Otavio Yazbek**

Rafaela Lacaz***

A indústria de fundos de investimento surgiu no Brasil sem uma base legal muito sólida. Até 2019, a disciplina vinha prevista em um arcabouço legal escasso e muito vago, posteriormente complementado pela regulamentação estatal[1]. Com a edição da Lei da Liberdade Econômica (Lei n° 13.874/2019), os fundos de investimento receberam uma disciplina legal própria, por meio da inclusão dos artigos 1.368-C a 1.368-F no Capítulo X do Livro III do Código Civil[2].

Embora esse novo arcabouço ainda esteja sendo assimilado pela doutrina, pela jurisprudência e pelo mercado, já estão sendo discutidas reformas nos dispositivos recém-introduzidos no Código Civil. As alterações foram propostas pela Comissão de Juristas instalada em agosto de 2023 por ato do Presidente do Senado, com o objetivo de revisar e atualizar o Código Civil em diversos pontos[3].

O presente artigo pretende discutir especificamente as modificações propostas no regime de responsabilidade civil dos prestadores de serviços dos fundos de investimento conforme previsto no art. 1.368-E do Código Civil, chamando atenção para questões de ordem prática e conceitual.

Análise das alterações propostas no art. 1.368-E, caput, do Código Civil

O texto proposto pela Comissão sugere acrescentar no art. 1.368-E, caput, do Código Civil a previsão de que os prestadores de serviços contratados pelo fundo respondem pelos prejuízos que causarem quando procederem não só com dolo e má-fé (tal como previsto na redação atual do referido dispositivo), mas também mediante fraude ou prática de ato ilícito[4].

Os acréscimos propostos na redação do referido dispositivo, a despeito de aparentemente buscarem corrigir manifesta distorção que existe no regime vigente, parecem desconsiderar importantes aspectos conceituais. Além disso, a reforma proposta perdeu a oportunidade de pacificar o entendimento que nossos tribunais vêm seguindo, acerca da natureza contratual das relações que se estabelecem entre os cotistas e os prestadores de serviços, que tem relevante efeitos práticos.

Ao aportar recursos em fundos de investimentos, os investidores renunciam à tomada de decisões sobre aqueles ativos e confiam seu patrimônio a profissionais especializados, notadamente ao gestor e ao administrador fiduciário[5], que são responsáveis por proporcionar rendimentos ao capital aplicado e adotar todos os atos necessários à manutenção do veículo em funcionamento.

Há uma relação indiscutível de confiança entre os prestadores de serviços do fundo e os cotistas, que justifica todo um regime jurídico previsto pela regulamentação, calcado na previsão de deveres fiduciários, como o dever de lealdade e o dever de diligência. Tais deveres impõem aos prestadores de serviços a obrigação de atuar seguindo os mais elevados padrões éticos e técnicos e sempre em benefício dos cotistas.

O art. 1.368-E (atualmente em vigor) do Código Civil afasta, porém, indevidamente, a responsabilidade dos prestadores de serviços do fundo pela atuação de forma contrária àquele padrão diferenciado de profissionalismo e diligência que deveria pautar a sua atuação[6], ao prever que os prestadores contratados pelo fundo apenas respondem por prejuízos que causarem quando atuarem com dolo ou má-fé. Essa restrição é, claramente, um reflexo do espírito que alimentou a Lei n° 13.874/2019, corporificado em uma solução excessivamente restritiva e não necessariamente coerente com aquilo que sempre norteou a atuação daqueles prestadores de serviços.

A proposta da Comissão de Juristas de ampliar as hipóteses de responsabilização dos prestadores de serviços para incluir, ao lado do dolo e da má-fé, a possibilidade de responsabilização dos prestadores de serviços também pela prática de ato ilícito, aparentemente visa a corrigir a referida distorção, na medida em que o art. 186 do Código Civil[7], que trata do ato ilícito, faz referência expressamente aos atos ilícitos que se materializam por “negligência e imprudência”.

