Carlos Nelson Konder**
Nos últimos anos voltou à tona a ideia de os contratos ditos empresariais (outrora chamados de comerciais) submeterem-se a um regime legal distinto daquele que regem os demais contratos (muitas vezes referidos, em contraposição, como “contratos civis”). Entretanto, enquanto no passado essa autonomia – então objeto de codificação e jurisdição próprias – se fundava em resguardar o comércio contra maior formalismo das regras civis, hoje o movimento parece inspirar-se em preocupação quanto ao excesso de intervenção (especialmente a judicial) nas relações entre empresários.[1]
A partir de relevantes reflexões doutrinárias sobre as peculiaridades dos contratos empresariais, em contraposição especialmente às relações de consumo,[2] ganhou força neste século o retorno à ideia de uma legislação própria. Nessa linha, o projeto de lei de Código Comercial (PL 1572/2011, PLS 487/2013) já fincava bandeira nesse movimento de redução das intervenções, ao pretender positivar que “nenhum princípio, expresso ou implícito, pode ser invocado para afastar a aplicação de qualquer disposição deste Código ou da lei”. Juntou-se a ele a chamada Lei de Liberdade Econômica (LLE – L. 13.874/2019), que incluiu no Código Civil referência a um “princípio da intervenção mínima” e à “excepcionalidade da revisão” dos contratos.
O projeto de reforma do Código Civil (PL 04/2025), em certos pontos, adere a esse movimento de atribuir autonomia normativa aos contratos empresariais com fim anti-intervencionista, buscando separar o que justamente o Código Reale havia unido. Além de reforçar as referências à não intervenção no que chamou de contratos “paritários” e(ou) “simétricos”,[3] merece especial destaque o seu art. 421-C, cujo primeiro parágrafo prevê seis novos “parâmetros adicionais de consideração e análise” para a interpretação dos contratos empresariais.
De início, poderia se acusar a postura de certo “egoísmo”, já que, em lugar de buscar resolver ou mitigar o problema, visa somente a blindar as relações empresariais contra essas intervenções, como se, nas demais relações civis, “excessos” dessa natureza fossem mais toleráveis. Vale observar que as relações ditas civis e mesmo as consumeristas (que, lembre-se, costumam ter também um empresário em um dos polos) demandam igualmente previsibilidade e respeito aos espaços legítimos de autonomia. Ademais, não podem ser subtraídas do sistema jurídico como um todo, sob pena de sacrificar a unidade e coerência do ordenamento.[4]
Parece haver, todavia, um problema mais grave nessa postura legislativa. Sua utilização no passado recente indica ser esse tipo de medida não somente ineficaz aos fins que se pretende, como pode até mesmo agravar o mal que visa combater. Nesse sentido, podem ser apontadas ao menos três contradições entre o diagnóstico e o prognóstico por trás dessa iniciativa.
A primeira contradição diz respeito à fonte formal: a legislação. Afirma-se haver excesso de intervenção judicial nos contratos empresariais. Ocorre que as hipóteses para a intervenção judicial nos contratos empresariais, com seus requisitos próprios, estão previstas expressamente na lei – e, quanto a essas, o Projeto não apenas não as restringe como parece ampliá-las. Portanto, se há excesso de intervenção, é por conta de falha na interpretação e aplicação da lei, não no texto da lei em si.[5] Dessa forma, se a lei não vem sendo adequadamente observada pelo intérprete, pode-se solucionar o problema mudando a lei?
A experiência pregressa revela o fracasso desse tipo de estratégia. Como destacado, a LLE impôs legislativamente desde 2019 um princípio de intervenção mínima nos contratos e a excepcionalidade da revisão. Não obstante, pesquisa quantitativa no TJRJ sobre litígios envolvendo contratos impactados pela pandemia – que transformou a exceção em regra – revelou que mais da metade dos julgados nos quais se alegava onerosidade excessiva foram reputados procedentes, bem como setenta por cento daqueles em que se alegava força maior.[6] Entre as decisões que acolheram a alegação de onerosidade excessiva, 91,22% determinaram a revisão do contrato em vez de sua resolução, a revelar a ineficácia também do dispositivo que previu a excepcionalidade da revisão.[7]
A segunda contradição diz respeito ao objetivo. Para reduzir as intervenções (judiciais) nas relações empresariais, far-se-á uma significativa intervenção (legal) nessas mesmas relações? Cada dispositivo legal que se insere no direito contratual é mais um elemento de complexidade acrescentado ao que os agentes desse mercado devem levar em conta, pois produz limites, cria direitos e deveres, enfim, delimita, molda e conforma a livre iniciativa e a liberdade contratual. Dessa forma, parece contraditória a aspiração por menos intervenção e, ao mesmo tempo, mais legislação.
Enquanto os contratualistas e agentes do mercado ainda buscam compreender os acréscimos introduzidos pela LLE aos art. 113 e 421 do Código Civil – que, de sua louvada “política de comedimento, no enunciar de regras hermenêuticas”[8] passou a ter novos parágrafos, incisos, e mesmo a adição de um “artigo-letra” –, se aprovado o projeto, ganhará o art. 421 do Código Civil seis novos “artigos-letra” (421-“A” a 421-“F”), a ensejar nova leva de controvérsias sobre seus significados.
