Carlos Alberto Carmona

1  Introdução

De 27 a 29 de outubro de 2016 realizou-se em Portugal, na tradicional Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, o VI Encontro Internacional de Arbitragem de Coimbra, organizado pelos ilustres colegas portugueses José-Miguel Júdice e António Pinto Leite. No segundo dia do festejado evento, participei, ao lado de Pedro A. Batista Martins e José Emilio Nunes Pinto de painel – capitaneado por Alexis Mourre – intitulado “O Grande Tribunal Arbitral”. Queriam os organizadores explorar no painel os defeitos e as virtudes do árbitro, de modo que me coube abordar as condutas reprováveis (rectius, pecaminosas) do julgador, observando o que acontece com ele antes da aceitação do encargo, durante o cumprimento da função e mesmo após o encerramento do procedimento arbitral. Para tanto – e para tornar menos árida a exposição – busquei associar as condutas que queria analisar aos sete pecados capitais (ou veniais, como querem alguns): a gula (desejo descomedido de ser árbitro); a soberba (cegueira do orgulho); a ira (inflexibilidade do ódio e do rancor); a avareza (o espírito pobre e fraco); a preguiça (escolha pelo fácil e rápido); a inveja (a cobiça por coisas alheias); e a luxúria (quando as paixões dominam). Eis, portanto, a razão e o espírito das reflexões que seguem.

2  Gula: o desejo descomedido de ser árbitro

Começo pela gula, o pecado capital comumente associado à vontade insaciável de comer ou beber em demasia. Trazida para nosso objeto de estudo, é possível compreendê-la como o desejo descomedido, desproporcional e desarrazoado de ser árbitro. O primeiro cenário no qual esse desejo descomedido manifesta-se diz respeito aos “clubes de árbitros”, verdadeiros pools de árbitros potenciais que se distribuem nacional e internacionalmente e tendem a receber número significativo de indicações para compor painéis arbitrais. Ocorre que eles podem existir tanto para o bem quanto para o mal da arbitragem.

Sob uma concepção negativa, existem os conchavos, grupos em que impera a barganha de influências e onde transitam os “árbitros profissionais” de parte (ou os árbitros que são indicados com frequência inapropriada pelo advogado da parte), pautados por trocas de favores, em relação quase clientelista. Por outro lado, há os country clubs, círculos fechados de árbitros que estabeleceram

relação mútua de confiança em virtude da conduta exemplar que demonstraram em casos anteriores, tratando-se, em oposição à barganha de influências, de barganha de virtudes em que a moeda de troca é o capital simbólico2detido por seus integrantes. Enquanto os conchavos geram painéis viciados, em que os árbitros padecem do pecado da gula arbitral e comportam-se de modo a angariar novas indicações entre seus pares (para presidir painéis, o que os leva à contemporização ou, por vezes, à leniência no trato de determinados argumentos), a indicação com base na confiança e em experiências anteriores conduz a uma experiência positiva, em que imperam a confiança recíproca e a discussão honesta da causa, sem o objetivo de inflar o ego de outros membros do painel (presidente do tribunal em relação aos coárbitros) ou de favorecer a parte que indicou o julgador (coárbitro em relação a algum dos litigantes).

Mas mesmo dentro deste círculo virtuoso em que se situam os árbitros que já trabalharam juntos e tem boa referência uns dos outros há perigos que precisam ser superados. A confiança, a estima e a admiração recíproca podem levar a uma postura de relaxamento em relação ao trato da causa: ainda que o presidente do painel seja experiente e correto, os coárbitros não podem, com base na confiança, delegar a ele as decisões e a análise do caso. Em outros termos, apesar de o painel ser composto de pessoas preparadas, todos devem continuar a estudar documentos e petições com o afinco necessário, conferindo e discutindo cada passo do processo. Se não for assim, a zona de conforto gerada pela participação em um painel confiável descambará para outro pecado grave: a preguiça!