Ainda que seja correto ampliar a responsabilização para abarcar quaisquer atos ilícitos, a deficiência técnica se faz sentir: dolo, fraude e má-fé, são espécies de atos ilícitos. Melhor seria se a redação se ativesse a mencionar apenas os atos ilícitos, pois assim estariam englobados todos esses fatores de imputação, isto é, o dolo, vizinho à fraude, e a culpa, concretizada pela negligência e pela imprudência.

O art. 1.368-E, caput, do Código Civil, ao fazer referência, ainda que indireta, à cláusula geral de ilicitude prevista no art. 186 do Código Civil, não toma partido quanto à natureza da responsabilidade civil dos prestadores de serviço perante os cotistas do fundo, se contratual ou extracontratual (já que o art. 186 contém uma cláusula geral de aferição de ilicitude, que é aplicável para ambas as espécies de responsabilidade[8]).

A reforma perdeu, nesse sentido, a oportunidade de esclarecer a natureza contratual da responsabilidade dos prestadores de serviço perante os cotistas, que tem relevantes efeitos práticos, conforme se verá abaixo, e poderia se dar pela simples remissão adicional ao art. 389 do Código Civil, que trata da responsabilidade contratual.

Os fundos de investimento não têm personalidade jurídica – eles são considerados um patrimônio em separado desprovido de personalidade jurídica[9]. A relação dos prestadores de serviços do fundo com os cotistas, que são titulares daquele patrimônio especial, tem natureza negocial[10]: trata-se de relação contratual que se estabelece no momento em que os cotistas subscrevem as cotas do fundo e aderem ao regulamento elaborado pelo administrador, em conjunto com o gestor[11].

Como recentemente decidido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo[12], a existência de relação negocial prévia entre as partes é suficiente para atrair o regime jurídico aplicável à responsabilidade contratual[13], que tem como fundamento assegurar a confiança legítima entre as partes contratantes[14].

E essa qualificação se impõe ainda que se esteja diante de um descumprimento de imposição legal ou regulatória, que não encontre correspondência exata no regulamento do fundo ou nos contratos firmados para a prestação dos serviços de gestão e de administração fiduciária. Isso porque aqueles deveres e responsabilidades impostos pela regulamentação aos prestadores de serviços dos fundos “constituem obrigações a serem seguidas pelas partes na execução do negócio jurídico”[15]; eles integram e qualificam aquela relação jurídica estabelecida quando da adesão dos cotistas ao regulamento do fundo.

As consequências dessa qualificação são relevantes. Tratando-se de responsabilidade contratual, basta ao cotista comprovar a existência de inadimplemento e dano para justificar a responsabilização do prestador de serviços[16], sendo a culpa do prestador de serviços presumida. Na responsabilidade extracontratual, de outro lado, o cotista, na qualidade de vítima do dano, deve comprovar a culpa do prestador de serviço, além da violação a direito absoluto, o nexo causal e o dano (art. 186 do Código Civil).

Caso, porém, se esteja diante do descumprimento de uma obrigação de meio, como o dever de diligência, o cotista deverá comprovar de que forma a atuação do prestador de serviço transgrediu aquele padrão de conduta previsto na norma, de modo que a análise do inadimplemento “acaba por equivaler à aferição da culpa normativa”[17].

Outro importante efeito da caracterização da responsabilidade dos prestadores dos fundos de investimento como responsabilidade contratual está relacionada ao prazo de prescrição da pretensão indenizatória dos cotistas em face dos prestadores de serviços, que é de 10 (dez) anos, tal como previsto no art. 205 do Código Civil e reconhecido em julgados recentes[18]. Tal prazo contrasta com o prazo de prescrição da pretensão à reparação de danos fundada na responsabilidade civil extracontratual, de três anos, nos termos do art. 206, §3°, inciso V, do Código Civil.

