Rachel Sztajn e Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa **
Quando, mais uma vez se discute projeto de um novo Código Civil brasileiro, é de notar que a Lei n. 10406, de 10 de janeiro de 2002, já foi objeto de inúmeras alterações muitas delas criticadas pela adoção de um direcionamento equivocado nos planos da realidade social, econômica e jurídica, como se tem visto. Todavia convém indagar se o legislador, ao emular o Codice Civile de 1942 que unificou o direito privado na Itália à época, mesmo contra a posição de comercialistas, único país do continente europeu a fazê-lo, ignorou o livro do professor Natalino Irti, “L’età della decodificazione”, publicado pela editora Giuffrè, em 1999.
Nessa obra, o jurista desenvolve o argumento de que as alterações na sociedade são tão rápidas que normas específicas, destinadas a reger determinadas áreas das interações sociais são mais adequadas do que um código de direito privado. Na verdade, convém ter presente que o Direito Comercial surgiu de práticas dos comerciantes, na Idade Média, juntamente com as corporações de artes e ofícios, recepcionando práticas ou costumes pelos comerciantes.
No tempo atual, novas operações e contratos novos surgem a cada momento, cabendo ao direito recepcioná-los para a segurança e certeza sobre as relações estabelecidas, o que não acontece quando as normas correspondentes se encontram em um código geral, que deve se revestir necessariamente de estabilidade. A solução que se tem adotado é a introdução de mudanças periódicas, que desnaturam a estrutura do modelo, com grande prejuízo. No Brasil, isso tem acontecido até mesmo em relação à Constituição Federal, que recebeu uma enorme quantidade de emendas ao longo do seu tempo de vigência.
Outro aspecto que convém apontar prende-se às normas especiais como, por exemplo, direito bancário, direito dos seguros privados, propriedade intelectual e, mais recentemente, a questão da proteção de dados que, com as redes sociais em expansão, tornou-se tema de magna relevância.
As novas regras sobre a desconsideração da personalidade jurídica baseada em jurisprudência da common law, parecem ignorar que uma das funções da personificação é a separação patrimonial entre patrimônio de sócios/acionistas de uma sociedade e o desta. A origem dessa jurisprudência é o caso Solomon v. Solomon em que Solomon constituiu uma sociedade anônima preenchendo os requisitos formais quanto ao número mínimo de acionistas, sendo ele majoritário e o número de acionistas exigidos era composto por membros de sua família. Em seguida, o controlador usou a pessoa jurídica de forma a ter preferência no pagamento de obrigações em face dos demais credores.
A personificação de sociedades e associações, criação do direito, tem, como objetivo básico, a alocação de riscos no exercício de atividades econômicas. Já a desconsideração visa à tutela de credores da pessoa jurídica e, em certa medida, à proteção destes em face de pretensões de credores de sócios/acionistas.
A positivação dessa jurisprudência no direito pátrio foi ideia de Fabio Konder Comparato, autor da redação do art. 50 da legislação de 2002. O texto considera abuso de personalidade jurídica o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial para fundamentar a desconsideração, ou seja, alcançar bens que, em princípio, não estariam sujeitos, ainda que de forma secundária, a pretensões de credores da pessoa jurídica. Lembra-se que a legislação trabalhista de 1942 já previa a obrigação de sócios/acionistas e/ou administradores de empregadores na hipótese de garantir créditos de empregados.
A novidade jurisprudencial no Brasil nesse plano é a desconsideração inversa, que visa a prevenir a ocultação ou desvio de bens de sócios/acionistas que são transferidos para a pessoa jurídica, a fim de prejudicar credores pessoais. Explica-se, em Avulso – do PL 4/2025 – o que seja confusão patrimonial, isto é, a prática de atos reservados à sociedade por sócios ou administradores, esquecendo-se que a pessoa jurídica não tem existência física e/ou real, sendo presentada por administradores para “agir”. Assim a prática de atos reservados a sócios ou a administradores pela sociedade implica a não presentação jurídica regular, o que configura uso indevido do sujeito de direito (pessoa jurídica). O cumprimento repetitivo de obrigações de sócio, associado ou administrador pela sociedade (pessoa jurídica), ou vice-versa é, claramente irregular, indicando assunção de obrigações fora do quadro societário e em benefício de pessoa natural. A transferência de ativos ou passivos sem contraprestação entre sociedade e sócio, associado ou administrador é outra forma de “ocultação” de bens com efeitos patrimoniais irregulares.
A regra vale para associações, limitando-se a responsabilidade a associados com poder de direção (administração), ou àqueles que possam influenciar a decisão que configure abuso. Nesse sentido, o que se observa, nos vários parágrafos acrescentados ao art. 50 pelo projeto[1], é que normas referentes a deveres, obrigações e responsabilidade de controladores e/ou administradores de sociedades ou associações, são repetidas como se as regras societárias inexistissem.
Outra preocupação é determinar se o elenco de parágrafos é exemplificativo ou impositivo, sem considerar a criatividade das pessoas para circundar normas de direito posto.