O fenômeno da gula arbitral é observável ainda naqueles indivíduos que não sabem quando parar: aceitam todas as indicações sem verificar sua real disponibilidade para se dedicar à causa e sem aferir se têm capacidade para cumprir o encargo. Creio que os operadores da arbitragem já devem ter visto o profissional aceitar o encargo sem ter depois tempo para a realização de uma audiência: a Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional (CCI), com o objetivo de inibir os glutões, incluiu há alguns anos, em seu formulário de aceitação, pergunta específica sobre a disponibilidade do candidato a árbitro, rogando que avise desde logo os períodos em que estará impedido de dedicar-se ao trato da causa; da mesma forma, a entidade solicita informação sobre a quantidade de casos sob os cuidados do futuro árbitro para avaliar sua possibilidade de aceitar novos encargos. O CAM-CCBC (Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá) seguiu o exemplo e adotou política semelhante à da CCI, fazendo incluir em seu Código de Ética3 que o árbitro somente deve aceitar o encargo “se puder dedicar à arbitragem o tempo e a atenção necessários para satisfazer as expectativas razoáveis das partes, incluindo-se aí o tempo destinado ao estudo sobre o tema e das contribuições mais recentes a ele trazidas pela doutrina e jurisprudência”.

Sobre este último ponto (disponibilidade de tempo) convém tomar cum grano salis as informações do candidato a árbitro: muitos daqueles que fazem parte do country club tomaram gosto pela arbitragem (e especialmente pela participação em painéis arbitrais), de modo que criaram estrutura compatível com o manejo de vários processos ao mesmo tempo, liberando-se de outras atividades de modo a poderem dedicar-se aos processos arbitrais em que atuam. As boutiques arbitrais, portanto, ganham espaço no mercado!

Incluo no rol de limitantes à capacidade para desempenhar o múnus o desenvolvimento de arbitragem em língua estrangeira que o nomeado não domina, a aplicação de sistemas jurídicos desconhecidos pelo árbitro e a situação na qual a matéria objeto da controvérsia é tão específica a ponto de ser uma incógnita para o julgador, que deveria ter se escusado ab initio. Os três temas merecem reflexão.

Se uma arbitragem deve ser desenvolvida em idioma estrangeiro, o árbitro que aceitar o encargo deve efetivamente dominar a língua. Não bastam conhecimentos genéricos: não se imagina que o julgador não seja capaz de manifestar-se fluentemente no idioma da arbitragem, de modo que sua habilidade tem que ser escrita e falada, não sendo suficiente “compreender” o idioma escolhido pelas partes. Se a arbitragem for bilíngue, a habilidade esperada é nos dois idiomas escolhidos, já que os atos processuais (ordens processuais, petições, oitiva de testemunhas e peritos) poderão ser praticados indiferentemente em qualquer dos dois idiomas.

O conhecimento de determinado sistema jurídico põe em xeque os chamados “árbitros internacionais”. Sempre que algum desses conhecidos operadores internacionais apresenta-se como “árbitro internacional” meu coração estremece, já que sequer imagino a existência desta categoria de criatura no universo. Se a lei a ser aplicada é a sueca, espera-se que o árbitro conheça tal sistema jurídico, o que pressupõe que o julgador domine também o idioma (embora não seja tal língua, necessariamente, aquela que será utilizada no processo arbitral). Não concebo que alguém possa dominar um sistema jurídico sem ter acesso às leis, à doutrina e à respectiva jurisprudência. E, até onde sei, não parece que os suecos tenham tido o cuidado de verter para o inglês – língua franca da arbitragem e dos negócios em geral – suas leis, sua doutrina e a jurisprudência de seus tribunais. Afirmo, portanto, contrariando o parecer de alguns, que um árbitro que deva aplicar um sistema jurídico estrangeiro só será competente (no sentido vulgar da palavra) se puder compreender as leis que deverá aplicar, a doutrina que as interpreta e as decisões dos tribunais que as concretizam. Desconfio abertamente, portanto, dos sedizentes “árbitros internacionais”: um bom country club não os aceitará como sócios.

Por fim, lembro que há determinados contratos que pressupõem conhecimento (jurídico ou técnico) adequado, não podendo o ignorante (no sentido exato da palavra) aceitar o encargo de julgar algo que não consiga entender. Pense-se, a título de exemplo, nos litígios que envolvem energia elétrica ou nos conflitos decorrentes de uma pequena central hidrelétrica: quem não tem alguma familiaridade com o setor elétrico ou com o multifacetado contrato das usinas não estará apto a ocupar um lugar em tribunal arbitral que trate de um ou de outro tema.

