Wanderley Fernandes**

  1. INTRODUÇÃO:

O atual Código Civil não regula os requisitos de validade e fatores de eficácia da cláusula de limitação de responsabilidade, tema que tem sido objeto de minhas pesquisas e estudos.[1] A proposta de reforma do Código Civil trata da matéria propondo a redação do artigo 946-A nos seguintes termos:

Art. 946-A. Em contratos paritários e simétricos, é lícita a estipulação de cláusula que previamente exclua ou limite o valor da indenização por danos patrimoniais, desde que não viole direitos indisponíveis, normas de ordem pública, a boa-fé ou exima de indenização danos causados por dolo.

Além disso, trata de temas correlatos, sempre presentes na negociação de cláusulas de limitação de responsabilidade, como indenização de danos morais da pessoa jurídica e os chamados “danos indiretos”.

  1. LOCUS DA DISCUSSÃO: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL E EXTRACONTRATUAL.

Antes de tratar de temas espinhosos na redação, pouco precisa e até mesmo incorreta na utilização dos conceitos jurídicos, é preciso notar que o artigo relacionado à cláusula de limitação de responsabilidade está inadequadamente posicionado na “geografia” do Código. É bem verdade que, em matéria de responsabilidade civil, o atual Código contém disposições gerais na parte das obrigações que se aplicam tanto à responsabilidade aquiliana quanto à responsabilidade contratual. Mas a proposta inclui o artigo sobre limitação de responsabilidade no artigo 946, em Capítulo que trata de responsabilidade extracontratual. É possível limitar a responsabilidade extracontratual, em determinadas circunstâncias, mas essa cláusula acessória constitui tipicamente mecanismo de limitação ou exclusão da responsabilidade contratual. Seu “locus” natural estaria nos capítulos da parte geral dos contratos ou, melhor ainda, no capítulo das obrigações, deixando claro tratar-se de regra aplicável para a responsabilidade contratual e extracontratual, como o faz, por exemplo, o Código Civil Italiano no artigo 1229, que regula a cláusula de limitação e exoneração de responsabilidade, está situado no capítulo do inadimplemento das obrigações.

Não se trata de preciosismo ou de questão meramente formal, pois se ainda temos a pretensão de regular a realidade de maneira compreensiva por meio de códigos, é preciso sermos consistentes. A proposta, no entanto, não tem consistência sistemática.

Ademais, a admissibilidade[2] da cláusula para a responsabilidade extracontratual é bastante controversa. Geneviève Viney menciona a impossibilidade lógica da limitação da responsabilidade aquiliana[3]: considerando os acidentes de trânsito como o melhor exemplo, seria impossível limitá-la quanto aos danos causados a um pedestre, pois não haveria qualquer relação jurídica prévia que pudesse definir os limites e os riscos de um acidente de trânsito.

  1. MÉRITO DO DEBATE

Examinando o mérito das propostas, observa-se que a proposição sobre a limitação da responsabilidade civil, relaciona-se aos conceitos de (a) contratos paritários e simétricos versus contratos de ou por adesão; (b) dano moral; (c) danos indiretos; (d) dolo e culpa grave; dano moral.

  1. a) Contratos paritários ou simétricos.

É razoável afirmar que contratos entre partes em relativa igualdade de condições sejam interpretados de maneira a preservar a vontade das partes tal como declarada (artigo 112), sem que a interpretação seja voltada ao objetivo de proteger uma delas. Parte-se do princípio de que ambas as partes estavam em relativa igualdade no momento da contratação. A relativa igualdade é ressaltada, uma vez que sempre haverá assimetria de informação. Porém, a proposta de redação do artigo sobre a limitação de responsabilidade restringe sua validade somente para contratos paritários e simétricos, ensejando várias dúvidas. O que é paritário e o que simétrico? Paritário é o oposto de contrato por adesão? Logo, não seriam admitidas cláusulas de limitação em contratos concluídos por adesão? “Simétricos” significa que a limitação ou exclusão de responsabilidade deveria ser recíproca?

Quanto ao primeiro tema, é preciso notar que as cláusulas de limitação ou de exclusão de responsabilidade têm seu habitat natural nos contratos por adesão[4]. Ainda que por vias transversas, os princípios são os mesmos da teoria do risco, desenvolvida no Brasil por Alvino Lima[5].

Outro ponto é ser simétrico. Simétrico seria recíproco? Mas, se assim for, essa seria uma interpretação absolutamente inadequada, pois os diferentes tipos de contratos contêm obrigações de natureza diversa. Em contrato de compra e venda, temos duas obrigações de dar: entregar a coisa e pagar o preço. Em contrato de prestação de serviços, temos obrigação de fazer e de dar. Em contato de sigilo, temos obrigações de não fazer.  No contrato de empreitada, alguém tem a obrigação de dar e fazer (ou apenas fazer, em se tratando de empreitada de lavor) e outro de dar. As prestações têm naturezas distintas. Se o empreiteiro não constrói, o dono da obra contrata um terceiro para concluir a obra e o empreiteiro responderá até um certo limite. Se o limite for adequado, o dono da obra poderá ser integralmente indenizado. Já na obrigação de pagamento, a lógica é diversa. Se o dono da obra não paga, terá que pagar o valor total, pois recebeu a prestação equivalente. Não é possível determinar que, inadimplida a prestação de pagamento, o devedor responderá somente por um percentual predeterminado da prestação de pagamento. Não há que se falar em simetria de limitação de responsabilidade. Embora isso seja óbvio, a proposta de reforma parece confundir os conceitos.

