Pablo Renteria**
- Introdução
O anteprojeto de revisão e atualização do Código Civil, elaborado pela Comissão de Juristas instituída pelo Ato do Presidente do Senado n. 11, de 2023, aborda uma ampla gama de temas que perpassa todo o texto codificado. De forma não exaustiva, este artigo aborda especificamente as propostas de alteração dos artigos 1.368-C a 1.368-F do Código Civil, que cuidam dos fundos de investimento.
Nessa direção, examina-se a conveniência de empreender, neste momento, a pretendida reforma do marco legal dos fundos, para, na sequência, analisar pontualmente algumas das alterações sugeridas para os dispositivos do Código Civil.
- Contexto histórico
Há de se tomar especial cautela para se legislar sobre fundos de investimento. A indústria de fundos se desenvolveu extraordinariamente no mercado brasileiro, tornando-se uma das mais relevantes no cenário internacional, mesmo sem contar com um marco legal. À exceção dos fundos imobiliários, que contam com uma lei própria desde 1993 (Lei 8.668), os demais fundos permaneceram por muito tempo reservados ao plano infralegal. O legislador não ia além de estabelecer a sua natureza condominial, definir o seu regime tributário e designar o ente da administração pública responsável por sua regulação.
Essa timidez legislativa, vale destacar, revelou-se bastante sensata, pois a regulação estatal e a autorregulação davam conta de disciplinar uma matéria eminentemente técnica que deveria evoluir agilmente para acompanhar a dinâmica das práticas de mercado. Esse cenário apenas se alterou mais recentemente, após o mercado brasileiro ter adquirido um tal grau de maturidade que a ausência de um marco legal, que estabelecesse os elementos mínimos de organização jurídica dos fundos de investimento, passou a ser sentida como um fator de insegurança jurídica que onerava os participantes do mercado. Em particular, o crescimento do contencioso cível envolvendo fundos de investimento apontava para a necessidade de regras específicas sobre a responsabilidade dos prestadores de serviço dos fundos, que pudessem ser seguramente aplicadas por aqueles incumbidos do exercício da atividade jurisdicional.
Foi nesse contexto que a Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019) introduziu a disciplina dos fundos de investimento no Código Civil, atendendo a demandas que, em sua maioria, vinham sendo amplamente discutidas em fóruns jurídicos especializados e recolhiam relativo consenso entre os operadores do mercado. Como anotam João Accioly e Julia Franco, a Lei de Liberdade Econômica teve o especial cuidado de evitar “mudanças mais drásticas e de ímpeto”, procurando “preservar ao máximo a ordem estabelecida diante das instituições já vigentes”.[1]
O projeto de reforma e atualização do Código Civil deveria seguir o mesmo caminho. No entanto, muitas das propostas ali contidas ensejariam mudanças significativas na disciplina legal dos fundos de investimento, sem que houvesse um diagnóstico claro, quanto menos um consenso, sobre a necessidade ou a conveniência de serem introduzidas.
Evidentemente, não se trata de negar espaço para aprimoramentos no texto legal, mas de reconhecer que as propostas formuladas não estão suficientemente maduras, nem se mostram, neste momento, oportunas. Isso porque o mercado ainda está se adaptando às inovações trazidas pela Lei de Liberdade Econômica, que foram objeto de regulamentação pela Comissão de Valores Mobiliários apenas em 2022,[2] após um longo e minucioso procedimento de consulta pública, e que segue ainda hoje em período de transição. E diante de tal cenário, o início de um novo ciclo de reforma legal, antes mesmo de concluído o anterior, sobrecarregaria os participantes da indústria, bem como poderia comprometer a qualidade da proposição legislativa, pois, somente com o tempo, é possível decantar as efetivas insuficiências da atual disciplina legal.
- A supressão da referência a condomínio
A advertência feita acima pode ser ilustrada com a proposta de exclusão da referência feita no artigo 1.368-C à natureza condominial dos fundos de investimento. Ainda que, do ponto de vista dogmático, a qualificação do fundo como condomínio se preste a críticas,[3] a simples supressão desse termo do texto legal não produziria bons resultados.
A despeito de o legislador ter sempre tratado os fundos como espécie de condomínio, a doutrina, ainda hoje, controverte sobre sua efetiva natureza jurídica, registrando-se opiniões que os assimilam a um sujeito não personificado,[4] a uma sociedade[5] ou, ainda, a um patrimônio separado.[6] Essa discussão não é meramente acadêmica, haja vista suas repercussões, entre outros pontos, na definição da capacidade dos fundos para a prática de atos na ordem jurídica.