No que diz respeito a grupos econômicos, que a par de separação patrimonial se pretende segregar riscos entre diferentes atividades econômicas, a observância do disposto no caput é a norma aplicável. Será que Solomon v. Solomon ensinou alguma coisa? Pelo visto não.
A necessidade da decodificação de grande parte das normas propostas no projeto se mostra de forma muito clara quanto ele trata dos contratos, onde se encontram novidades altamente criticáveis. Primeiro veja-se o que se encontra na proposta correspondente ao parágrafo segundo do art. 421, ao determinar a nulidade de pleno direito da função social do contrato, de onde nascem dois grandes problemas para os operadores do direito contratual.
O conceito aberto de função social do contrato que apareceu no Código Civil é contrário à sistemática de se dar pleno conhecimento das implicações do instituto cuja crítica estes autores já fizeram, longa e profundamente, em obra sobre o direito contratual[2]. Por maior que seja o esforço exegético, não se consegue tirar essa expressão do limbo da incerteza quanto ao seu conteúdo e alcance. Daí, como já foi mostrado no texto aqui referido, a presença de várias interpretações dos julgadores, que têm adotado caminhos diferenciados na interpretação dessa função social, não permite a possibilidade da identificação de um fio condutor.
Por outro lado, a determinação da nulidade da cláusula contratual que não atender à função social apresenta um grande problema. Pode acontecer que essa cláusula considerada nula seja precisamente aquela que encerra o coração das relações jurídicas estabelecidas entre as partes, do que decorre que, no fundo, o contrato será entendido como nulo no seu todo. Aliás, essa nulidade total do contrato que descumprisse a sua função social estava prevista na fórmula inicial do projeto, tendo sido alterada para a nulidade parcial, tal como agora se encontra. Mas o problema continua o mesmo, pois o que se avista quando se olha para o modelo proposto é uma intensa neblina que envolve o seu significado. E nem o sol forte dela dará cabo.
O projeto, nesse sentido, esquece que, se o contrato é de execução diferida no tempo, ele começa a produzir os seus efeitos imediatamente após a sua celebração e, se for anulado em momento futuro, as prestações correspondentes deverão ser colocadas na sua situação original. Imagine-se se for o caso da construção de uma hidroelétrica, acusada de não ter cumprida a função social do atendimento às normas sobre a proteção ao meio ambiente ou dos indígenas que habitam no local. Revela-se claramente impossível desfazer tudo, a par do enorme prejuízo geral para todos os envolvidos. Assim sendo, os efeitos de tal nulidade teriam de se transmudar em indenizações, sabendo-se, pela experiência dos grandes acidentes, das dificuldades homéricas que se põem diante do julgador para chegar a um número adequado.
Nós temos defendido que quanto aos contratos conhecidos na prática mercantil (nominados) e aos criados pelas partes pela expressão de sua liberdade constitucional para o fim do atendimento de novas necessidades (inominados) em si mesmos já exercem sua função social, pois fazem circular a riqueza, como um bem de natureza interna a ser atendido e, na somatória de todos os contratos da mesma natureza, um bem geral para a sociedade.
Essa intervenção indevida na liberdade contratual tem a sua fonte na consideração feita pelo legislador de que as partes não têm capacidade de cuidar dos seus próprios interesses – tal como acontece com os menores – surgindo a necessidade da intervenção do juiz para suprir e/ou corrigir uma vontade contratual considerada ilícita pelo seu fim. Ou seja, mesmo no campo das relações empresariais, todos são considerados em tese hipossuficientes, o que se revela completamente inapropriado, sendo obrigatória a correção do rumo proposto no projeto.
Voltaremos ao assunto.
** Advogados e Professores Sênior do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.
[1] In verbis: “1º O disposto neste artigo se aplica a todas as pessoas jurídicas de direito privado, nacionais ou estrangeiras, com atividade civil ou empresária, mesmo que prestadoras de serviço público; § 2º Na hipótese de desconsideração da personalidade jurídica de associações, a responsabilidade patrimonial será limitada aos associados com poder de direção ou com poder capaz de influenciar a tomada da decisão que configurou o abuso da personalidade jurídica; § 3º É cabível a desconsideração da personalidade jurídica inversa, para alcançar bens de sócio, administrador ou associado que se valeram da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros; § 4º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores ou para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza, inclusive a de abuso de direito; § 5º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação dos patrimônios, caracterizada: I – pela prática pelos sócios ou administradores de atos reservados à sociedade, ou pela prática de atos reservados aos sócios ou administradores pela sociedade; II – pelo cumprimento repetitivo pela pessoa jurídica de obrigações do sócio, associados ou administradores, ou vice-versa; III – pela transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e IV – por outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial; § 6º Aos sócios e aos administradores da pessoa jurídica também se aplicam o que dispõem o caput e os §§ 1º e 2º deste artigo; § 7º A mera existência de grupo econômico, sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não justifica a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica; § 8º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica”.
[2] Cf. o item 7.7 da nossa obra “Direito Comercial Vol. 4, “Teoria Geral do Contrato – Fundamentos da Teoria Geral do Contrato”, Ed. Dialética, São Paulo, 2022.