Henrique Barbosa**
- Introdução
Há algumas semanas este Boletim brindou seus leitores com as sempre boas ponderações do Prof. Alfredo de Assis Gonçalves Neto acerca das alterações sugeridas ao Livro do Direito de Empresa, no Anteprojeto de Reforma do Código Civil. Em duas partes, o professor arrolou um leque de impropriedades, às quais apresentou suas objeções preliminares, destacando haver outras que, por extrapolarem os limites do periódico, mereceriam futura incursão mais detalhada. É se escorando “sobre os ombros do gigante” que, também em duas partes, fazendo coro às referidas críticas – e exortando o público à sua (re)leitura[1] –, as presentes considerações pretendem jogar luz em alguns dos vários vícios complementares ventilados.
- Um Anteprojeto entre Dr. Jekyll e Mr. Hyde
Como que saído das páginas do clássico de Robert Louis Stevenson, o Anteprojeto padece de um estranho transtorno de identidade. Por um lado, propaga e positiva valores e princípios liberais ditos fundamentais para “impulsionar o fluxo de negócios no País” e “a atração de investimentos”. Por outro, cria barreiras injustificáveis, ao restringir a constituição das limitadas unipessoais às pessoas naturais (art. 1.052-A), ou exigir que a simples participação de sociedades estrangeiras em sociedades brasileiras seja precedida de autorização governamental (art. 1.134-A, §2º).
Esse paradoxo explica de certo modo a infeliz versão apresentada para o “novo” Livro do Direito de Empresa. Longe de fomentar um Anteprojeto coletivo, fruto da benfazeja diversidade de mentes e perfis própria do mundo contemporâneo, o pouco zelo sistêmico e o questionável rigor técnico acabaram dando lugar a vários “excertos de homens (e mulheres) sós”, não raro incongruentes entre si. Com isso, ao invés da “segurança e previsibilidade” prometidas, o que se tende a semear é uma indesejável incerteza aos agentes econômicos. E aqui não se pode deixar de notar o estranho atropelo pela comissão revisora às sugestões da subcomissão especial de Direito Empresarial então constituída, numa lamentável estratégia de pseudo-legitimação a priori do texto, mas que se mostrou pura tática diversionista, colocando em xeque, já nas origens, o Anteprojeto apresentado.
2.1. Das perigosas nuances da positivação principiológica
Sem questionar aqui a opção pela positivação legal de princípios, o fato é que, tal qual estruturada, a principiologia posta no art. 966-A não parece a mais adequada. Reincidindo no que parece um temerário excesso do art. 3°, VIII, da “Lei de Liberdade Econômica”, o inciso III do art. 966-A vaticina o princípio “da autonomia privada, que somente será afastada se houver violação de normas legais de ordem pública”. O mesmo se lê no inciso VII quanto à “força obrigatória das convenções, desde que não violem normas de ordem pública”.
Antes de positivar essas ideias, talvez fosse prudente voltar às lições de Victor Nunes Leal[2] para melhor compreender o quão complexas são essas categorizações de normas ditas “de ordem pública”, e o quão difícil será bem enquadrá-las no âmbito do Direito Societário. Nesse sentido, vale notar que, desde a edição da “Lei de Liberdade Econômica”, o STJ fez uma única menção – note-se, com enorme viés obiter dictum – ao que chamou de “princípio da supletividade” da lei societária, sem qualquer elaboração teórica minimante robusta acerca do mesmo[3].
Não à toa, já numa interpretação literal esses dois princípios precisariam ser sopesados com as previsões de “nos termos da lei”, “nos termos legais”, ou do “sempre que não sejam contrários ao direito”, postas respectivamente nos princípios de liberdade de organização, limitação de responsabilidade e observância dos usos e costumes, igualmente consagrados nos incisos II, V e IX do mesmo art. 966-A. E nessa balança de princípios o império da subjetividade é sempre contraproducente.
Lado outro, ao positivar no inciso VI o princípio “da deliberação majoritária do capital social, salvo se o contrário for previsto no contrato social”, o Anteprojeto parece tornar plenamente dispositivos todos os quóruns deliberativos, facultando inclusive que se os reduza para abaixo da metade do capital social votante. Afinal, tal como atecnicamente redigido, o “contrário” de uma deliberação “majoritária” seria uma deliberação minoritária. Com efeito, o mais correto talvez fosse substituir esse “ao contrário” por um texto que homenageie o princípio da maioria, “se maior quórum não for exigido pelo contrato social”, como o faz, p.ex., o art.136 da Lei das S/A.
