Guilherme Carneiro Monteiro Nitschke[1]

Entremez

Na Parte I da “primeira aproximação” às propostas de alteração do Código Civil em matéria de contratos, principiei por tratar do contrato preliminar e da mais impactante das propostas apresentadas pelo Relatório Geral da Comissão: o novo art. 464 e a revogação do art. 465, a possibilitar uma sorte de autoexecução específica do contrato preliminar, caso uma das partes se negue a celebrar o negócio definitivo (item ‘a’ da Parte I).

Este não é, contudo, o único dado preocupante que o Relatório Geral porta para a disciplina do contrato preliminar. Daí que esta Parte II retome o fio de Ariadne da Parte I e complemente o exame com a parcela final do art. 464 (item ‘b’), aluda às atecnias do art. 462 (item ‘c’) e finde por destacar a inofensiva mudança proposta para o art. 463 (item ‘d’).

  1. O contrato preliminar: há necessidade ou utilidade nas propostas modificativas? (continuação)

 

  1. O art. 464 e a indenização

Não pode passar sem atenção o quanto previsto no art. 464 in fine ora proposto, que alude ao direito de obter-se indenização “em qualquer dos casos”, isto é, tenha optado o interessado pela resolução do contrato preliminar, tenha optado pelo suprimento de vontade. Resgate-se o texto sugerido: “Esgotado o prazo fixado para a celebração do contrato definitivo, poderá o interessado, ao seu exclusivo critério, resolver o contrato ou pedir ao juiz ou ao oficial do Cartório de Registro de Imóveis que confira caráter definitivo ao contrato preliminar, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos. Parágrafo Único. Se a natureza da obrigação obstar que a vontade do inadimplente seja suprida, a obrigação se resolverá em perdas e danos”.

Se não há maiores dúvidas de que a resolução por inadimplemento de um contrato preliminar gera direito ao ressarcimento das perdas e dos danos (ainda que haja algum grau de debate sobre indenizar-se o interesse negativo ou o interesse positivo), o novo dispositivo suscita incerteza quanto a isso ser conjugável a pleito cominatório: mesmo nos casos em que houver suprimento da declaração de vontade, há ensejo para indenização? Não é tranquilo que tal seja conjugável, sendo de registrar doutrina de diferentes épocas a se posicionar em sentido contrário[2] – paisagem que já seria suficiente para recomendar que não se legisle a respeito.

Mas e se houver possibilidade de conjugação e, assim, ensejo para indenização em soma à execução específica, qual há de ser o objeto da reparação, uma vez que, suprida a declaração, o interessado obteve o resultado prático buscado, i.e. a celebração forcejada do contrato definitivo?

O dispositivo proposto não esclarece; deixa a questão pairando no ar, por colocar em um mesmo saco a indenização que se teria para a resolução por inadimplemento e a indenização que se teria para o suprimento da declaração de vontade. Tal se agrava diante da outorga do suprimento de vontade ao oficial registrador: estaria também ele legitimado a fixar indenização no mesmo toque de Midas que transforma o contrato preliminar em contrato definitivo? Ou teria de ser pretensão autônoma, exercida, esta sim, perante juiz ou árbitro, tendo por exclusivo objeto o ressarcimento das perdas e dos danos? E se – para apimentar o rol de inseguranças jurídicas geradas pela proposta apresentada – houver decisões antagônicas, no sentido de o registrador deferir a conversão do preliminar em definitivo, mas o juiz ou o árbitro julgar improcedente o pleito indenizatório com base, por exemplo, na declaração de que não havia um contrato preliminar, quid iuris?

Essas são todas angústias aplicativas que o novel art. 464 geraria, por conta de sua obscuridade e da inovação desmedida de sua disciplina, desancorada de base prévia que lhe desse solidez.

  1. O art. 462 e a forma

Passando do mais grave para o menos grave, mas ainda assim atécnico, há a proposta da Relatoria Geral para o art. 462 (uma vez que o relatório parcial da Subcomissão não trazia sugestão de alteração ao dispositivo[3]). Hoje tal dispositivo vige com o seguinte texto: “O contrato preliminar, exceto quanto à forma, deve conter todos os requisitos essenciais ao contrato a ser celebrado”. A modificação sugerida é nos seguintes termos: “O contrato preliminar, exceto quanto à solenidade, deve conter todos os requisitos essenciais ao contrato a ser celebrado”.