Por fim, a terceira contradição diz respeito à técnica legislativa. As intervenções judiciais reputadas indevidas costumam basear-se em conceitos indeterminados referentes a valorações, muitas vezes inseridos em cláusulas gerais, as quais, como é cediço, deixam “extensa margem de apreciação ao intérprete”.[9] Trata-se de estruturas normativas próprias de um período histórico e de uma postura metodológica em que o legislador, diante da aceleração das transformações, delega poderes para permitir determinado “tempo jurídico, em que o presente já engloba o futuro”.[10]
Nesse contexto, destacou-se o papel da doutrina no “preenchimento do significado e do alcance das cláusulas gerais”.[11] E, com efeito, a doutrina fez um esforço significativo, especialmente nos vinte anos transcorridos desde a promulgação do Código de 2002, para dar conteúdo mais preciso à boa-fé, função social do contrato e outros conceitos abertos – e foi mais bem sucedida quanto a uns do que outros.[12] A LLE, entretanto, introduziu nova leva de categorias abertas, como “razoável negociação das partes” e “princípio da intervenção mínima”, instaurando novo desafio no qual se vem laborando desde então, sempre buscando mais segurança e coerência na ordem jurídica.
Entretanto, se aprovada a reforma, particularmente sob a curiosa denominação de “parâmetros adicionais de consideração e análise” dos contratos empresariais (a colocar em xeque a assertiva de que o legislador não usa palavras inúteis), o projetado art. 421-C despejará diversos conceitos pouco familiares à cultura jurídica brasileira.[13] Junto com os demais “artigos-letra”, encontraremos referências a: “tipos contratuais naturalmente díspares”; “contratos que decorram da incidência e da funcionalidade de cláusulas gerais próprias de suas modalidades”; “modo comum adotado pelos empresários para a celebração e para a execução daquele específico tipo contratual”; “expectativa comum que os agentes do setor econômico de atividade dos contratantes têm”; cláusulas de não concorrência “coerentemente limitadas no espaço e no tempo, por razoáveis e fundadas cláusulas contratuais”; “atipicidade natural dos contratos empresariais”; “flagrante disparidade econômica”; “garantia da paridade contratual”; “contratos firmados com unidade de interesses”; e contratos “estrutural e funcionalmente reunidos”.
Parece contraditório, portanto, combater a insegurança gerada pelas normas abertas, cujo significado a doutrina ainda não conseguiu sedimentar, por meio da introdução de diversas outras normas abertas sobre as quais a doutrina nacional sequer começou a refletir.
Diante disso, convém, de início, recolocar os termos do problema. Em lugar de intervenção judicial excessiva nas relações empresariais, o que há é um problema de arbitrariedade judicial (intervir quando não se deve, deixar de intervir quando se deve, intervir de modo que não se deve e, principalmente, não se explicar por que se intervém ou não). Este problema, que atinge o sistema jurídico como um todo e não somente as relações empresariais, é extremamente complexo, pois envolve grande variedade de causas, conforme indicam os ricos debates sobre judicialização e ativismo judicial.[14] Levantam-se questões: normativas, como a já citada proliferação de normas abertas (cláusulas gerais e princípios) para magistrados não habituados a lidar com essa técnica legislativa; sociais, como o descrédito institucional dos poderes legislativo e executivo; e mesmo culturais, ligadas à desvalorização da ciência, da racionalidade em geral, e, especificamente, do ensino jurídico, cada vez mais tomado por simplificações e instrumentalizações.[15] Remediá-lo demanda processo paulatino que envolve repensar a própria formação do jurista contemporâneo e, principalmente, o papel da doutrina, que “o nosso tempo de irreflexão e imediatez faz confundir com doutrina jurídica qualquer opinião publicada”.[16]
Com efeito, em um tempo em que é comum se alardear soluções simples para problemas complexos, é importante que o direito contratual não caia também na armadilha de afirmações de papel retórico e simbólico, mas descoladas de eficácia na realidade social. Nessa seara, a caneta do legislador, imprecisa e afoita, não somente não expulsará excessos intervencionistas, como deve acabar por abrir as portas para ainda maior arbitrariedade e insegurança.
** Professor titular do Departamento de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Doutor e mestre em direito civil pela UERJ. Especialista em direito civil pela Universidade de Camerino (Itália). Sócio fundador de Konder Sociedade de Advogados, onde atua como parecerista e árbitro.
[1] SOUZA, Eduardo Nunes de; FERNANDES, Marcelo Mattos. Crítica aos contratos empresariais como categoria autônoma no código civil. Revista da AGU, v. 23, n. 3. Brasília, 2024, p. 169.
[2] Para Paula Forgioni, “torna-se premente resgatar os contratos comerciais para impedir sua absorção pelo consumerismo e o aviltamento da racionalidade própria ao direito empresarial” (FORGIONI, Paula. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação, 2. ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 2016, p. 37).
