Henrique Barbosa**
- Uma breve retomada
No Boletim anterior[1] foram apontados alguns vícios de origem identificados no Livro do Direito de Empresa sugerido no Anteprojeto de Reforma do Código Civil, especialmente no que se refere (i) às contradições ideológicas do texto e às patologias principiológicas que se pretende positivar no art. 966-A; (ii) à curiosa extinção da possibilidade de exclusão de sócios majoritários nas sociedades limitadas (art. 1.030); (iii) ao temerário desbalanceamento econômico e o consequente inflacionamento de haveres inerentes à meação de quotas e demais hipóteses dissolutórias (arts. 1.027 e 1.031); e (iv) à estranhíssima previsão de sucessão administrativa post mortem do art. 1.028.
Isso, recorde-se, em aditamento às várias impropriedades já apontadas pelo Prof. Alfredo de Assis Gonçalves Neto em suas objeções trazidas nas edições de números XXIII[2] e XXIV[3] deste periódico.
Complementando essa análise crítica preliminar, o presente texto traz à pauta algumas outras imperfeições da proposta, ao menos tal qual apresentada ao Congresso Nacional.
- Da atecnia de uma potencial boa ideia (e os gargalos de regulamentação das quotas preferenciais e do conselho fiscal)
Adentrando a figura das quotas preferenciais, na “Parte II” de suas objeções ao Anteprojeto o Prof. Alfredo apontou o que entende ser a impropriedade de sua regulação no seio das sociedades limitadas.
Ainda que se possa divergir dessa concepção e sustentar que a ideia seja sim viável – senão até necessária, para aprimorar e legitimar o regramento infralegal quiçá ineficaz da IN/DREI 81[4] –, o fato é que, numa tentativa atabalhoada de “companizar” a sociedade limitada, o Anteprojeto parece extremamente infeliz na redação dos §§ 3º e 4º sugeridos ao art. 1.055. Ao abdicar de um regramento claro e optar por um regime jurídico híbrido alicerçado num mal delimitado critério analógico, o texto semeia considerável insegurança, deixando em aberto uma série de perguntas.
Primeiro porque, em disposição que oscila entre o contraditório e o desnecessário, o §3º estabelece serem admitidas quotas preferenciais, “nas proporções e condições definidas no contrato social”, acrescendo, porém, a necessidade de que sejam “observados os limites da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976.”
Com isso, já de largada se pode questionar a quais “limites” da Lei das S.A o dispositivo se refere. Se àqueles quantitativos do §2o do art. 15 do anonimato – ou se apenas a estes –, ou se a todo o regramento inerente às ações preferenciais daquele microssistema.
Estando abrangido por estes “limites” todo o regime das ações preferenciais, haveria lugar, p.ex., à realização de reuniões especiais de quotistas preferenciais, quando de deliberações que incidam em situações aderentes ao §1º do art. 136 da Lei das S.A?
Mais que isso, aos quotistas preferenciais estaria garantida a indicação de membro de conselho fiscal porventura previsto no contrato social, em linha com a disciplina combinada do art. 123, “d” e art. 161, §§2º e 4º, “a” da Lei das S.A? Afinal, para além da mencionada nebulosidade do §3º, há aqui um outro conflito de regras, haja vista que, conquanto o §4o do art. 1.055 prescreva que “consideram-se apenas as quotas com direito a voto, para os efeitos de cálculo dos quóruns de deliberação e instalação das reuniões que dizem respeito à sociedade”, o §2º do art. 1.066 estabelece ser assegurada tal indicação tão somente “aos sócios minoritários, que representarem pelo menos um quinto do capital social”, não havendo menção, seja a quotistas preferenciais, seja a adaptabilidade de quórum deliberativo, seja a aplicabilidade supletiva ou analógica da Lei das S.A.
No que toca ao conselho fiscal, vale notar ainda que, inovando para além da própria Lei das S.A ao admitir no caput do art. 1.066 a figura do conselheiro pessoa jurídica, o Anteprojeto não se atentou sequer para ajustar as hipóteses de impedimento ao exercício da função nestes casos, mantendo no §1º tão somente as vedações inerentes a conselheiros pessoas físicas, em nova prova da atecnia envolta ao tema.
