Sthefano Bruno Santos Divino[1]
Thaís Fernanda Tenório Sêco[2]
1. Introdução
O advento digital é mesmo um grande acontecimento de nossa época. Não é por menos que tem sido invocado como justificação da Reforma do Código Civil, mobilizada por iniciativa do Senado Federal[3]. Inclusive, fala-se que um novo Livro de Direito Digital é algo que se encontra no futuro inexorável das codificações.
Esses discursos são marcados, na verdade, por um futurismo exacerbado que ignora e hipotetiza o passado, ao mesmo tempo em que adere irrefletidamente a certo sensacionalismo digital em voga. A retórica de justificação da Reforma parece capturada pela propaganda futurista; ou é ela que captura esse discurso para justificar-se. Como procuramos apenas ilustrar neste breve texto, isso se manifesta de forma significativa na própria concepção da interface entre Direito Digital e Direito Civil, conforme apresentada nas propostas do Anteprojeto.
Podemos classificá-las em três grupos fundamentais: (i) as que carecem de algum conteúdo normativo (seja pela reticência, seja pela prolixia); (ii) as que contém conteúdo normativo, mas não são pertinentes ao Direito Civil; (iii) as que, sendo pertinentes ao Direito Civil, estariam mais bem alocadas nos Livros tradicionais do Código, ou em lei especial.
Antecipe-se que no segundo grupo encontram-se todas as previsões contidas no Capítulo X do respectivo Livro de Direito Civil Digital, que se volta a tratar dos “Atos notariais eletrônicos – e-notariado” e que, portanto, são matéria de Direito Notarial, e não de Direito Civil, não sendo preciso traçar maiores comentários. A partir disso, o que se segue é uma breve análise que enfoca a questão da adequação técnica e sistemática das demais propostas, traçando apenas algumas considerações a respeito de seu conteúdo propriamente dito.
2. Prolixias
As propostas que se alastram ao longo do Código Civil, para consignar que tal ou qual dispositivo aplica-se não só ao ambiente físico, ou aos meios ditos “analógicos”, mas também ao “ambiente digital” ou ao meio “virtual”[4] se enquadram no primeiro grupo: carecem de conteúdo normativo pela prolixia[5]. Isso, na melhor das hipóteses, pois “a lei não possui palavras inúteis” e, do ponto de vista sistemático, essas inserções reforçam um imaginário de idiossincrasia do Direito Digital e arriscam-se a criar as bases para argumentações a contrario sensu, retroalimentadas pelo clichê da internet como “terra sem lei”.
Para ilustrar o problema, pode-se mencionar a proposta de alteração do artigo 1.634, com vistas a estabelecer que os pais, no exercício do poder familiar, devem: “fiscalizar as atividades dos filhos no ambiente digital”. Ora, somente no digital, no físico não? E, aliás: somente as atividades, não os atos isolados? Afinal, o artigo 185-A do Anteprojeto define a “atividade” como “a série de atos coordenados com um fim em comum”. Significa dizer que os pais deverão fiscalizar apenas as “séries de atos coordenados”, mas não os atos isolados?
Do mesmo modo, o artigo 319 seria alterado para prever que “O devedor que paga tem direito à quitação regular, ainda que por meio digital…”. O artigo 320 vai tratar da “assinatura física ou digital” no recibo de quitação. Já o artigo 321 permanece inalterado: “Nos débitos cuja quitação consista na devolução do título, perdido este, poderá o devedor exigir, retendo o pagamento, declaração do credor que inutilize o título desaparecido”. O disposto valerá então somente para títulos físicos? Não se aplicará aos digitais? Ora, diante deste texto, não é difícil imaginar uma alegação exegética de que: “quando ‘o legislador’ quis que a aplicação da norma se estendesse também aos meios digitais, ele o consignou expressamente”. E que, portanto, “quando não o fez, é porque deliberadamente a norma não se estende aos meios digitais”. Se é verdade que a tese seria absurda, fato é que a proposta então colaboraria com o absurdo e não com o razoável.
Porém, a disfunção normativa desses acréscimos, não deixa de incorporar uma função poética[6], que serve para performar a ilusão de um impressionismo digital. Será marcar várias vezes o texto do Código Civil com as palavras “digital” e “virtual” como forma de prestar contas ao sensacionalismo futurista que aparece como mote da Reforma. Essas propostas têm conotação meramente estética; performam a anunciada atualização ao mesmo tempo em que (na melhor das hipóteses) são desprovidas de qualquer contribuição normativa.