Guloso também é aquele árbitro que, no momento da revelação de fatos que possam infirmar sua independência ou imparcialidade às partes omite-se propositadamente, deixando de revelar situação que sabe (ou pelo menos pressente) que pode causar seu afastamento. Assim, cala-se em primeiro instante para, no momento da realização da audiência de instrução (ou após o fim da instrução probatória), realizar revelação adicional e, destarte, criar um desincentivo a possível impugnação, deixando as partes na delicada situação de contraditar o árbitro (e invalidar os atos processuais até então praticados, que talvez tenham que ser repetidos) ou relevar alguma circunstância ligada ao julgador que não estariam – em situação normal – dispostas a suportar.

3  Soberba: a cegueira do orgulho

A soberba constitui patologia que afeta a personalidade do árbitro, que deixa de ser motivado pelo desafio, paixão e senso de dever, entregando-se à busca frenética de prestígio e poder decorrentes do exercício da função de árbitro. Lembrando a última fala de um memorável personagem encarnado por Al Pacino,4 a vaidade é o pecado de que o diabo mais gosta!

Ser nomeado árbitro funciona, para alguns, como uma forma de prestígio social, que destacaria pretensas qualidades técnicas (entre nós, advogados, elevaria o indivíduo à ambicionada categoria de “jurista”), o que alimenta o ego do árbitro vaidoso, que faz questão de lembrar sempre que possível que participou deste ou daquele litígio noticiado na mídia ou conhecido em certos meios técnicos. O comportamento é completamente reprovável e serve para distinguir os indivíduos vocacionados daqueles meramente interessados na fama e ribalta que o encargo de julgar pode trazer.

Incorre também no pecado da soberba o árbitro que se enxerga autossuficiente e age com prepotência: impermeável aos argumentos e às posições dos que se manifestam em sentido contrário às suas concepções, o orgulhoso acredita prescindir das considerações das partes, de seus colegas árbitros e demais atores do procedimento para formar sua convicção, despreza laudos técnicos (quando detém a respectiva expertise), menospreza pareceres jurídicos e faz pouco dos esforços dos advogados para demonstrar suas teses.5 Minha experiência revela que ninguém conhece o litígio submetido à jurisdição arbitral melhor do que as próprias partes e seus patronos, devendo o árbitro incentivar o diálogo útil entre os diversos atores do procedimento arbitral para fornecer as condições ao exercício do contraditório pleno e eficaz, apto a produzir os elementos – imprescindíveis, diga-se – para a formação do livre convencimento motivado do árbitro. Dito de outro modo, o árbitro bem resolvido e proativo tirará do contraditório adequadamente dirigido os melhores argumentos e fundamentos para bem decidir a causa.

A bem da verdade, deve o árbitro assumir posição de humildade intelectual perante as argumentações das partes e reconhecer que, em determinadas circunstâncias, não detém completo domínio sobre a matéria sub judice. Seja em virtude de seu caráter eminentemente técnico, a exemplo do que ocorre em arbitragens relativas à construção ou ao setor de óleo e gás, seja em decorrência da matéria jurídica, pode o árbitro – mesmo sendo especialista (e, portanto, interlocutor válido das partes) – não saber ou entender tudo, devendo apreciar tanto as submissões das partes, como os documentos produzidos por outros atores do procedimento arbitral, com percuciência, paciência e atenção.

Incluo ainda, sob a alcunha soberba arbitral, situações em que ocorre verdadeira fogueira das vaidades entre os árbitros e/ou entre estes e os patronos das partes. É fato incontroverso que convergem para a arbitragem os profissionais melhor preparados do mercado, seja para ocupar a posição de árbitros, seja a de advogado das partes, seja a de perito, o que muitas vezes provoca o encontro de profissionais de sucesso que, reproduzindo cenas típicas de episódios da vida selvagem, estufam o peito, batem asas, exibem papadas exuberantes e fazem ouvir gorjeios exóticos. Se esses comportamentos chamam a atenção daqueles que seguem a programação dos canais de TV que exibem curiosidades do “planeta animal”, na arbitragem produzem cenas deploráveis, em que os protagonistas do processo olvidam-se dos pontos de fato e de direito controvertidos entregando-se à disputa de egos, digladiando-se para assumir inconcebível proeminência na querela, exibindo erudição desnecessária, entregando-se de modo estridente ao trato de argumentos, tripudiando de adversários, tudo no afã – inglório – de receber novas indicações (como árbitros) ou capturar novos clientes, supostamente impressionáveis com atuações arrogantes (para não dizer histriônicas).