Para além disso, ainda que se considere aplicável às futuras quotas preferenciais toda a amplitude regulatória das ações preferenciais, ao não replicar na íntegra o modelo deliberativo das companhias – qual seja, o de um voto por ação votante e de deliberações aferidas por votos válidos proferidos em assembleia (art. 129 LSA) –, e mantendo para as limitadas a regra de deliberação baseada no percentual detido no capital social (arts. 1.072, 1.010, 1.076, 1.074, 1.066, 1.030 e 1.085), o Anteprojeto suscita outras relevantes indagações, como, p.ex., a possibilidade ou não de emissão de quotas com voto plural, tal qual as ações com voto plural previstas no art. 110-A da Lei das S.A.
- Do meio caminho na evolução das Deliberações Sociais (e a lamentável falta de zelo textual)
Se o Anteprojeto anda bem ao buscar desburocratizar o sistema deliberativo das limitadas, o pouco zelo com o texto uma vez mais não contribui para a segurança jurídica propagada. É lamentável que um diploma dessa envergadura seja submetido ao Congresso Nacional com ajustes do nível “Localizar e Substituir” no Word, sem uma releitura atenta de seus dispositivos, como, p.ex., do §7º do art. 1.072, onde se lê que “aplica-se às reuniões dos sócios, nos casos omissos no contrato social, o mesmo disposto que se aplica às reuniões.” Claramente o que se deu aqui foi que, feita a opção pela extinção da figura da assembleia de sócios, em dado momento se delegou a função de checar se ainda haveria no texto outras menções à “assembleia”, de modo que o “Ctrl+L” e o “Ctrl+H” passaram a compor o processo legislativo nacional.
Noutro giro, tema que apresenta talvez o maior leque de incertezas é o que se refere aos marcos decadenciais ou prescricionais de anulação das deliberações sociais nas limitadas, havendo decisões que ora apontam para o art. 48[5] do Código (3 anos), ora para a regra do art. 179[6] (2 anos), ora para o mesmo prazo bienal, porém mediante aplicação do art. 286[7] da Lei das S.A, ora para o art. 178[8] (4 anos) do Código, ora, pasmem, para o prazo decenal do art. 205[9]. A única hipótese que não guarda dúvidas é a de anulação da assembleia (ou reunião) anual para aprovação das demonstrações financeiras, cujo prazo de 2 anos é explicitado no art. 1.078.
Inobstante isso, o Anteprojeto cinge-se a incluir um §4º no art. 1.010, prescrevendo ser “anulável a deliberação aprovada por voto maculado por interesse contrário ao da sociedade, nos termos do parágrafo anterior, caso em que será de dois anos, a contar do registro da deliberação, ou de sua ciência, o que ocorrer primeiro, o prazo para ajuizamento de ação anulatória.”
Essa disposição obviamente não parece suficiente a unificar procedimentalmente todas as hipóteses de invalidades deliberativas, deixando de lado, p.ex., toda uma gama de decisões potencialmente “violadoras da lei ou do estatuto, ou eivadas de erro, dolo, fraude ou simulação”, tal qual prudentemente previsto no art. 286 da Lei das S/A.
Da mesma maneira, o critério de “interesse contrário ao da sociedade” não soa tampouco indene de questionamentos, como já deveria igualmente ter ensinado a inconstante história hermenêutica do art. 115 da Lei das S/A.
Já no que concerne ao rito convocatório das reuniões de sócios, embora o §3º do art. 1.152 pareça desburocratizar e desonerar o processo, ao estabelecer que os anúncios respectivos “devem ser remetidos para os dois sítios eletrônicos, fornecidos pelo sócio empresário”, “bem como colocados no sítio eletrônico da sociedade”, a não revogação expressa do §1º suscita desnecessariamente a dúvida acerca da necessidade ou não de se proceder a publicações concomitantes nos órgãos oficiais e jornais de grande circulação. Ou seja, tal qual proposto, a convocação eletrônica parece apenas agregar, e não efetivamente substituir, aquela realizada por veículos impressos, o que acabaria por manter em vigor o nonsense atual de se fazer as convocações das sociedades limitadas mais onerosas ao menos do que as das anônimas fechadas com receita bruta até R$ 78MM (art. 294 Lei das S.A).