Ainda no rol das prolixias, há uma série de previsões ao longo de dispositivos não numerados do Livro de Direito Digital (daí porque não serão citados, pois seria preciso repetir o seu texto e eles são muitos), que estão a afirmar direitos ou princípios tais como privacidade, dignidade humana, liberdade de expressão, honra, imagem, igualdade, acessibilidade, inclusão, liberdade contratual, proteção integral da criança e do adolescente etc. Seria possível traçar a demonstração, item por item, de que todas essas previsões repetem outras que já se encontram contempladas em nosso ordenamento. O próprio Código Civil, a Constituição, a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018), o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), a Lei de Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996) e a Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/1998) contemplam a maior parte delas. Tais direitos e princípios são puramente enunciados, sem estabelecimento de regras, requisitos, procedimentos próprios que servissem para refinar a questão crucial, que diz respeito à sua efetividade em nosso sistema.
3. Reticências
No subgrupo das propostas reticentes, devemos incluir os novos princípios enunciados no Livro do Direito Digital, tais como a “auditabilidade”, “explicabilidade”, “rastreabilidade”, “usabilidade” etc. A performance poética entra aqui novamente em ação, pela multiplicação de neologismos impressionistas que ajudam a dar ares de ineditismo à proposta.
Essas são categorias pertinentes às Ciências da Computação e retratam elementos buscados no design de aplicações digitais[7]. Aqui, elas são recolhidas daquele campo do saber e simplesmente depositadas no Anteprojeto como princípios jurídicos para reforçar, outra vez, a performance atualizante. Mas, a mera inscrição da palavra como princípio em nada colabora para as questões concretas que desafiam, cotidianamente, a efetividade dos direitos no ambiente de redes. Sendo o princípio jurídico um “mandado de otimização”, ele deve realizar-se da maneira mais plena possível mediante a ponderação com outros princípios; é o que ensina Robert Alexy[8]. Significa que, para alguns casos, a técnica do princípio contém uma normatividade fraca e mesmo leniente[9].
Tomemos ilustrativamente a “rastreabilidade”. Podemos supor que ela diz respeito a algo como a viabilização de meios técnicos para a identificação e/ou localização de um usuário ou equipamento específico. Se tratada como princípio, será sempre possível alegar apenas que não há meios técnicos suficientes para a identificação. Ou que, sendo a “rastreabilidade” um princípio, deverá ser ponderada, por exemplo, com a privacidade dos usuários intermediários que são a trilha necessária ao rastreio. Ou seja, se a rastreabilidade é mesmo um objetivo que deve ser priorizado em uma política de regulação, não basta simplesmente plasmar a palavra na lei como princípio. É necessário conferir-lhe densidade normativa. Dizer dos deveres de conservar registros em arquivo por certo tempo, as condições em que tais registros possam ser acessados, as sanções decorrentes do descumprimento das solicitações etc. Fazer, enfim, o trabalho que é próprio da dogmática jurídica. Se assim não for, estaremos outra vez diante de uma “lei sem conteúdo normativo”[10].
4. Matéria pertinente aos Livros próprios do Código Civil
Finalmente, para tratar das propostas pertinentes ao terceiro grupo, vale a lembrança de uma antiga lição de José Carlos Moreira Alves, em sua defesa da Parte Geral:
“Se, na parte geral [que se ocupa, das noções gerais sobre as pessoas, as coisas e os fatos jurídicos] há princípios que se aplicam mais frequentemente a uma das quatro seções em que se divide a parte especial [que abrange o direito das coisas, o direito das obrigações, o direito de família e o direito das sucessões], é certo que, em todos eles, se verifica a existência de caráter de generalidade, tanto assim que nenhum deles poderia ser colocado em uma daqueles quatro seções por pertencer exclusivamente a ela.”[11]
Essa passagem contém uma linha mestra para avaliarmos a adequação topográfica das propostas que tratam, enfim, de temas afeitos a um Código Civil e pensarmos em que medida elas demandariam, de fato, a elaboração de um Livro à parte.
