Juliana Cordeiro de Faria**

“Human beings react to every rule, regulation, and order governments impose, and their reactions result in outcomes that can be quite different than the outcomes lawmakers intended”[1]

 

  1. O Disfarce da Modernidade: Uma Introdução

A proposta de reforma do Código Civil brasileiro (Projeto de Lei nº 4/2025), tem suscitado intensos debates, notadamente no tocante à remodelação da responsabilidade civil. Ainda que a atualização normativa seja desejável diante das transformações sociais e tecnológicas contemporâneas, tal movimento legislativo exige cautela dogmática e fidelidade aos pilares estruturantes do sistema jurídico. A versão em discussão, todavia, revela inclinações preocupantes: o “conjunto da obra” representa uma erosão dos fundamentos técnicos da responsabilidade civil, com efeitos adversos sobre a estabilidade das relações privadas e a previsibilidade das condutas no âmbito econômico.

Se o Código Civil de 2002 representou uma virada em direção à sistematização racional e principiológica da responsabilidade civil – equilibrando liberdade individual e dever de reparação –, o PL nº 4/2025 sinaliza um retrocesso: uma guinada à casuística, marcada pela proliferação de cláusulas abertas, pela sobreposição de imperativos morais à técnica jurídica e pela diluição dos critérios técnicos de imputação. Longe de contribuir para a racionalidade do sistema, o projeto reedita um velho dilema: a substituição das formas jurídicas estáveis – assentadas em normas claras e procedimentos institucionalizados – por uma noção vaga e subjetiva de justiça que compromete a previsibilidade das decisões e enfraquece o papel do Direito como instrumento de contenção do poder.

O PL nº 4/2025 representa um movimento legislativo que, sob o verniz da modernidade, cede ao apelo do populismo jurídico[2]. Embora envolto em propósitos aparentemente nobres, fragiliza os filtros de juridicidade que conferem densidade e previsibilidade à responsabilidade civil, transferindo ao juiz não só a aplicação do direito, mas a definição do que seria, em cada caso, “justo” ou “adequado”. Resulta daí uma mutação normativa disfuncional, marcada por erosão conceitual, linguagem performática, cujos impactos institucionais e econômicos não podem ser ignorados.

As provocações que se seguem partem da convicção de que legislar com sensibilidade social não exige renúncia à técnica – ao contrário, exige sua reafirmação. O PL nº 4/2025, ao propor uma reforma substancial da responsabilidade civil em nome do “progresso”, revela-se como o que é: uma armadilha disfarçada de modernidade.

  1. 2. A Reconfiguração da Responsabilidade Civil: Entre a Linguagem Vaga e o Punitivismo Disfarçado

“A indeterminação no Direito é coisa séria. Com ela não se pode brincar”[3]. Exatamente por isso, como adverte a doutrina especializada, “©onceitos indeterminados, cláusulas gerais, termos indefinidos devem ser utilizados pelo legislador com a mais extrema parcimônia, e, de preferência, com o recurso àqueles já densificados pela atividade doutrinária secular”[4]. Os valiosos alertas de Humberto Ávila, Judith Martins-Costa e Luca Giannotti, ancorados em sólida reflexão teórica e metodológica, parecem ter sido solenemente ignorados pelo PL 4/2025, que se estrutura com base em uma arquitetura normativa marcada por excessiva vagueza, imprecisão terminológica e hipertrofia de cláusulas gerais, operando com categorias plásticas e conceitos abertos como se fossem instrumentos neutros.

Os artigos 927-B e 944-A ilustram com clareza essa inflação conceitual, revelando um modelo normativo mais preocupado com impacto simbólico do que com consistência dogmática.

2.1. Linguagem Vaga, Risco Inflacionado e Punitivismo Velado: A Arquitetura do art. 927-B

O art. 927-B rompe com a lógica tradicional da responsabilidade objetiva ao recorrer a expressões vagas como “risco especial”, “não essencialmente perigosa”, “conexo à atividade” ou “máximas de experiência”. Esses enunciados, carentes de tradição interpretativa consolidada, diluem os contornos da imputação objetiva, que exige critérios densos, precisos e institucionalmente controláveis. A indeterminação aqui não é meramente técnica – é estrutural – e, como adverte a boa doutrina, com ela não se deve brincar.