Mas o mais grave parece estar na combinação nada congruente do §6º do referido art. 1.152 com a disciplina do “novo” art. 1072-A sugerido, cujo caput estabelece que “as convocações para as reuniões e demais atos societários serão dirigidas” “para, ao menos, dois endereços, físicos ou eletrônicos, fornecidos pelos sócios e constantes do contrato social”, as quais terão “presunção absoluta de validade e eficácia” (§1º). Ocorre, porém, que embora o §2º estabeleça que “o sócio poderá, a qualquer tempo, solicitar a alteração dos endereços”, este mesmo parágrafo e os §§ 3º e 4º que o sucedem estabelecem ser “imperativo que tal alteração seja registrada em ata”, e que, “até que a alteração prevista no §2º deste artigo seja registrada em ata, as comunicações enviadas para os endereços constantes do contrato social serão consideradas válidas e eficazes”, inclusive “para efetivação de citações ou interpelações judiciais, arbitrais ou extrajudiciais”.
De modo que, caso um sócio minoritário altere seu endereço e, mesmo comunicando tal fato à sociedade, os demais sócios ou administradores se recusem a fazê-lo constar de ata ou alteração contratual, as convocações ou, mais grave, citações e intimações porventura dirigidas àquele sócio, poderão ser realizadas “validamente” em seu endereço anterior, restando-lhe assim o descabido ônus de lançar mão de uma medida jurisdicional para que a sociedade cumpra sua obrigação de fazer de registrar o novo endereço já formalmente informado. É, mais uma vez, um convite ao abuso e à tirania.
- Considerações finais
Compilados enfim os apontamentos feitos nestas duas partes àqueles precedentes do Prof. Alfredo de Assis Gonçalves Neto, parece latente que não são poucos nem simplórios os gargalos que acometem o Anteprojeto apresentado no que se refere ao Livro do Direito de Empresa. Oxalá iniciativas como este Boletim e o movimento de tantas outras instituições permitam que o processo legislativo fomente no mínimo um melhor debate, seja para evitar o mal maior, seja para aprimorar o que assim de fato o merece.
** Doutor em Direito Comercial pela USP, Professor do LL.M Direito Societário do INSPER, Presidente do IBRADEMP.
[1] BARBOSA, Henrique. Novas objeções, em matéria societária, sobre o anteprojeto de reforma do código civil de 2002 – parte 1. In: MARTINS-COSTA, Judith; MARTINS, Fábio; CRAVEIRO, Mariana; XAVIER, Rafael (Orgs.). Boletim IDiP-IEC. Vol. XXIII, Canela – São Paulo, Publicado em 7.08.2024. Disponível em: https://canalarbitragem.com.br/iiboletim-idip-iec/xxviii-parte-1/.
[2] GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis, Algumas objeções, em matéria societária, sobre o Anteprojeto de Reforma do Código Civil de 2002. In: MARTINS-COSTA, Judith; MARTINS, Fábio; CRAVEIRO, Mariana; XAVIER, Rafael (Orgs.). Boletim IDiP-IEC. Vol. XXII, Canela-São Paulo, Publicado em 19.06.2024. Disponível em: https://canalarbitragem.com.br/xxiii-boletim-idip-iec/algumas-objecoes/;
GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis, Algumas objeções, em matéria societária, sobre o Anteprojeto de Reforma do Código Civil de 2002 (parte II). In: MARTINS-COSTA, Judith; MARTINS, Fábio; CRAVEIRO, Mariana; XAVIER, Rafael (Orgs.). Boletim IDiP-IEC. Vol. XXIV, Canela-São Paulo, Publicado em 26.06.2024. Disponível em: https://canalarbitragem.com.br/xxiv-boletim-idip-iec/algumasobjecoes-parte-ii/.
[4] Sobre o tema das quotas preferenciais nas sociedades limitadas e dos avanços de sinal da regulação do DREI a respeito, vide: BARBOSA, Henrique Cunha. Um Retrato da Sociedade Limitada aos 18 Anos do Código Civil. In BARBOSA, Henrique; SILVA, Jorge Cesa Ferreira da (Coord.). A Evolução do Direito Empresarial e Obrigacional: 18 Anos do Código Civil. Vol. 1 (Societário & Direito de Empresa). Quartier Latin: São Paulo, 2021.
[5] TJSP – Apelação Cível nº 0001200-77.2011.8.26.0286, 16/10/2012; STJ – REsp nº 1.459.190/SP, 15/12/2015.
[6] TJRJ – Apelação Cível nº 002666954.2015.8.19.0004, 10/04/2019.
[7] TJSP – Apelação Cível nº 0074733-77.2013.8.26.0002, 19/10/2016.
[8] STJ – REsp nº 1.543.070/PR, 06/02/2018.
[9] TJRS – Apelação Cível n° 70030466130, 26/08/2009.