O celebrado direito à desindexação, por exemplo, forma sub-reptícia de reabilitação do direito ao esquecimento, é matéria de direito da personalidade. Se tratado no próprio Código Civil deveria sê-lo no capítulo próprio da Parte Geral. Os “contratos digitais”, matéria do Capítulo VIII do respectivo Livro deveriam ser tratados no Título dos Contratos do Código Civil. O dispositivo que estabelece em que condições se considera “celebrado” o contrato, por exemplo, não trata de outro tema que não o da formação dos contratos atinente à Seção própria que se inicia no artigo 427. A herança digital – será preciso dizê-lo? – é matéria de Sucessões. Já, o “patrimônio digital” trata de bens e é atinente à Parte Geral.
Olhando mais atentamente a estrutura do respectivo Livro de Direito Digital o que se observa, afinal, é a elaboração de uma “Parte Geral paralela”, pois os temas tratados não são outros que não: pessoas, bens e fatos. Todos eles, a partir da tentativa de tradução diletante do seu sentido no ambiente digital, mas, ainda assim: pessoas, bens e fatos.
5. Faces do diletantismo
É certo, entretanto, que a função poética da linguagem entra novamente em ação para dar conotação de ineditismo às categorias jurídicas tratadas. Um exemplo particularmente ruidoso diz respeito à excêntrica “situação jurídica digital”, conforme a seguinte definição: “Considera-se situação jurídica digital toda interação no ambiente digital de que resulte responsabilidade por vantagens ou desvantagens, direitos e deveres (…)”.
Está claro que não se trata aí de nada mais que o “fato jurídico”, assim entendido “o fato apto a criar, extinguir ou modificar relações jurídicas”. E é curioso que, tratando-se de categoria já tão consolidada do Direito Civil, tenha-se feito a opção pela terminologia excêntrica da “situação jurídica digital”, ao invés de se falar, simplesmente, talvez, em “fato jurídico digital”.
Pior ainda quando se tem em conta que a expressão “situação jurídica”, na verdade, também é pertinente à linguagem técnica do Direito Civil, e serve para designar o oposto do fato jurídico, a saber, o efeito. Se o fato cria, extingue e modifica relações jurídicas, a situação jurídica designa a posição que um sujeito pode vir a titularizar em uma relação jurídica hipotética. Para ficar claro: a situação jurídica subjetiva é gênero que abarca espécies tais como: o direito subjetivo, o dever jurídico, o direito potestativo, a sujeição, a faculdade, o ônus etc. É categoria intermediária entre a relação jurídica e o sujeito que a titulariza. Portanto, não é algo que possa ser confundido com o fato jurídico.
Já na proposta do Anteprojeto a categoria parece ter sido empregada a partir de uma compreensão intuitiva que toma a palavra “situação” no sentido coloquial que a aproxima de “circunstância”.
Neste e noutros casos, o diletantismo, embora tenha ainda a conotação de um impressionismo digital, revela igualmente algo mais simples a respeito do tratamento do Direito Digital no Anteprojeto. A figura do “intérprete dos fatos” que aparece como o destinatário da norma, em certo dispositivo, ou a delimitação do conteúdo normativo do respectivo Livro em termos de “apontar critérios para definir a licitude e a regularidade dos atos e das atividades que se desenvolvem no ambiente digital” revelam uma precariedade do conhecimento sobre o próprio Direito Civil, e do domínio de sua linguagem técnica.
6. Considerações finais
As propostas relativas ao Direito Digital contidas no Anteprojeto de Reforma do Código Civil parecem perder-se em profecias, distrair-se em anunciações, performando um diletantismo linguístico ilusionista, que serve apenas para criar fraturas na sistemática do Código Civil, a reforçar o imaginário de idiossincrasia do Direito Digital.
À luz das propostas, não parece que é o advento digital que atravessa o Direito e o Direito Civil, provocando-nos a redimensionar o tempo do direito perante este porvir. Pelo contrário, o Direito Digital também está sendo capturado pelos ímpetos reformistas como pretexto para a iniciativa que, afinal, se mostraria prejudicial para ambas as matérias. Como as justificativas não convencem, as verdadeiras motivações seguem desconhecidas.
* DIVINO, Sthefano Bruno Santos; SÊCO, Thaís Fernanda Tenório. Inadequação sistemática das propostas de Direito Digital na Reforma do Código Civil. In: MARTINS-COSTA, Judith; MARTINS, Fábio; CRAVEIRO, Mariana; XAVIER, Rafael (Orgs.). Boletim IDiP-IEC. Vol. XXVII. Canela-São Paulo, Publicado em 24.07.2024.