Como pontua Flávio Yarshell, citando doutrinador estrangeiro, as diferenças entre responsabilidade contratual e extracontratual “precisam ser respeitadas e ‘devemos, portanto, evitar sobreposições de dois regimes: é disso que trata o chamado princípio da não cumulatividade das duas ordens de responsabilidade, o que significa simplesmente que entre cocontratantes só é aplicável regime de responsabilidade contratual, com exclusão da responsabilidade extracontratual’”[19].

Conclusão

Os aspectos destacados acima convidam para uma reflexão mais profunda sobre a reforma proposta no Capítulo X do Código Civil. Buscando corrigir a excessiva limitação de responsabilidade trazida pela Lei de Liberdade Econômica, criou-se um regime que desconsidera importantes aspectos conceituais, assim como a oportunidade de se pacificar o entendimento sobre a natureza contratual das relações que se estabelecem entre os cotistas e os prestadores de serviços, que tem enorme relevância prática.

Ante esses pontos e outros que certamente serão suscitados, fica claro que a reforma proposta demanda, ainda, reflexão.

** Doutor em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Ex-Diretor da Comissão de Valores Mobiliários. Advogado em São Paulo.

*** Mestre em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogada em São Paulo.

[1] A regulamentação estatal foi editada, até 2001, pelo Banco Central do Brasil e, a partir de então, pela Comissão de Valores Mobiliários, quando se atribuiu a esta última autarquia a competência para disciplinar e fiscalizar a emissão e distribuição de cotas de fundos de investimento, reconhecidas como valores mobiliários. Art. 2°, inciso V, da Lei n° 6.385/1976, introduzido pela Lei n° 10.303/2001.

[2] A Lei de Liberdade Econômica promoveu avanços importantes no regime jurídico aplicável aos fundos de investimento, em especial ao (i) prever a possibilidade de limitação da responsabilidade dos cotistas ao valor de suas cotas; (ii) disciplinar a possibilidade de criação de cotas com direitos e obrigações distintos, com patrimônio segregado para cada classe; e (iii) estabelecer limites para a responsabilidade dos prestadores de serviços dos fundos. Todas essas inovações foram contempladas na regulamentação com a edição da Resolução CVM nº 175/2022 pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM, que concentra regras aplicáveis a todas as categorias de fundos de investimentos.

[3] Para um quadro comparativo entre o Código Vigente e o Anteprojeto proposto pela Comissão de Juristas, cf.:<https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/913b2070-686a-40ae-a551-960e3707c323>.

[4] A redação proposta pela Comissão de Juristas é a seguinte: “Art. 1.368-E. Os fundos de investimento respondem diretamente pelas obrigações legais e contratuais por eles assumidas, e os prestadores de serviços não respondem por essas obrigações, mas respondem pelos prejuízos que causarem quando procederem com fraude, dolo ou má-fé; ou quando praticarem algum ato ilícito.” (destacou-se)

[5] O administrador fiduciário e o gestor de recursos são reconhecidos na Resolução CVM nº 175/2022 como os “prestadores de serviços essenciais” dos fundos de investimento (art. 7°).

[6] Como um dos autores deste artigo já se manifestou em outra ocasião, cf. YAZBEK, Otavio. A Lei n. 13.874 e os Fundos de Investimento. In: SALOMÃO, Luis Felipe; CUEVA, Ricardo Villas Bôas; FRAZÃO, Ana (Orgs.). Lei de Liberdade Econômica e seus Impactos no Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, pp. 551–570, p. 566.

[7] “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

[8] MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo código civil: do inadimplemento das obrigações. Vol. V, tomo II (Arts. 389 a 420). Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 124.

[9] OLIVA, Milena Donato; RENTERIA, Pablo. Notas Sobre o Regime Jurídico dos Fundos de Investimento. In: HANSZMANN, Felipe; HERMETO, Lucas (Orgs.). Atualidades em Direito Societário e Mercado de Capitais: Fundos de Investimento. vol. V-Edição Especial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021, p. 19.