Não se espera que os árbitros (especialmente quando são advogados, o que corresponde à grande maioria) sejam profissionais que exibam baixo perfil em seus comportamentos. Pessoas tecnicamente preparadas exibem um natural high profile. Entretanto há uma diferença abissal entre comportar-se de forma assertiva (mas sóbria) e exibir-se de modo impudico. Vangloriar-se de suas nomeações, tripudiar de advogados que eventualmente não se saíram bem na defesa de seus clientes, desacreditar outros árbitros, criticar abertamente peritos e pareceristas são comportamentos inaceitáveis e que talvez incentivem Al Pacino a reeditar seu personagem diabólico focando não mais o advogado, mas sim o árbitro!

4  Ira: a inflexibilidade do ódio e do rancor

Ira é paixão da alma, que causa raiva e indignação. Trata-se de sentimento que destila fel, malevolência e hostilidade, dirigido a uma ou mais pessoas por conta de suposta ou efetiva ofensa ou insulto, dando origem a uma situação agressiva.

O árbitro, no cumprimento de sua função, será sempre alvo de zangas, irresignações e arrebatamentos por parte de quem vê desatendidos seus pleitos. A frustração, por vezes, provoca manifestações irascíveis da parte ou de seus advogados: há que saber reagir com equilíbrio, serenidade, tranquilidade e – se possível – impassibilidade aos argumentos por vezes encarniçados ou irônicos dos representantes dos litigantes.

No cumprimento do poder-dever de decidir atribuído ao árbitro pela vontade das partes – e, em análise última, pela lei – não pode o julgador restar abatido ou influenciado diante de críticas ou posturas agressivas adotadas pelas partes. Deve o julgador manter-se firme na busca por um bom julgamento da causa, inobstante as provocações efetuadas, sem, todavia, tornar-se hermético aos argumentos trazidos pelas partes e incorrer também no pecado da soberba. E os comportamentos desairosos, já se sabe, não virão apenas das partes e de seus advogados: testemunhas comprometidas com a posição de um dos contendentes podem tirar o árbitro do sério ao usarem incríveis evasivas para não responderem ao que lhes for perguntado; peritos mal intencionados podem pôr à prova a têmpera do julgador ao sustentarem o insustentável; secretarias mal preparadas podem provocar erros procedimentais graves, que obrigam o julgador a repetir (ou cancelar) atos do processo arbitral. Todos estes percalços e provocações devem ser sublimados pelo árbitro, que não pode entregar-se à fúria e à indignação, despejando fogo, ferro e enxofre sobre os infratores sob pena de desqualificar-se como julgador.

Contribui ainda para a busca por um bom julgamento da causa e concomitante pacificação do conflito o discernimento do árbitro de separar a estratégia processual, os interesses das partes e a atuação dos advogados, devendo ater-se aos pontos sobre os quais haverá de proferir o julgamento sem irritar-se com o advogado (para não prejudicar as partes).

A agressividade, a ironia e o sarcasmo podem fazer parte de estratagemas adotados pela parte que percebe estar a causa esvaindo-se-lhe entre os dedos das mãos. Com efeito, em desespero, o litigante que se vê perdido recorre por vezes a táticas guerrilheiras, antevendo a necessidade de promover ação anulatória contra a decisão que lhe será adversa. É nesse momento que a ira do árbitro joga a favor da parte que não tem razão, pois aquela que quer bombardear o procedimento passa a atacar de modo furioso o tribunal arbitral (ou algum dos árbitros) com o intuito de provocar a sanha dos julgadores que, por conta da indignação com o ataque despudorado da parte guerrilheira, respondem na mesma moeda, perdendo por completo o distanciamento que a função de julgador recomenda. O resultado será inevitavelmente a alegação da parte maliciosa – que provocou o incidente – da perda de imparcialidade (que deve caracterizar o exercício da função jurisdicional), pondo-se a pique o procedimento arbitral.

Uma tática guerrilheira que vem se propagando entre nós é a impugnação frívola de algum dos componentes do painel arbitral: a parte que percebe o iminente naufrágio da causa põe-se a atacar algum julgador com argumentos inconsistentes, mas violentos; o árbitro injustamente impugnado reage, despejando sobre o impugnante sua santa ira. O resultado da batalha é a rejeição da impugnação e a subsequente renúncia do árbitro que, ofendido (e encolerizado), desqualifica-se como julgador sereno e imparcial. Dito de outro modo, graças ao furor do julgador na defesa de sua honra, a parte maliciosa alcança seu intento de procrastinar a arbitragem, causando considerável dano ao processo (com a necessidade de substituir o árbitro renunciante).