- Da maioria à tirania societária (e o estranho fim da possibilidade de exclusão dos sócios majoritários da sociedade limitada)
O entendimento há muito consolidado por doutrina e jurisprudência é no sentido de que o quórum de legitimação de “maioria dos demais sócios” do atual art.1.030 permite a exclusão judicial inclusive de majoritários de sociedades limitadas. Bem verdade que o CPC/2015 dificultou essa hipótese ao restringir a legitimidade ativa tão somente à sociedade (art. 600, V), o que não raro inviabiliza a própria propositura da ação, por ser improvável que as minorias estejam em posição apta a mandata-la a tanto.
Mas ao invés de transpor o entrave procedimental superveniente – p.ex., estabelecendo uma via de substituição processual, mediante a qual os minoritários poderiam propor a ação em nome próprio, ainda que na salvaguarda do interesse primário da sociedade, tal qual o faz o art. 159 da Lei das S.A. -, o Anteprojeto acabou por simplesmente se render ao problema. O texto proposto altera a redação do art. 1.030 para estabelecer que “pode o sócio ser excluído judicialmente, mediante iniciativa dos sócios que representem a maioria do capital social”, jogando por terra, também sob o aspecto material, a possibilidade de expulsão das maiorias que coloquem o negócio em risco.
Curioso, todavia, é que essa previsão vai de encontro ao princípio da preservação da empresa que se pretende positivar no mencionado artigo 966-A, VIII. Talvez a “lógica” por trás dessa vedação seja o fato de se ter institucionalizado em definitivo no Anteprojeto o direito de retirada imotivada dos sócios (art. 1.029), de modo que, aprovada a reforma, ao minoritário abusado reste “a porta da rua como a serventia da casa”, o que não parece condizer com o regramento societário moderno. O risco, aqui, é verter o princípio da maioria num verdadeiro cheque em branco à tirania majoritária – que poderá inclusive ser uma minoria econômica, a depender da emissão ou não de quotas preferenciais sem voto -, blindada que estará em sua posição dominante.
- Da separação com múltiplo “goodwill” e da curiosa “SCP pós-conjugal”
Numa redação não muito clara, o parágrafo único sugerido ao art. 1.027 parece pretender complementar o caput e positivar o cabimento do pedido de dissolução parcial da sociedade (via liquidação de quotas), por meeiros de sócios que venham a se separar ou divorciar. É o que se lê do comando de aplicação do “art. 1.031 para se proceder à determinação do valor das quotas por perícia, considerada a data da separação de fato.”
Na contramão desse marco taxativo, contudo, a parte inicial do parágrafo estabelece que, até que se os liquide, “os lucros recebidos não serão considerados adiantamento dos haveres correspondentes à sua participação na quota social”.
Ora, se o marco dos haveres “meáveis” passa a ser a separação de fato, a cuja data retroagirá a apuração pericial respectiva, não parece lógico que se confira caráter não antecipatório destes aos valores oriundos de data-base posterior. De modo que, ou bem se confunde aqui noções de crédito e sua respectiva liquidez, ou bem se cria a figura da “sociedade em conta de participação pós conjugal”, fruto da participação pelo meeiro, sem qualquer risco empresarial, nos resultados positivos futuros da sociedade da qual participe seu ex-cônjuge, até que receba o equivalente econômico à meação das quotas, pouco importando que o valor destas já tenha sido travado à data da separação de fato (art. 1.027, p. u. c/c art. 1.031, §4º, do Anteprojeto).
Isso, sem perder de mira outras disposições aptas a sobrevalorar os haveres meados. A primeira, posta no §2º sugerido ao art. 1.031, que, ao incluir os intangíveis no balanço de determinação, agrega “inclusive os gerados internamente”. Ao invés de resolver, este dispositivo tende a potencializar a celeuma acerca da inclusão ou não do “goodwill” na apuração de haveres, mormente considerando que a expressão “gerados internamente” não é congruente com a noção de “reconhecimento contábil”. No que concerne especificamente ao “goodwill”, a par do regramento do Pronunciamento Contábil n° 15 aplicar-se tão somente a hipóteses de combinação de negócios (M&A) – e não à dissolução de sociedades -, o Pronunciamento Contábil n° 04(R1) estabelece claramente em seu item 48 que “o ágio derivado da expectativa de rentabilidade futura (goodwill) gerado internamente não deve ser reconhecido como ativo.” Com efeito, a redação do Anteprojeto deixa flanco aberto para pedidos que, mesmo descasando conceitos jurídicos e contábeis, podem dar margem a conveniente sobreprecificação de haveres – e aqui não apenas no âmbito da separação, mas em qualquer hipótese de dissolução societária.