Ao admitir a responsabilização por atividades não essencialmente perigosas, mesmo diante de conduta diligente e de boa-fé, o art. 927-B e seu § 1º rompem com a lógica clássica da imputação. Sob a aparência de objetivação, insere-se um viés punitivo dissociado da conduta e centrado no resultado, contaminando o modelo técnico com uma função sancionatória implícita. A referência a “risco especial e diferenciado”, ainda que amparada em estatísticas ou máximas de experiência, carece de densidade normativa e inaugura um regime fluido e subjetivo, em que o risco inflado e a censura moral substituem os critérios objetivos de imputação, tornando-se permeável à valoração subjetiva do julgador.

A menção à estatística como elemento legitimador da imputação é particularmente crítica, pois relativiza a individualização do dano e do nexo causal, substituindo o exame do caso concreto por médias abstratas. O vínculo jurídico entre conduta e resultado se dilui, e a responsabilidade assume feição probabilística. Além disso, indicadores estatísticos são construções contextuais, sujeitas a escolhas metodológicas e interpretações muitas vezes arbitrárias. Sua centralidade transfere ao juiz o encargo de aplicar categorias empíricas sem respaldo técnico adequado, abrindo espaço para decisionismo travestido de cientificidade.

A menção às máximas de experiência acentua essa indeterminação. Tomadas isoladamente, tais máximas operam como elementos heurísticos, e não como critérios normativos. Convertê-las em parâmetro de responsabilidade objetiva é institucionalizar o subjetivismo judicial, dissolvendo os filtros técnicos que legitimam a imposição do dever de indenizar.

Em suma, ao pretender sofisticar a matriz da responsabilidade objetiva com critérios empíricos e indeterminados, o § 1º mina sua própria estrutura. Em lugar de oferecer previsibilidade e racionalidade, instala-se um modelo sensível à moralidade e à impressão do julgador que fragiliza a legalidade civil e abre espaço ao arbítrio decisório, sob o disfarce de modernização normativa.

O § 3º do art. 927-B aprofunda o desvio promovido pelo caput ao condicionar a exclusão do dever de indenizar à ausência de “conexão com a atividade”. Com isso, compromete a eficácia das excludentes tradicionais – como o caso fortuito, a força maior e o fato de terceiro – que, historicamente, atuam como garantias técnicas contra imputações arbitrárias e como limites normativos essenciais à responsabilidade objetiva. Essa orientação merece crítica rigorosa: ao subordinar essas excludentes a um critério vago e genérico, o dispositivo esvazia sua função protetiva e transforma o dever de indenizar em um mecanismo quase automático, descolado da análise normativa da imputação. Mesmo os modelos mais amplos de responsabilidade objetiva exigem algum grau de qualificação do risco, da conduta ou do nexo de causalidade.

Ao dispensar filtros objetivos, o § 3º instaura um modelo fluido e inseguro, sustentado por presunção quase absoluta de responsabilidade, linguagem vaga e viés punitivo disfarçado de técnica. A opção rompe com a coerência do sistema e afronta os compromissos do Estado de Direito, ampliando o espaço para decisões arbitrárias e instáveis.

2.2. Punitivismo Disfarçado e Linguagem Emotiva: A Crise Funcional da Responsabilidade Civil no art. 944-A

A esse cenário soma-se o art. 944-A que representa uma inflexão preocupante no tratamento normativo do dano extrapatrimonial[5]. Ao longo de seus seis parágrafos, o dispositivo não apenas amplia os critérios para a fixação da indenização, como também atribui à responsabilidade civil múltiplas finalidades, distanciando-se da lógica reparatória que historicamente a estrutura.

A primeira inquietação reside na vagueza conceitual e da linguagem emocional do texto. Expressões como “nível de afetação em projetos de vida”, “grau de ofensa ao bem jurídico”, “especial gravidade” e “culpa grave”, carecem de densidade normativa e fomentam assimetrias decisórias.  O direito civil admite certo grau de abstração, mas exige balizas normativas claras para conter a discricionariedade judicial.