Quem quiser atuar como árbitro tem que se educar na arte de contender sem ímpetos furiosos e sem rancor. Quem cede a provocações não consegue evitar as manhas e ardis criados por advogados mal intencionados. Por outro lado, o árbitro que pensa que tratar uma testemunha ou um perito de modo rude e agressivo possa ser uma fórmula adequada de obter informação e esclarecimento tem muito que aprender: os tribunais da nefasta inquisição foram desmontados no século XIX e não se espera que sejam reeditados em sede arbitral em pleno século XXI.

5  Avareza: o espírito pobre e fraco

O ardente desejo de acumular riqueza provoca em alguns árbitros um verdadeiro pavor de perder a possibilidade de serem nomeados para mais e mais arbitragens. Este medo desenfreado de diminuição de receitas leva o julgador a evitar – a todo custo – qualquer desavença com a parte ( rectius, o advogado) que o indicou, apostando na possibilidade de novas indicações.

Tal atitude tem consequência deletéria para o procedimento arbitral, pois cria incentivo a condutas permissivas e malemolentes, com o deferimento injustificado de pedidos até mesmo emulativos formulados pela parte. O árbitro medroso (que não se confunde com o árbitro cauteloso) deixa de aplicar penalidades cabíveis contra a parte desidiosa, fixa honorários pífios contra a parte que o nomeou (quando vencida), aumenta-os quando for o caso de favorecê-la, posterga decisões que contrariem a parte que deseja agradar e – se não tiver pejo nem compostura – chega até mesmo a amenizar condenações contrárias à parte que o apontou, splitting the baby para desespero de quem deveria sagrar-se vencedor. Em outros termos, o árbitro deixa de ser julgador imparcial para refletir os interesses da parte que o indicou, com o objetivo de mostrar a este litigante a vantagem de voltar a indicá-lo em outras oportunidades.

Este comportamento enviesado – que provavelmente alguns de nós, que nos dedicamos à arbitragem, já presenciamos – faz refletir sobre uma expressão que os norte-americanos apreciam e usam muito: trata-se do “árbitro de parte”, julgador nomeado pela parte (que, no Brasil, usualmente denominamos coárbitro) e que teria a função de realçar (no seio do painel arbitral) os argumentos e as provas produzidas pelo litigante que o indicou. É difícil separar esta tarefa de “zelador” da parcialidade pura e deslavada. Creio que não há meio-termo nesta questão: ou todos os árbitros são imparciais, ou não são. E se não são, o julgamento é viciado, de modo que o “árbitro de parte” (na concepção norte-americana) é um mal que deve ser evitado. Aquele que não estiver preparado (e disposto!) a separar-se completamente dos interesses de qualquer parte (seja daquela que o indicou, seja do outro litigante) não deve e não pode funcionar como árbitro. Como disse Cecilia Meirelles, ou isto, ou aquilo:6 se quer ser árbitro, seja imparcial; se não quer (ou não consegue), seja advogado.

É próprio também do árbitro de espírito pobre e fraco aceitar favores oferecidos pelas partes. É o caso, por exemplo, do árbitro que se desloca para o lugar em que se realizará a audiência de instrução no avião particular de uma das partes (sem que o fato seja revelado a todos os interessados, com o respectivo waiver), ou daquele que se hospeda em imóvel oferecido pela parte para maior conforto durante a sessão de audiências. Mas é preciso tomar estes exemplos com cautela e sem excessos: é comum ouvir nos congressos internacionais de arbitragem que o árbitro não deve (ou não pode) jantar com o advogado das partes, não pode frequentar os mesmos ambientes, não pode encontrar com ele em festas e confraternizações, entre tantas outras restrições. Não concordo com estas limitações exageradas e irrestritas. In medio virtus: não se espera que árbitros, advogados e partes sejam comensais habituais, mas não se pretende que o árbitro seja um eremita, um pária social. Se no âmbito da arbitragem nacional os árbitros naturalmente se encontrarão com os advogados das partes (no caso brasileiro, tanto com os advogados que o indicaram como com os advogados da parte contrária ao nomeante), em sede de arbitragem internacional convém ser mais comedido: favores ingênuos podem consubstanciar pedidos de impugnação do árbitro, pois, aos olhos de terceiro e à luz da teoria da aparência, comprometem o compromisso de manter a imparcialidade e a independência ínsitas ao cumprimento do encargo.