Por isso, a simples exclusão do texto legal da referência feita ao condomínio, desacompanhada de qualquer outra alteração destinada a esclarecer a qualificação jurídica dos fundos de investimento, não resolveria as dificuldades hoje enfrentadas. Poderia, ainda, gerar insegurança quanto ao tratamento tributário dos fundos, pois, historicamente, a sua definição como espécie de condomínio justificou a sua submissão a um regime fiscal diverso daquele aplicável às sociedades personificadas.[7]
- Propositura de ações de reparação de danos contra os prestadores de serviço
O projeto pretende acrescentar os novos parágrafos 3º, 4º e 5º ao artigo 1.368-E do Código Civil para disciplinar, de forma inédita, as ações de reparação de danos propostas contra os prestadores de serviço em razão de danos que atingem os fundos. Nesse sentido, o projeto procura reproduzir, de forma incompleta,[8] os dispositivos da lei acionária (Lei 6.404/1976) que cuidam da ação social de responsabilidade contra administradores das companhias. O legitimado ordinário passaria a ser o próprio fundo, sendo necessária a prévia aprovação da assembleia geral de cotistas para a propositura da ação.
Aos cotistas incumbiria agir apenas como substitutos processuais do fundo (i) se a ação, apesar de aprovada em assembleia, não fosse proposta pelo representante do fundo no prazo de três meses da deliberação assemblear, ou (ii) se, no caso de ser rejeitada em assembleia, a ação fosse formulada por cotistas que representem 5%, pelo menos, do patrimônio do fundo.
Essa proposta significa uma ruptura drástica com a jurisprudência consolidada dos tribunais, que admitem a legitimidade ordinária do cotista para pleitear em juízo o seu direito de ser ressarcido pela lesão injusta aos seus interesses no fundo – o que, convém dizer, é condizente com a premissa legal de que o fundo é um ente despersonalizado de titularidade dos cotistas. A proposta teria por efeito criar uma barreira significativa ao acesso à Justiça, obrigando o cotista a superar inúmeras dificuldades para aprovar a propositura da ação em assembleia geral ou então a enfrentar os custos e riscos inerentes à formulação de uma ação derivada como substituto processual, sem que nenhum benefício econômico lhe seja oferecido em contrapartida.
Pode-se argumentar, em defesa da proposta, que a situação atual poderia levar, em certos casos, a uma sobreposição de ações formuladas tanto por cotistas, individualmente, quanto pelos próprios fundos. Mas ainda que se reconheça a necessidade de oferecer tratamento processual adequado a essa questão (por meio de regras de conexão ou continência, por exemplo), a proposta abraça uma solução extrema, que, na prática, dificultaria sobremaneira a tutela reparatória dos investidores.
Vale lembrar que a indústria de fundos se desenvolveu justamente nesse cenário de maior liberdade para a propositura de ações reparatórias, e não se pode desconsiderar a hipótese de que essa facilidade para a busca da tutela jurisdicional tenha contribuído e ainda contribua para a confiabilidade do mercado e, assim, para a atração de investidores.
Por isso, a adoção da proposta contida no projeto apenas se justificaria após detida análise do seu impacto regulatório, ponderando-se todas as alternativas normativas disponíveis para assegurar, de forma equilibrada, o acesso dos investidores à Justiça e, ao mesmo tempo, a proteção dos prestadores de serviço contra o risco de litigância excessivo. Cumpriria levar em conta, ainda, que o regime da ação social de responsabilidade, que se pretende replicar para os fundos, vem sendo objeto de críticas no seu âmbito de origem, justamente por dificultar em demasia a tutela reparatória dos acionistas das companhias abertas.[9]
- Competência da CVM para disciplinar a responsabilidade civil
O último ponto do projeto a ser abordado nesta sede diz respeito ao novo parágrafo 7º que se pretende acrescentar ao artigo 1.368-E para atribuir à Comissão de Valores Mobiliários – CVM competência para disciplinar “outros temas relativos à responsabilidade dos fundos de investimento”.