Acresce a introdução da função punitiva no § 3º, que autoriza o juiz a incluir, na indenização extrapatrimonial, “sanção pecuniária de caráter pedagógico” em casos de especial gravidade, dolo, culpa grave ou reiteração de condutas danosas. Com apoio dos §§ 4º a 6º, esse acréscimo pode atingir até quatro vezes o valor da indenização e ser parcialmente revertido a fundos públicos – instaurando um modelo sancionatório-distributivo alheio à lógica compensatória. Sob a retórica da pedagogia punitiva, constrói-se uma coerção simbólica, de viés regressivo, fundada na crença de que a intimidação econômica corrige desvios.  Esquecem-se, nesse ponto, as lições de João Baptista Villela[6] sobre os limites do efeito preventivo da sanção na esfera civil.

A sobreposição de funções atribuídas à responsabilidade civil – ora compensatória, ora punitiva, ora preventiva – compromete sua coerência dogmática. O art. 944-A, ao incorporar finalidades próprias de outros ramos sancionatórios sem distinção dogmática, desfigura a indenização civil, convertendo-a em mecanismo híbrido e instável. Em lugar da reparação fundada em critérios objetivos de imputação e quantificação, emerge um modelo marcado por juízos morais e categorias indeterminadas. Substitui-se a técnica pela intuição, a juridicidade pela retórica, fragilizando a função estabilizadora do direito privado.

Em síntese: os arts. 927-B e 944-A comprometem a racionalidade do sistema ao substituir critérios técnicos de imputação por categorias vagas e emotivas, abrindo espaço para uma responsabilização simbólica. O direito civil deixa de estabilizar relações para expressar indignação institucionalizada.

  1. Os Riscos do Discurso Simbólico: Instabilidade, Judicialização e Regressividade

O discurso simbólico que embasa a reforma da responsabilidade civil – marcada por categorias intuitivas, moralizantes e performativas – não apenas fragiliza a segurança jurídica, mas gera efeitos práticos adversos sobre a economia, a inovação e o sistema de justiça. Trata-se do chamado efeito cobra (The Cobra Effect[7]): políticas bem-intencionadas que produzem resultados opostos aos pretendidos.

A expansão da responsabilidade objetiva, com base em critérios vagos, gera incerteza regulatória e desestimula investimentos, sobretudo em setores expostos a riscos estatísticos inevitáveis, como agronegócio, saúde, tecnologia e crédito. Sem parâmetros claros, empresas suspendem operações ou internalizam o custo jurídico oculto (legal risk cost) nos seguros, preços e políticas de compliance, onerando o consumidor final. Em mercados de alta inovação, como o das startups, a ameaça de responsabilização irrestrita sufoca o risco calculado e compromete a criatividade, retraindo o dinamismo econômico e a competitividade do país.

Além dos impactos econômicos, o PL 4/2025 projeta um risco institucional silencioso: ao expandir categorias vagas sob o pretexto de modernização, desloca para o Judiciário a tarefa legislativa ex post e fomenta uma judicialização massiva. Em vez de pacificar conflitos, a reforma tende a multiplicá-los, alimentando uma jurisprudência fragmentada, marcada por decisões contraditórias e moldadas por percepções subjetivas. A sobrecarga da Justiça civil se intensifica, ao mesmo tempo em que se fragiliza a autoridade estabilizadora dos precedentes.

É verdade que o sistema de precedentes ampliou o papel dos tribunais na conformação do direito, mas isso não legitima, por si só, a celebração de conceitos abertos como virtude normativa. Quando expressões vagas – como “risco especial”, “projeto de vida” ou “conexão com a atividade” – passam a operar sob a força vinculante dos precedentes, corre-se o risco de cristalizar interpretações contingentes, convertendo a jurisprudência em fonte de insegurança jurídica. Na responsabilidade civil, esse fenômeno assume contornos ainda mais delicados: substitui-se a técnica jurídica por juízos morais e performáticos, promovendo decisões punitivas de largo espectro, descoladas dos filtros tradicionais de imputação. Em vez de assegurar previsibilidade e racionalidade, institucionaliza-se o decisionismo sob a roupagem de autoridade. O que se anuncia como avanço pode, assim, representar a consagração do arbitrário como norma.

A ironia está em que, ao pretender proteger os vulneráveis, o modelo pode aprofundar desigualdades: grandes corporações absorverão os custos; pequenos empresários e profissionais liberais enfrentarão riscos desproporcionais e maior insegurança. A norma que se proclama “civilizatória” arrisca-se a se tornar entrave à livre iniciativa, vetor de judicialização desordenada e agente de desorganização institucional.