A troca de “forma” por “solenidade” consolida atecnia.

Primeiro, porque não há “requisitos essenciais” de solenidade, mas de forma: a solenidade é que é requisito eventual – e, portanto, nem sempre exigido – de validade de dado contrato (mas não do preliminar)[4]. A mistura entre os planos da existência e da validade, que já vinha presente no texto original do art. 462, acentua-se com a proposição. Bem ensina a doutrina que um contrato preliminar, para existir, precisa ter os elementos categoriais essenciais (essentialia negotii) do contrato definitivo, de modo que disponha de grau mínimo de preliminaridade[5]. A forma, contudo, pode ser livre, isto é: as partes dispõem de liberdade para optar entre celebrar o contrato preliminar por forma solene ou por forma não-solene, independentemente de se ter exigência legal para a forma do contrato definitivo. Alguma forma o contrato preliminar tem de ter, pois “ter forma” é elemento geral intrínseco de todo e qualquer negócio jurídico[6]. O que o hoje vigente art. 462 excetua, porém, é que o contrato preliminar necessite ter forma específica que atenda a dada prescrição legal: para ter validade, não é exigível do contrato preliminar que tenha forma prescrita em lei; basta ter forma, seja ela qual for.

Pelo atual art. 462, portanto, preserva-se não a “liberdade de solenidade” (o que seria uma contradictio in terminis, tal como vai proposto), mas a “liberdade de forma” (Código Civil, art. 107), de modo que, para ter validade, um contrato preliminar não precisa ter forma solene, ainda que o contrato definitivo assim careça[7]. Essa desvinculação entre as formas dos negócios preliminar e definitivo é antiga tradição no direito brasileiro, remontando a Teixeira de Freitas[8] e bem resumida no “princípio da independência dos pressupostos formais do pré-contrato”[9].

Ainda, e em segundo lugar, o dispositivo proposto, ao fazer menção à solenidade, é equivocadamente limitativo, pois acaba por excepcionar apenas e tão-somente os negócios jurídicos solenes, quando, em verdade, a independência de forma vige em face de todo e qualquer contrato definitivo, seja ele solene, seja ele não-solene. A clareza aqui importa sobremaneira tendo em vista haver exemplos estrangeiros em que a validade do contrato preliminar depende de se obedecer à mesma forma do contrato definitivo[10], ou mesmo autores brasileiros de outras épocas que defendiam a “teoria da parificação”[11]. Dúbia como está, a inserção pode sugerir estar-se sobrepondo retalho de modelo jurídico estrangeiro por sobre tecido nacional.

  1. O art. 463, Parágrafo Único, e o registro

Por fim, há que se aludir à mais inofensiva das proposições, i.e. a que faz inserir um Parágrafo Único ao art. 463, prevendo o seguinte: “Para ter eficácia quanto a terceiros, o contrato preliminar deverá ser levado a registro”. Tal já era interpretação consagrada do ora vigente Parágrafo Único, que, apesar de falar em “dever” de se levar ao registro, sempre foi interpretado como se outorgando uma faculdade às partes, para fim de operar efeitos a terceiros. Tanto é assim que a I Jornada de Direito Civil Centro de Estudos Judiciários – CEJ do Conselho da Justiça Federal – CJF, realizada já nos dias 12 e 13 de setembro de 2002, fez logo aprovar o Enunciado n. 30 que dita: “A disposição do parágrafo único do CC 463 deve ser interpretada como fator de eficácia perante terceiros”[12].

Tão cedo se firmou tal interpretação – reafirmo: mesmo antes da vigência do Código Civil –, que dúvidas jamais provocou, de modo que a modificação proposta é inofensiva.

A propósito, melhor seria de se adotar, caso algo fosse de se acolher, a redação proposta pela Emenda n. 63 (já de consenso), que apenas troca “deverá” por “poderá”, assim produzindo a mínima intervenção possível ao dispositivo: “O contrato preliminar poderá ser levado ao registro competente”[13].