Essa proposta se mostra inadequada por ao menos três razões. A primeira é a delegação de competência a um ente da administração pública para disciplinar uma matéria que, na tradição jurídica pátria, é reservada ao legislador. A segunda reside no fato de a responsabilidade civil ser uma matéria pouca afeita à especialização técnica da CVM; a autarquia tem inegável expertise na apuração da responsabilidade administrativa, mas cuida apenas tangencialmente de conceitos centrais à responsabilidade civil, como o dano e o nexo de causalidade. O terceiro problema refere-se à preocupante falta de clareza do texto da proposta, que não indica quais seriam os “outros temas relativos à responsabilidade dos fundos de investimento”, o que poderia, no limite, abrir espaço para o órgão regulador estabelecer hipóteses de responsabilidade objetiva ou de inversão do ônus da prova, sem qualquer controle prévio por parte do legislador.
- Conclusão
Não obstante os seus méritos, o marco legal dos fundos de investimento introduzido no Código Civil pela Lei de Liberdade Econômica é passível de aprimoramentos. Já foram apontadas algumas imperfeições do texto legal, tais como a falta de clareza de alguns de seus enunciados e a inadequação de sujeitar os fundos às vetustas regras da insolvência civil previstas no Código Civil e no Código de Processo Civil de 1973.
Mas as discussões sobre esses e outros temas ainda são incipientes, até porque o mercado segue se adaptando às inovações trazidas nos últimos anos. Nesse cenário, a proposta de alteração do marco legal dos fundos de investimento, contida no anteprojeto de revisão e atualização do Código Civil, se mostra açodada. As alterações normativas pretendidas não foram devidamente apuradas, nem devidamente discutidas com os participantes do mercado, a despeito de ensejarem mudanças drásticas e potencialmente negativas no regime jurídico dos fundos.
** Professor de direito civil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Ex-diretor e ex-superintendente da Comissão de Valores Mobiliários.
[1] João C. de Andrade Uzêda Accioly e Julia Damazio Franco, “Fundos de investimento na lei de liberdade econômica: algumas considerações”, in. André Santa Cruz, Juliana Oliveira Domingues e Eduardo Molan Gaban (orgs.), Declaração de direitos de liberdade econômica: comentários à Lei 13.874/2019, Salvador: Editora JusPodivm, 2020, p. 464.
[2] Cf. Resolução CVM n. 175/2022.
[3] Nesse ponto, permita-se remeter a Milena Donato Oliva e Pablo Renteria, “Notas sobre o regime jurídico dos fundos de investimento”, in. Felipe Hanszmann e Lucas Hermetto (org.), Atualidades em Direito Societário e Mercado de Capitais, vol. V, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021, p. 17.
[4] Cf., por exemplo, Marcel Edvar Simões, O patrimônio no direito civil e no direito empresa: patrimônio destinados, patrimônios separados e patrimônios autônomos, Indaiatuba: Editora Foco, 2023, pp. 171-2 (sustentando tratar-se de sujeito não personificado).
[5] Nesse sentido, cf. Mário Tavernard Martins de Carvalho, “Conflitos de interesses nos fundos de investimento: aspectos práticos e jurídicos”, in. Felipe Hanszmann e Lucas Hermeto (org.), Atualidades em Direito Societário e Mercado de Capitais, vol. V, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021, p. 400.
[6] Seja consentido remeter novamente a Milena Donato Oliva e Pablo Renteria, “Notas sobre o regime jurídico dos fundos de investimento”, in. Felipe Hanszmann e Lucas Hermetto (org.), Atualidades em Direito Societário e Mercado de Capitais, vol. V, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021, pp. 17-9.
[7] Cf. Sheila C. Neder Cerezetti, Crisleine Barboza Yamaji e Thaís Vieira Lima, “Fundos de investimento: funções, natureza jurídica e distinções com outros institutos jurídicos”, in. Fernando Kuyven (coord.), Direito dos fundos de investimento, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, pp. 29 e ss.
[8] A proposta deixa de fora regras importantes do artigo 159 da Lei das S.A., como aquelas que tratam da inclusão da proposta de responsabilização na ordem do dia das reuniões assembleares, a destituição e substituição dos administradores contra os quais deva ser proposta a ação, e a distribuição dos resultados e das despesas da ação entre a companhia e os acionistas litigantes.
[9] Como exposto no Projeto de Lei n. 2.925, de 2023, sobre a transparência em processos arbitrais e o sistema de tutela privada de direitos de investidores no mercado de valores mobiliários, o qual propõe ajustes significativos na atual redação do art. 159 da Lei n. 6.404/1976, tendo em vista a “readequação de riscos e benefícios para as partes em processos societários” (Exposição de Motivos n. 00045/2023, do Ministério da Fazenda).