  1. Conclusão: Técnica, Liberdade e Responsabilidade no Século XXI

A proposta de reforma da responsabilidade civil prevista no PL nº 4/2025, embora apresentada como modernização, configura um movimento de enfraquecimento técnico e ruptura estrutural. Não se trata de uma mera variação dentro das tradições civilistas. Trata-se da adoção simultânea, e sem freios dogmáticos, de mecanismos que, em outros sistemas, são pontuais, subsidiários e condicionados por exigências técnicas rigorosas de proporcionalidade e tipicidade.

O legislador precisa ter plena consciência da gravidade de sua escolha. Nenhum país de tradição civil-ocidental – seja da família romano-germânica, seja da common law[8] – adota como regime ordinário um modelo nessas bases. Se aprovada essa reforma, o Brasil poderá ser lançado em um experimento normativo de alto risco, projetando-o como uma exceção normativa marcada por insegurança jurídica e desconfiança institucional. Seremos, se avançarmos nessa direção, uma ilha regulatória em um mar de ordenamentos que, mesmo em transformação, seguem fiéis à técnica como condição de legitimidade democrática.

Resistir ao populismo jurídico e rejeitar os arts. 927-B e 944-A não é recusar o futuro, mas preservar as condições que o tornam possível. Em tempos de incerteza, legislar com técnica é mais que um ato de prudência: é o verdadeiro exercício de responsabilidade institucional e coragem democrática.

** Professora Associada da Faculdade de Direito da UFMG. Mestre e Doutora em Direito Civil. Advogada.

[1] DAVIES, Antony; HARRIGAN, James R. The Cobra Effect: Lessons in Unintended Consequences. Disponível em https://leeconomics.com/Davies-TheCobraEffect.html acesso em 25/03/2025

[2] MARTINS-COSTA, Judith. PL que reforma CC é obra de populismo jurídico. Disponível em https://youtu.be/M-0nM5IQGQ0?si=nqQkbPjzeqqEqh0N, acesso em 25/03/2025.

[3] ÁVILA, Humberto. Teoria da Indeterminação no Direito: entre a indeterminação aparente e a determinação latente. São Paulo: ABDR, 2022, p.10-11.

[4] MARTINS-COSTA, Judith; GIANNOTTI, Luca. A Ordem Pública e o Projeto de Reforma do Código Civil [Parte I]. In: MARTINS-COSTA, Judith; MARTINS, Fábio Floriano Melo; CRAVEIRO, Mariana Conti e XAVIER, Rafael Branco. Um novo Código Civil? Análise Crítica do Projeto de Lei 4/2025. Rio de Janeiro: Processo, 2025, p. 61.

[5] Sobre a expansão contemporânea das categorias de dano moral e os riscos de diluição conceitual do dano extrapatrimonial, v. FRÓES, Júlia Vieira. Novos Danos na Responsabilidade Civil: As Fronteiras do Dano Moral Ressarcível. Curitiba: Juruá, 2023.

[6] Adverte “a medida em que a coerção se institucionaliza, instala-se fora da consciência humana, à margem do eu, um novo centro de referência e comando éticos, cuja existência e funcionamento constituem, por si mesmos, uma permanente fonte de estimulação baseada no medo, o mais deprimente e depressor agente de conduta. (…) Estabelece-se, a partir daí, um jogo sem grandeza e do qual o cidadão e a sociedade só podem sair derrotados” VILLELA, João Baptista. Direito, Coerção e Responsabilidade: Por uma Ordem Social não-Violenta. In: FARIA, Juliana Cordeiro; MARX NETO, Edgard Audomar; GOMES, Elena de Carvalho; FROES, Júlia Vieira. João Baptista Villela: Obra Selecionada. São Paulo: Dialética, 2023, p. 29.

[7] Efeito Cobra: expressão cunhada pelo economista alemão Horst Siebert, descreve situações em que soluções bem-intencionadas acabam agravando os problemas que pretendiam resolver. Consultar: Warczak, Patrick. (2020). The Cobra Effect: Kisor, Roberts, and the Law of Unintended Consequences. Akron Law Review. V. 54, 2022, artigo 4, disponível em https://ideaexchange.uakron.edu/akronlawreview/vol54/iss1/4/ acesso em 25/03/2025

[8] Mesmo nos sistemas que admitem punitive damages, sua aplicação é excepcional, submetida a filtros rigorosos e a controle proporcional e constitucional.