Ainda no que concerne ao árbitro avaro, destaco a importância de resistir ao ganho fácil que a singularidade das informações auferidas no curso do procedimento podem propiciar. A utilização de informações obtidas em arbitragem que verse sobre matéria societária de companhia aberta, com o potencial de afetar adversa ou positivamente os valores mobiliários por ela negociados, em benefício pessoal e financeiro do árbitro, é exemplificativa da avareza arbitral.7 Ademais, também se encaixa nessa moldura a situação na qual o advogado, na representação de cliente em outro caso, utiliza informações auferidas em procedimento que arbitrou.

6  Preguiça: a escolha pelo fácil e rápido

A pouca disposição para o trabalho, manifestada por escolhas em favor do fácil e rápido, é própria do árbitro desinteressado pelo exercício do poder-dever de julgar que a ele se impõe. Como já disse, ser árbitro é vocação: a busca pela verdade processual (verossimilhança), apta a produzir o julgamento mais adequado à lide, exige árbitro preparado e acima de tudo proativo. Agindo com disposição e operosidade, o árbitro contribuirá para expurgar do sistema processual a verdade formal, que só contenta ao julgador indolente e pouco (ou nada) colabora para a superação da crise de incerteza submetida ao juízo arbitral.

Cabe apontar que a falta de capricho, esmero e empenho por parte do julgador acarreta morosidade e lentidão ao procedimento arbitral, em absoluto descompasso com a dinâmica e a celeridade esperadas pelas partes. Nesse sentido, o árbitro não pode permitir a produção de provas inúteis e impertinentes para a solução do litígio, seja com o intuito de evitar o esforço de compreender quais seriam as provas necessárias, seja em virtude de preguiça para formular justificativa apta a embasar o indeferimento da prova requerida. O árbitro, na qualidade de gestor do caso, deve dar regular andamento ao procedimento para que o processo tenha sua duração razoável preservada, evitando conceder às partes sucessivas oportunidades de manifestação na esperança de que esmiúcem os fundamentos que o desmazelado julgador não quer procurar (trata-se do odioso “diga-diga”, que dilata até a eternidade os procedimentos judiciais).

Sob o manto da preguiça arbitral figura ainda o árbitro escondido, passivo, ou melhor, fantasma,8 que não participa das deliberações do tribunal arbitral, omite-se nas discussões e, assim, não cumpre seu múnus, vez que renuncia, tacitamente, ao poder de influir nas decisões proferidas pelo tribunal arbitral.

Não se espera que o tribunal arbitral se reúna para discutir todas as questões ligadas à arbitragem: as chamadas “ordens processuais” são normalmente minutadas pelo presidente do painel e enviadas para meditação (e sugestões) dos demais membros do colegiado. O presidente vocacionado não espera a submissão de seus pares às suas sugestões. Longe disso, sentir-se-á mais confortável se os coárbitros responderem proativamente à sua provocação, aportando considerações pertinentes que tornem a deliberação mais clara, mais sólida e mais adequada ao caso concreto. É frustrante, portanto, perceber o presidente do colegiado que, enviada uma minuta de decisão abordando questão mais ou menos complexa, algum coárbitro responda quase que imediatamente manifestando sua aprovação, ainda que a resposta venha acompanhada de um insincero elogio à qualidade da decisão, provavelmente não lida (e não revisada) pelo cojulgador.

A indolência dos árbitros, por outro lado, pode decorrer da má administração do procedimento, especialmente por parte do presidente do colegiado, que deve zelar pela razoável duração do processo. Não há justificativa para ordens processuais que tardam ou decisões que demoram sem que haja complexidade que justifique o retardamento. Aqui, porém, é preciso ter atenção, pois muitas vezes a demora na decisão decorre do dissenso entre os membros do tribunal, que travam discussão interna no sentido de descobrir qual o melhor caminho para dirimir o conflito. As partes devem estar atentas, portanto, para identificar e distinguir dois comportamentos distintos e antagônicos: de um lado a malemolência do tribunal arbitral, que atrasa sem necessidade a solução (ou o andamento do caso); de outro, a tentativa de chegar-se a uma decisão tão coesa quanto possível da causa (ainda que majoritária), o que pode levar a várias sessões de debate entre os membros do colégio (e várias tentativas de redação de decisão que contemple todos os pontos de vista que devam ser levados em conta para uma decisão completa).