[10] OLIVA, Milena Donato; RENTERIA, Pablo. Notas Sobre o Regime Jurídico dos Fundos de Investimento. In: HANSZMANN, Felipe; HERMETO, Lucas (Orgs.). Atualidades em Direito Societário e Mercado de Capitais: Fundos de Investimento. vol. V-Edição Especial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021, p. 21; e MARTINS-COSTA, Judith; MARTINS-COSTA, Fernanda Mynarski. Responsabilidade dos Agentes de Fundos de Investimentos em Direitos Creditórios (“FIDC”): riscos normais e riscos não suportados pelos investidores. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, v. LXII, mar. 2022, p. 339. Na jurisprudência, cf. TJSP, Apelação Cível nº 1000248-13.2021.8.26.0260, Rel. Gomes Varjão, 34ª Câmara de Direito Privado, j. 5/02/2024.

[11] Art. 7° da Resolução CVM n° 175/2022.

[12] TJSP, Apelação Cível nº 1000248-13.2021.8.26.0260, Rel. Gomes Varjão, 34ª Câmara de Direito Privado, j. 5/02/2024.

[13] Cf., a esse respeito, TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Fundamentos do Direito Civil. v. 4. Responsabilidade Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 13: “A distinção entre responsabilidade contratual e extracontratual deixa, assim, de tomar por base a fonte do dever violado – autonomia privada ou lei, respectivamente –, e passa a se assentar na preexistência de relação contratual válida entre as partes, bem como no fato de o dano resultar do descumprimento de dever oriundo daquele vínculo, independentemente de este dever decorrer de fonte autônoma ou heterônoma. O traço característico da responsabilidade civil contratual reside, por conseguinte, na aproximação peculiar, prévia à ocorrência do dano, entre a vítima e o agente causador da lesão, consubstanciada na relação contratual em cujo bojo se dá a infração geradora do dever de indenizar. […] . Quando os deveres são impostos no âmbito da relação estabelecida por um contrato ou outra espécie de negócio jurídico, os danos resultantes dessa violação devem ser tutelados por meio da responsabilidade contratual.”

[14] Voto proferido pela Min. Nancy Andrighi no EREsp n° 1.280.825/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, Segunda Seção, j. em 27/06/2018.

[15] Declaração de voto convergente proferida pelo Des. Rômulo Russo no seguinte processo: TJSP, Apelação Cível nº 1000248-13.2021.8.26.0260, Rel. Gomes Varjão, 34ª Câmara de Direito Privado, j. 5/02/2024.

[16] Para uma esquematização das diferenças entre o regime jurídico de direito material na responsabilidade civil contratual e extracontratual, cf. MARTINS COSTA, Judith; ZANETTI, Cristiano de Sousa. Responsabilidade Contratual: Prazo prescricional de dez anos. Revista dos Tribunais Online, v. 979/2017, pp. 215–241, maio 2017, pp. 7–8.

[17] TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Fundamentos do Direito Civil. v. 4. Responsabilidade Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 13.

[18] A referida posição foi sedimentada no julgamento do EREsp n° 1.280.825/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, Segunda Seção, j. em 27/06/2018. Sobre a controvérsia que existia anteriormente sobre o tema, cf. MARTINS-COSTA, Judith; ZANETTI, Cristiano de Sousa. Responsabilidade Contratual: Prazo prescricional de dez anos. Revista dos Tribunais Online, v. 979/2017, pp. 215–241, maio 2017. Para a aplicação dessa posição aos fundos de investimento, cf. o REsp n° 2139747 – SP (2024/0031266-1), Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, j. em 27/08/2024, em que se reconheceu que a pretensão indenizatória de cotistas em face dos prestadores de serviços do fundo sujeita-se ao prazo de prescrição decenal previsto no art. 205 do Código Civil, aplicável às pretensões reparatórias resultantes do inadimplemento de obrigações contratuais.

[19] Parecer apresentado nos autos do seguinte processo: TJSP, Apelação Cível nº 1000248-13.2021.8.26.0260, Rel. Gomes Varjão, 34ª Câmara de Direito Privado, j. 5/02/2024 (fls. 4161-4181).