[1] Professor Adjunto de Direito Civil do Departamento de Direito da Universidade Federal de Lavras (UFLA). Doutor e Mestre em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Coordenador do Núcleo de Estudos em Direito Privado, Inovação e Tecnologia (NEDIT/UFLA). Realiza pesquisas na área de Direito Privado e Direito e Tecnologia, com ênfase em teoria geral do direito privado, subjetividade jurídica, privacidade, tratamento de dados e Inteligência Artificial.
[2] Professora Adjunta de Direito Civil no Departamento de Direito da Universidade Federal de Lavras. Doutora em Direito pela UFMG. Mestre em Direito Civil pela UERJ. Pesquisadora do Laboratório de Bioética e Direito Civil (LABB). Diretora Executiva da Associação As Civilistas. Realiza pesquisas na área de Direito Civil e História do Direito com ênfase na Histórias das Categorias Jurídicas.
[3] Como já constatado por Giordano Bruno Soares Roberto em sua breve e urgente obra Em defesa do velho Código Civil (ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Em defesa do velho Código Civil. São Paulo: Editora Dialética, 2024, pp. 15-32).
[4] Artigos 18, caput e Parágrafo único; 141; 212, §1°; 219; 319; 320; 429, §2º; 736, §2º; 744; 752; 759, caput e §§1° e 2°; 785, caput e §1°, e outros. A proposta de alteração do artigo 141, por exemplo, prevê a anulabilidade do negócio jurídico, decorrente da “transmissão errônea da vontade (sic) por meios interpostos, físicos ou virtuais”. O do artigo 785 aduz a possibilidade de transferência do contrato a terceiro, “por meio físico ou digital”; e daí por diante.
[5] No mesmo sentido é o parecer de Soares Roberto (ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Em defesa do velho Código Civil. Op. cit., p. 17 e ss.
[6] A consideração da função poética da linguagem na análise de textos jurídicos decorre de uma provocação metodológica contida na obra do historiador Hayden White. Ele propunha que, no estudo da historiografia, fossem utilizados os instrumentais metodológicos da análise literária (WHITE, Hayden. ‘O texto histórico como artefato literário’. In: Trópicos do discurso: ensaios sobre crítica da cultura. Tradução de Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: EDUSP, 2014, pp. 97-116). O mesmo pode ser feito em relação aos textos jurídicos, o que deve retornar resultados fascinantes.
[7] BLOCKI, Jeremiah et al. Audit mechanisms for provable risk management and accountable data governance. In: International Conference on Decision and Game Theory for Security. Berlin, Heidelberg: Springer Berlin Heidelberg, 2012. p. 38-5; PREECE, Alun. Asking ‘Why’ in AI: Explainability of intelligent systems–perspectives and challenges. Intelligent Systems in Accounting, Finance and Management, v. 25, n. 2, p. 63-72, 2018; ONIK, Md Mehedi Hassan et al. Privacy-aware blockchain for personal data sharing and tracking. Open Computer Science, v. 9, n. 1, p. 80-91, 2019; ANGULO, Julio et al. Towards usable privacy policy display and management. Information Management & Computer Security, v. 20, n. 1, p. 4-17, 2012.
[8] ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. tradução Erenesto Garzón Valdés. 1ª ed. Madrid: Centro de estudios políticos y constitucionales, 2002, p. 155.
[9] Vale contrastar a proposta com a concepção original de Stefano Rodotà a respeito da técnica legislativa mais adequada para adaptar o tempo do direito ao tempo das inovações tecnológicas (RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância. Traduzido por Danilo Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008). Ele tratava da enunciação de princípios e da elaboração de cláusulas gerais como parte da técnica necessária, mas não só. Tratava também da criação de uma autoridade administrativa, dotada de maior versatilidade para adaptar os regulamentos a novas realidades, à luz desses princípios e cláusulas gerais. E falava, ainda, da importância de se elaborar normas de caráter procedimental, de modo a garantir aos usuários os recursos necessários para pleitear seus direitos.
[10] TOMASEVICIUS FILHO, E. Marco Civil da Internet: uma lei sem conteúdo normativo. Estudos Avançados, v. 30, n. 86, p. 269–285, jan. 2016.
[11] ALVES, José Carlos Moreira. A Parte Geral do Projeto de Código Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 15-16. Os complementos em colchetes têm como base outra passagem da mesma página, em que é feita essa especificação das matérias. O Direito Empresarial não está aí incluído, porque não estava na fala original de Moreira Alves.