7  Inveja: a cobiça por coisas alheias

Inveja é o desejo de possuir um bem que pertence a outrem. É sentimento de inferioridade diante da felicidade e realização do outro, projetando ciúme e desgosto. O árbitro pode estar acometido deste sentimento abjeto quanto fixa em valor aviltado os honorários de sucumbência devidos ao advogado da parte vencedora ou quando arbitra com mesquinhez os honorários de peritos ou outros auxiliares que atuaram no processo arbitral.

Com efeito, é muito comum (aliás, é praticamente a regra) que o árbitro afira rendimentos muito inferiores aos dos advogados que atuam no procedimento arbitral (o estipêndio destes últimos é muitas vezes calculado com verbas de êxito bastante relevantes).9 O árbitro não deve apequenar os honorários dos advogados quando lhe couber fixar a verba sucumbencial, da mesma forma que deve ser objetivo (mas não pródigo) quando tiver que avaliar os “honorários razoáveis contratados” para efeito de reembolso. Trata-se de dois critérios que têm sido muito utilizados em sede de arbitragem para repor a parte que tem razão no estado em que se encontraria se não tivesse havido litígio: a primeira verba serve para remunerar o patrono da parte vencedora (os honorários são fixados a favor do advogado); a segunda verba é estipulada a favor da parte, que contratou advogado e celebrou com ele um contrato de prestação de serviços. O primeiro valor é fixado de acordo com a excelência do trabalho prestado, a dificuldade da causa, o valor e importância do litígio, o local (ou locais) em que os serviços foram prestados; o segundo leva em conta o contrato de honorários que houver sido celebrado, limitando os julgadores o valor do reembolso a quantias razoáveis, para evitar abuso na contratação. Como todos os critérios acima esmiuçados são relativos, há razoável margem de discricionariedade, o que pode dar azo à atuação de julgadores invejosos, talvez frustrados pela incapacidade de angariar clientes do quilate daquele representado pelo advogado cujo trabalho terá que avaliar.

O pecado da inveja arbitral resta qualificado – e pode conduzir o árbitro pecador com maior rapidez às profundezas do Inferno – quando o julgador, além de amesquinhar os honorários do causídico ou do perito permite-se desqualificar injustificadamente os profissionais. Já se viu situação – lamentável sob todos os aspectos – de árbitro integrante de grande escritório de advocacia criticar a atuação de determinado advogado (ou do escritório que integra) em razão de o profissional concorrer no mesmo ramo em que o próprio árbitro tem sua prática advocatícia!

8  Luxúria: quando as paixões dominam

A luxúria está associada à corrupção dos costumes e é a porta de entrada para os demais pecados: ligações incestuosas entre árbitros e partes (ou entre árbitros e advogados) podem levar ao comprometimento de todo o procedimento.

Serve de exemplo deste comportamento execrável do árbitro a transferência de informações das discussões do painel ao advogado da parte: ai do árbitro que revela a qualquer dos advogados as impressões do tribunal acerca de alguma questão, dando sugestões de como a causa deva ser conduzida para melhor convencer os julgadores! O árbitro espião (árbitro tóxico) é um pesadelo para os demais árbitros e estes, tão logo percebam o comportamento incestuoso de algum membro do painel em relação ao advogado da parte, certamente o isolarão, o que prejudicará o natural funcionamento do colégio.