[3] Uma explicação do conceito é encontrada em RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. O direito contratual no anteprojeto de revisão e atualização do Código Civil. Migalhas, n. 5.873, 18 jun. 2024. Disponível em <t.ly/EzIgF>, acesso em 02 abr. 2025. Críticas ao conceito foram formuladas em TRINDADE, Marcelo. A reforma do Código Civil e os Contratos. Boletim IDiP-IEC. Vol. XXII, Canela-São Paulo, Publicado em 12.06.2024. Disponível em <t.ly/J-L5H>, acesso em 02 abr. 2025; e SILVA FILHO, Osny. Paridade e simetria no anteprojeto de reforma do Código Civil. Revista jurídica profissional, volume especial. São Paulo, 2024, p. 193-205.
[4] TEPEDINO, Gustavo. Contratos empresariais na unidade do ordenamento. Revista brasileira de direito civil, v. 3, n. 1. Belo Horizonte, 2017, p. 6; SOUZA, Eduardo Nunes de; FERNANDES, Marcelo Mattos. Crítica aos contratos empresariais como categoria autônoma no código civil. Revista da AGU, v. 23, n. 3. Brasília, 2024, p. 157-178.
[5] Referindo-se à LLE, afirma Anderson Schreiber: “Dizer que a revisão é ‘excepcional e limitada’, sem alterar aqueles requisitos, não traz qualquer inovação no mundo do direito – como, aliás, não traria dizer que ‘não é excepcional’, que é ‘ilimitada’ ou que deve ocorrer ‘com frequência’ ou ‘em regra’. Ou se modificam os requisitos que atraem a revisão ou tudo permanece como era antes” (SCHREIBER, Anderson. Princípios constitucionais versus liberdade econômica: a falsa encruzilhada do direito contratual brasileiro. Migalhas, 31 ago. 2020. Disponível em <t.ly/jyi6H>, acesso em 31 mar. 2025).
[6] KONDER, Carlos Nelson. Revisão contratual no contexto da pandemia: análise da simbologia da legislação à luz da jurisprudência do TJERJ. Scientia Iuris, v. 27, n. 2. Londrina, jul. 2023, p. 176.
[7] Ibid, p. 180.
[8] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, vol. 3: contratos, 18 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 47.
[9] MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para sua aplicação, 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2024, p. 127.
[10] RODOTÀ, Stefano. O tempo das cláusulas gerais. Trad. Eduardo Nunes de Souza. Revista brasileira de direito civil, v. 33, n. 3. Belo Horizonte, 2024, p. 182.
[11] MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado, cit., p. 155.
[12] Como observado em estudo quantitativo, as decisões baseadas no princípio da boa-fé são comparativamente mais bem fundamentadas do que aquelas envolvendo função social e equilíbrio contratual: “quase sessenta por cento daquelas foram fundamentadas argumentativamente, em oposição a cerca de dez por cento destas”, o que levou a concluir que “A distinção pode ser tributada, ao menos em alguma medida, ao vasto desenvolvimento doutrinário que o princípio da boa-fé recebeu nos últimos anos, no sentido de desenvolver parâmetros mais claros acerca da sua aplicação” (TERRA, Aline de Miranda Valverde; KONDER, Carlos Nelson; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Boa-fé, função social e equilíbrio contratual: reflexões a partir de alguns dados empíricos In: Princípios contratuais aplicados: boa-fé, função social e equilíbrio contratual à luz da jurisprudência. Indaiatuba, SP: Foco, 2019, p. 22).
[13] O dispositivo foi descrito como “um aglomerado de regras que não apresentam coesão temática para justificar sua reunião” por CARBONAR, Dante O. Frazon. Regras de interpretação dos contratos no Anteprojeto de Reforma do Código Civil brasileiro: artigos 421-C, 421-D e 421-E. Revista jurídica profissional, volume especial. São Paulo, 2024, p. 107.
[14] V. BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Suffragium – Revista do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará, v. 5, n. 8. Fortaleza: jan./dez. 2009, p. 11-22; STRECK, Lenio Luiz. Entre o ativismo e a judicialização da política: a difícil concretização do direito fundamental a uma decisão judicial constitucionalmente adequada. Espaço jurídico: journal of Law, v. 17, n. 3. Joaçaba, set./dez. 2016, p. 721-732.
[15] Tratando da LLE, destacam Gustavo Tepedino e Laís Cavalcanti: “Se há exageros na aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, na utilização agigantada da boa-fé e da função social do contrato, e, ainda, na banalização da revisão contratual, é preciso mobilizar a sociedade para a antes conclamada mudança cultural, que certamente não será levada a cabo por alterações legislativas” (TEPEDINO, Gustavo; CAVALCANTI, Laís. Notas sobre as alterações promovidas pela Lei nº 13.874/2019 nos artigos 50, 113 e 421 do Código Civil. SALOMÃO, L. F.; CUEVA, R. V. B.; FRAZÃO, A. (coord.). Lei de liberdade econômica e seus impactos no direito brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 509).
[16] MARTINS-COSTA, Judith. Autoridade e utilidade da doutrina: construção dos modelos doutrinários. Modelos de direito privado. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 19.