Outra interpretação possível é considerar como paritário ou simétrico o contrato em que a cláusula de limitação ou exoneração tenha uma contrapartida, como um desconto, por exemplo. Ou seja, a cláusula deveria ser objetivamente precificada. Essa visão, entretanto, deixa de considerar que sempre se toma em consideração o risco associado ao preço. Algumas empresas assumem como condição necessária para a contratação a existência de alguma forma de limitação de responsabilidade. A contrapartida, portanto, é a própria contratação e o preço negociado.

Parece-nos, portanto, que a restrição da cláusula aos contratos paritários e simétricos, seja lá o que isso significa, somente traz insegurança jurídica e mais elementos desnecessários para o juiz ou árbitro considerar na decisão de disputas contratuais.

Quanto aos contratos concluídos por adesão, não nos parece haver qualquer restrição “per se”, somente pelo fato de não haver negociação quanto aos seus termos. Já estão superadas as objeções teóricas quanto à validade dos referidos contratos. A sociedade moderna demanda rapidez e segurança das contratações em massa, sendo razoável a estipulação prévia e unilateral dos termos e condições aplicáveis às inúmeras contratações. Tal como proposta a redação do artigo 946, não seria admissível a estipulação de cláusulas de limitação de responsabilidade nos contratos de adesão.

A proposta, no entanto, em se tratando de contratos regulados pelo Código Civil, sejam empresariais ou não, deveria considerar o consentimento inequívoco quanto à cláusula. Isso poderia ser alcançado pela assinatura em separado da cláusula ou a necessidade de rubrica específica ao seu lado. Não se trata, portanto, de excluir a validade da cláusula em contratos por adesão, mas de assegurar que houve consentimento específico, inequívoco e informado a respeito de sua incidência no contrato.

  1. b) Dano moral

Um dos grandes temas da responsabilidade civil tem sido o dano extrapatrimonial cuja abrangência, em vários ordenamentos jurídicos tem sido estendida.

Em alguns casos, como apontado por Enzo Roppo, nota-se o fenômeno do “populismo jurídico”, quando o direito é utilizado para fins políticos. Seu mais recente livro é a respeito do “garantismo” jurídico em oposição ao populismo jurídico[6]. Examinando as propostas de reforma do Código Civil, é possível identificar resquícios desse populismo quando, por exemplo, se inclui no artigo 994-A, parágrafo 2º, inciso I a indenização pela “afetação” de “projeto de vida”. Este é um conceito vago, indeterminado e que contém uma perspectiva do direito invadindo o campo existencial da frustração humana. Somos responsáveis pela felicidade do outro? O direito deve preservar o equilíbrio das relações, mas não lhe cabe resolver nossos problemas existenciais.

No campo dos negócios jurídicos empresariais, Paula Forgioni diz que o direito não deve corrigir os erros de negócios que são inerentes à atividade econômica[7]. O juiz ou árbitro não tem a função de corrigir erros dos administradores.

Ao se dizer que a limitação de responsabilidade não pode alcançar o dano moral, pergunta-se: e o dano moral da pessoa jurídica? A nosso ver, a limitação ou exclusão não afeta o dano moral da pessoa jurídica que terá sempre uma expressão patrimonial e, portanto, suscetível de limitação. Em outras palavras, será sempre possível a limitação do dano moral da pessoa jurídica, mas não da pessoa física. Quanto à pessoa física, deve ser preservada a integridade da pessoa humana, em seu aspecto físico e psíquico. Este entendimento foi, recentemente, confirmado pelo Supremo Tribunal Federal que julgou inconstitucional a limitação de responsabilidade por dano moral nas relações trabalhistas, como pretendido na reforma da CLT[8].

A redação do artigo 946, entretanto, parece afastar totalmente a possibilidade de limitação do dano moral da pessoa jurídica. Caberá aos árbitros e juízes delimitar esta distinção, mas, de novo, o texto legislativo terá criado um elemento perturbador para a interpretação dos contratos.

  1. c) Danos indiretos:

Este talvez seja o item mais problemático das propostas de reforma. O artigo 944 inclui entre os danos indenizáveis os danos diretos, indiretos, presentes e futuros. Fiquemos com os danos indiretos. O que é isso? Danos consequenciais, a terceiros, indiretos, incidentes, especiais? Além do mais, são propostas de alterações no artigo 944 sem, no entanto, qualquer mudança no artigo 403.