Em países como o nosso, onde a arbitragem acabou vicejando para formar verdadeiros clubes de árbitros, que se revezam na função de julgadores, é muito comum um intercâmbio de papéis, de modo que o profissional ora atua como coárbitro, ora como presidente do tribunal arbitral, ora como árbitro único, ora como advogado da parte. Isto provoca natural familiaridade entre todos os operadores, o que pode contribuir para a formação de um círculo virtuoso – fazendo funcionar adequadamente a arbitragem e fundamentando as bases de sua legitimidade e prosperidade10 – da mesma forma que pode criar um verdadeiro círculo vicioso, no qual a proximidade das pessoas permita confidências e indiscrições. Essa dimensão relacional entre atores pode produzir externalidades negativas para o procedimento arbitral, já que amizades entre árbitro e advogado, no contexto de determinada arbitragem, podem ensejar até mesmo uma tendência imperceptível de pender para determinado lado em razão do relacionamento social construído alhures (é o que se convencionou denominar de unconscious bias). Seja qual for a situação, é inconcebível que o árbitro repasse informações, mormente relativas às deliberações do tribunal, às partes (ou aos seus advogados), para demonstrar que sua posição prevaleceu (em tentativa desastrada de impressionar a parte que o nomeou) ou ainda por interesses outros. Mais que isso, não pode o julgador cometer a indiscrição de comentar, ainda que a posteriori, o processo decisório que levou a esta ou àquela deliberação. Em síntese, as discussões havidas no âmbito do tribunal arbitral ficarão sempre confinadas ao conhecimento dos próprios participantes do painel e o término da arbitragem não dispensa os árbitros do dever de sigilo (quando se submeteram ao dever de confidencialidade) ou, no mínimo, ao dever de discrição (que, no Brasil, é legal).

O funcionamento adequado desta “roda da fortuna” (refiro-me ao intercâmbio de posição entre árbitros e representantes de partes) depende – desnecessário dizer – do caráter das pessoas envolvidas e de um código de ética que precisa performar adequadamente. O que se tem assistido no Brasil é verdadeiramente edificante neste aspecto, pois os operadores – que ainda não são tantos

– comportam-se de maneira apropriada e poucas têm sido as queixas em relação a atitudes comprometedoras de árbitros que se deixam arrastar aos pântanos das comunicações incestuosas e comprometedoras. Ainda que não seja por questão exclusivamente de escrúpulos, todos os que militam na arbitragem sabem que o country club é implacável com quem se comporta mal e os desvios e falhas são rapidamente percebidos pela comunidade, que imediatamente exclui o pecador do convívio saudável.

Outra situação em que a paixão pode dominar a razão e levar o árbitro a entregar-se ao incesto é aquela que diz respeito a comunicações ex parte ou seja, a comunicação entre árbitro e uma das partes: entendo que a prática deva limitar-se a consultas anteriores à instauração da arbitragem com o objetivo de determinar a disponibilidade do árbitro em potencial e a ausência de possíveis conflitos de interesse. Nesse sentido, dispõem as International Bar Association Guidelines on Party Representation sobre comunicações ex parte no curso da arbitragem, devendo ser evitadas, a não ser que expressamente previstas pelas partes.

9  Conclusão

As reflexões que fiz acima, com descrição de condutas que refletem os sete pecados capitais, demonstram que aceitar o encargo de árbitro não é tarefa a ser cumprida com leviandade ou desatenção. Pelo contrário e, como já ressaltado, exige vocação, resistência, prudência e muito escrúpulo.

Na busca incessante de aperfeiçoamento da instituição, várias entidades estão tentando dar sua contribuição para orientar a conduta dos julgadores. A IBA, com suas Guidelines acerca dos representantes de partes na arbitragem, deu sem dúvida uma boa colaboração neste sentido (embora as orientações da entidade estejam carregadas de conceitos e condutas que fazem mais sentido nas famílias de common law do que nas de civil law); as câmaras e centros de arbitragem prestam também sua ajuda, editando códigos de ética e de conduta, o mesmo podendo dizer-se de centros arbitrais internacionais que procuram editar verdadeiras “cartilhas” para mostrar como deve ser conduzida a arbitragem.

Depois de expor patologias e monstruosidades, creio que convenha encerrar este ensaio descrevendo o que me parece ser um árbitro ideal: o julgador que profere, em tempo razoável e de modo sereno, uma decisão tão justa quanto possível, levando em conta os fatos alegados e provados, em conformidade com as regras aplicáveis, permitindo às partes que exponham o seu caso de forma completa e possam influenciar a decisão, mas sem dilações desnecessárias.

Há quem diga que o árbitro ideal e perfeito não existe, é irreal, é utópico. Creio que os céticos têm razão. De qualquer modo, parece que a perfeição é como o horizonte: por mais que se caminhe em sua direção, jamais será alcançado, mas é para isso que existe, para que não se deixe de caminhar!

De Coimbra para São Paulo, em Novembro de 2016.