  1. Conclusões preliminares

Para além da disciplina proposta para o contrato preliminar, há uma plêiade de outros exemplos que geram apreensão aplicativa, e que hão de merecer debate e reflexão antes que se possa sequer cogitar de transformar o posto em disposto, e.g.: altera-se a normativa do contrato de adesão para fazer-se inserir uma enigmática alusão a cláusulas “aprovadas pela autoridade competente” (art. 423), tanto quanto se eliminam os bem sedimentados requisitos da ambiguidade e da contradição para a interpretação contra proferentem (art. 423 §2º), assim expandindo, para os aderentes, a norma protetiva ao consumidor (CDC, art. 47); insere-se regra geral protetiva para contratos com sucessivos prazos determinados, e que hoje é específica a certas figuras típicas, como as de representação comercial (art. 473-A); ou, ainda, reforma-se a disciplina da convenção de arbitragem (nada obstante haver lei abundante a respeito) e procede-se com atecnia ao aludir-se a um compromisso arbitral que se possa inserir em negócio jurídico prévio (art. 853), como se tal figura não fosse justamente a que se celebra não por antecipação, mas posteriormente ao surgimento do litígio. A disciplina da resolução por excessiva onerosidade superveniente (e a partir do eventual novo Código, da revisão) é outro dos exemplos marcantes, a suscitar uma sequência de angústias aplicativas[14].

Essas são matérias que hão de ser objeto de estudos subsequentes, mas que – adianto – ensejam conclusão semelhante a que aqui se chegou: se a inovação legislativa se mede pela necessidade ou pela utilidade do quanto proposto, parece-me que, em matéria de contrato preliminar, não é necessário haver qualquer modificação, tendo em vista a clareza e a sistematicidade do hoje já vigente; tanto quanto não há utilidade no que vai proposto, pois mais confunde e suscita inseguranças do que arruma e organiza. O mais adequado é seguir a diretriz da tradição e priorizar a “força conservativa”[15], mantendo inalterado o que muito bem funciona.

 

[1] Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito pela UFRGS. Diretor do CBAr. Sócio de Contencioso e Arbitragem de TozziniFreire Advogados. E-mail: gmn@tozzinifreire.com.br.

[2] Sustentando que a indenização só tem lugar quando não houver execução específica, uma vez que ao incumprimento de obrigação de fazer segue-se ou sua execução in natura, ou indenização por perdas e danos (e não os dois): ALEM, Fabio P. Contrato Preliminar: níveis de eficácia. São Paulo: Almedina, 2018, p. 160; CARVALHO SANTOS, J. M. Código Civil Brasileiro Interpretado. 4. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1951, v. 15, pp. 132 e 161; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. 3, p. 90; SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil (Fontes das Obrigações: Contratos). 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1957, v. 3, pp. 79-80; SOUZA, Ernani Vieira de. Execução específica da obrigação de emitir declaração de vontade. Doutrinas Essenciais de Processo Civil. São Paulo: RT, 2011, v. 8.

[3] Consulte-se em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/4b74428f-ae8f-4e72-b190-2c3e141fc13f.

[4] “Diz-se solenes os contratos que só se aperfeiçoam quando o consentimento é expresso pela forma prescrita na lei”, sendo a forma, assim, “de sua substância” (GOMES, Orlando. Contratos. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 77).

[5] TOMASETTI JR., Alcides. Execução do Contrato Preliminar (Tese de Doutoramento). São Paulo: Faculdade de Direito da USP, 1982, p. 34 e ss., que os trata como “elementos categoriais inderrogáveis”.

[6] Sobre isso, o tratamento paradigmático no direito brasileiro é de AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio Jurídico. Existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva, 2002, passim.