Mas não é só. Segundo os novos incisos VIII e IX sugeridos ao art. 1.660, para fins de partilha na dissolução conjugal, deverão entrar na comunhão “a valorização das quotas ou das participações societárias ocorrida na constância do casamento ou da união estável, ainda que a aquisição das quotas ou das ações tenha ocorrido anteriormente ao início da convivência do casal, até a data da separação de fato”, bem como “a valorização das quotas sociais ou ações societárias decorrentes dos lucros reinvestidos na sociedade na vigência do casamento ou união estável do sócio, ainda que a sua constituição seja anterior à convivência do casal, até a data da separação de fato.”
Além de contrária à orientação do STJ, nos casos em que a meação envolver quotas adquiridas antes do casamento, a perícia e o balanço de determinação deverão então ser dúplices, exigindo (i) um para apurar o valor da sociedade na data do casamento ou união e, (ii) outro para apurar o sobrevalor entre aquele marco e a separação de fato.
A par da notória falta de cuidado e coesão intersistêmicos dos diversos Livros do Anteprojeto, num irônico alinhamento ao tom liberal da Justificação, sob o viés econômico pelo menos a separação poderá se revelar “um baita negócio”.
- Da estranha regra de sucessão de administradores do 4º do art. 1.028
Embora costumeiramente subvertido, a redação do atual art. 1.028 é de inequívoca clareza quanto ao destino da participação societária no caso de falecimento de sócios. Mas para além de transformar um texto objetivo em prolixos parágrafos, o Anteprojeto dá lugar a uma espécie de “emprego hereditário”, viabilizando quiçá a instauração de “dinastias administrativas”, ao dispor no parágrafo §4º proposto serem passiveis de “sucessão contratual” não apenas o patrimônio do sócio falecido (quotas ou haveres respectivos), mas também, pasme, a posição de “administradores”, que “far-se-á automaticamente após a abertura da sucessão, independentemente de autorização judicial.”
- A caminho da “Parte 2”
Seguindo um critério de cronologia topográfica no texto, no próximo Boletim serão apresentadas outras deficiências no que se refere aos gargalos de regramento das quotas preferenciais, do conselho fiscal e do regime de deliberações sociais e suas respectivas invalidades.
** Doutor em Direito Comercial pela USP, Professor do LL.M Direito Societário do INSPER, Presidente do IBRADEMP.
[1] GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis, Algumas objeções, em matéria societária, sobre o Anteprojeto de Reforma do Código Civil de 2002. In: MARTINS-COSTA, Judith; MARTINS, Fábio; CRAVEIRO, Mariana; XAVIER, Rafael (Orgs.). Boletim IDiP-IEC. Vol. XXII, Canela-São Paulo, Publicado em 19.06.2024. Disponível em: https://canalarbitragem.com.br/xxiii-boletim-idip-iec/algumas-objecoes/; GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis, Algumas objeções, em matéria societária, sobre o Anteprojeto de Reforma do Código Civil de 2002 (parte II). In: MARTINS-COSTA, Judith; MARTINS, Fábio; CRAVEIRO, Mariana; XAVIER, Rafael (Orgs.). Boletim IDiP-IEC. Vol. XXIV, Canela-São Paulo, Publicado em 26.06.2024. Disponível em: https://canalarbitragem.com.br/xxiv-boletim-idip-iec/algumasobjecoes-parte-ii/.
[2] LEAL, Victor Nunes. Classificação das normas jurídicas. In: LEAL, Victor Nunes. Problemas de direito público e outros problemas. Brasília: Ministério da Justiça, 1997. p. 33-56, v. 1.
[3] STJ – REsp n° 2142834/SP, 3ª Turma, rel. Min. Ricardo Vilas Boas Cueva, j. em 11/06/2024, obtido em www.stj.jus.br, acesso em 02/08/2024.