 2002, p. 316-324 e Judith Martins-Costa, A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação, 2ª ed. São Paulo, Saraiva, 2018, págs. 415-419.

[5]             Ada Pellegrini Grinover et al, Código de Defesa do Consumidor comentada pelos autores do anteprojeto, 4ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995, p. 340.

[6]             Ada Pellegrini Grinover et al, Código de Defesa do Consumidor comentada pelos autores do anteprojeto, 4ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995, p. 349.

[7]             Esclareça-se, nesse ponto, que parte da doutrina portuguesa entende que a violação da boa-fé pode gerar a invalidade do negócio, especialmente em casos de abuso de direito (hipótese não prevista expressamente na lei lusa).

[8]             Robert Alexy, Teoria dos Direitos Fundamentais, São Paulo, Malheiros, 2008, p. 87.

[9]             Humberto Ávila, Teoria dos Princípios, 4ª ed., São Paulo, Malheiros, 2005, p. 89.

[10]            Acertadamente, o Código Civil brasileiro não arrola a violação à boa-fé como um requisito de validade (ver, sobre o tema, Judith Martins-Costa, A Boa-Fé no Direito Privado, São Paulo, Marcial Pons, 2015, p. 577 e seguintes).