Ao tornar indenizável o dano indireto, e não aquele que é resultado direto e imediato do inadimplemento ou do ilícito absoluto, teríamos a teoria da equivalência das causas. Tudo contribui para a ocorrência do dano. A referência ao dano indireto no artigo 944 do Anteprojeto nos remete a outro problema grave: ao transplante jurídico de conceitos estrangeiros. Na tradição do direito civil, desde Robert-Joseph Pothier[9], o dano indireto está associado ao dano que não resulta como efeito direto e imediato da ação do causador do dano. Temos que avaliar a causa determinante do dano. De outro lado, na common law, temos conceitos não coincidentes, como danos consequentes, especiais, indiretos, reliance, punitive etc.

Tudo considerado, temos duas possibilidades (i) há inconsistência na proposta, ou (ii) o artigo 944 trata de outra hipótese de dano indireto, e não o previsto, por exclusão, no art. 403. Em um ou outro caso, a reforma nos traz insegurança jurídica, pois não há definição clara de conceitos e categorias jurídicas. Ademais, a lei não é manual de direito. A lei define comandos de ação e condutas.

  1. d) Culpa grave:

A reforma não admite a limitação de responsabilidade em caso de dolo, mas nada estipula quanto à culpa grave, ensejando a admitir que, nesse caso, não haveria restrição ao direito de limitar a responsabilidade. A culpa grave sempre foi equiparada ao dolo. “Culpa lata dolo aequiparatur”. Esta é uma regra presente em muitos dos ordenamentos jurídicos da “civil law”, embora aculpa grave ou a gross negligence não seja de fácil caracterização. O professor Antonio Junqueira de Azevedo procurou caracterizar a culpa grave sob diversos aspectos[10]. Primeiro, por analogia ao direito penal e a figura do dolo eventual, depois pela figura da culpa consciente. Ao final, o saudoso professor se rende à conclusão de que se trata de uma questão de intensidade a ser verificada no caso concreto. Não deixa de ter razão, mas não contribui para uma fórmula objetiva de caracterização da culpa grave. Ao não admitir a limitação de responsabilidade em caso de culpa grave, a reforma está inserindo no ordenamento jurídico brasileiro mais um elemento de insegurança jurídica e incentivando a prática de erros grosseiros e inescusáveis.

  1. CONCLUSÃO

Pretende-se atualizar o código diante das novas realidades[11]. Cabe-nos, no entanto, perguntar qual a realidade? Inteligência artificial, mudanças climáticas, singularidade, responsabilidade por resultados inesperados, guerras cibernéticas, combates extra-atmosféricos. Pouco mais de vinte anos nos separam do Código de 2002.  O que nos espera nos próximos cinco ou dez anos? A tecnologia parece indicar um novo paradigma. Vamos discutir o novo Código na próxima década ou no próximo ano?

** Graduado pela Universidade de São Paulo, Mestre pela University of Illinois, doutor pela Universidade de São Paulo, Business development pela Harvard Business School, professor dos programas de graduação e pós-graduação da FGV-Direito SP, membro da School Global League, árbitro, advogado e parecerista em matérias civis e comerciais.

[1] FERNANDES, Wanderley. Cláusulas de limitação e exoneração de responsabilidade. São Paulo: Editora Saraiva, 2013.

[2] Uso a palavra “admissibilidade” para não entrar no espinhoso tema da validade e eficácia, o que demandaria estudo mais aprofundado.

[3] VINEY, Genevieve et JOURDAIN, Patrice, Traité de droit civil, sous la direction de Jacques Ghestin, Les conditions de la responsabilité, 2e éd.

[4] Elas nasceram nos contratos de transporte ferroviário nos USA no século XIX. Era do interesse nacional integrar o território da costa leste ao oeste. Portanto, quem desejava ir de Nova York para explorar as minas de ouro da Califórnia deveria assumir os riscos da viagem. À medida que o risco diminuía, a responsabilidade do transportador aumentava, pois não seria razoável que o consumidor assumisse o risco do agente econômico que tira proveito da atividade.

[5] Da culpa ao risco. São Paulo, Revista dos tribunais, 1938.

[6] Garantismo. Baldini-Castoldi, 2022.

[7] A evolução do direito comercial brasileiro da mercancia ao mercado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

[8] STF: Indenização por danos morais pode superar teto da CLT. Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.050. Distrito Federal. Relator: Min. Gilmar Mendes.

[9] POTHIER, Robert-Joseph. Traité des Obligations. Paris: Dalloz, 2011.

[10]AZEVEDO, Antonio Junqueira. Novos estudos e Pareceres de Direito Privado, São Paulo: Saraiva, 2009.

[11] As ideias acima são proposições sobre temas e não pessoas. O respeito acadêmico deve prevalecer e termos todos nós a consciência de que o Código Civil terá o impacto sobre milhões de cidadãos, mães, pais, filhos, herdeiros, empresas, administradores, vizinhos, proprietários, locatários, detentores, posseiros e toda sorte de sujeitos de direitos e obrigações.