[7] Assim: ALEM, Fabio P. Contrato Preliminar: níveis de eficácia. São Paulo: Almedina, 2018, p. 67; GAGLIARDI, Rafael Villar. Contratos preliminares. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore (Coords.). Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, 2011, pp. 564-565; GAMA, Affonso Dionisio. Teoria e Prática dos Contratos por Instrumento Particular no Direito Brasileiro. 13. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, v. 1, p. 158 e ss.; GONÇALVES, Luiz da Cunha. Da Compra e Venda no Direito Comercial Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 1950, pp. 195-196; TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson. Qualificação e disciplina do contrato preliminar no Código Civil brasileiro. In: BARBOSA, Henrique; FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa (Coords.). A Evolução do Direito Empresarial e Obrigacional: 18 anos do Código Civil. Vol. 2: Obrigações & Contratos. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 31. A liberdade de forma do contrato preliminar vige entre nós desde, pelo menos, o Decreto-Lei n. 58/1937, que a admitia por instrumento público ou particular (art. 11), ou mesmo “manuscrito, datilografado ou impresso, com espaços em branco preenchíveis em cada caso” (art. 11 §1º), ou, ainda quanto à transferência da promessa, “por simples traspasse lançado no verso” (art. 13).

[8] O art. 1.930 do “Esboço” dispunha, em muito avançada tratativa: “Os contratos que, devendo ser feitos por escritura pública (art. 1.929, n. 1), forem feitos por instrumento particular assinado, ou que forem feitos por instrumento particular assinado, em que as partes se obriguem expressamente a reduzi-los à escritura pública (art. 1.929, n. 2), não ficarão concluídos como tais, enquanto a escritura pública não for assinada (art. 860), mas ficarão concluídos como contratos em que as partes se têm obrigado a fazer escritura pública (arts. 1.839 e 1.904), se os instrumentos particulares tiverem sido judicialmente reconhecidos ou verificados (arts. 745 e 750 a 758). Procede esta disposição, quando os instrumentos particulares forem minutas ou apontamentos do contrato, ou cartas missivas, contanto que estejam assinados” (TEIXEIRA DE FREITAS, A. Codigo Civil. Esboço. Brasília: Ministério da Justiça, 1983, v. 2, p. 362).

[9] PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de Direito Privado. 4. ed. São Paulo: RT, 1983, t. 13, pp. 210-211.

[10] E.g. o direito português, consolidado no art. 410, n. 2, do Código Civil (“Contrato-promessa. Artigo 410.º (Regime aplicável) […] 2 – Porém, a promessa respeitante à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula ou por ambas, consoante o contrato-promessa seja unilateral ou bilateral”); o direito italiano, consolidado no art. 1.351 do Codice Civile (“Art. 1351.Contratto preliminare. Il contratto preliminare è nullo, se non è fatto nella stessa forma che la legge prescrive per il contratto definitivo”); o direito boliviano, consolidado no art. 463, I, do Código Civil (“I. El contrato preliminar, sea bilateral o unilateral, para la celebración de un contrato definitivo en el futuro, debe contener los mismos requisitos esenciales que este último, bajo sanción de nulidad.”).

[11] Assim BESSONE, Darcy. Da Compra e Venda. Promessa & reserva de domínio. Belo Horizonte: Bernardo Álvares S/A, 1960, pp. 188-191.

[12] Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-cej/i-jornada-de-direito-civil.pdf.

[13] Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/827bfccd-421b-4603-9602-017407b77c32.

[14] As duas propostas apresentadas fazem redundantes os arts. 317 e 478; uma delas eclipsa modelo jurídico com outro, ao abarcar na excessiva onerosidade a hipótese de impossibilidade da prestação (art. 478 da “Versão Rosa Nery”); inserem a possibilidade de um pleito diretamente revisivo, mesmo diante de expressiva doutrina em sentido contrário (art. 478, Parágrafo Único); eliminam a disciplina dos contratos unilaterais e, em seu lugar, inauguram “pretensão de renegociação”, ainda que seja polêmico falar-se da existência de um subjacente dever (art. 480); e fazem inserir disciplina da frustração do fim contratual, mais uma vez sem pacificação doutrinária ou jurisprudencial a respeito (art. 480-A).

[15] Como ensinava Clóvis Beviláqua ao traçar observações introdutórias ao Código Civil de 1916 e apontar para a necessidade de que o legislador consiga encapsular “a conservação e a innovação”, “duas forças” de cujo equilíbrio dependeria a perenidade do edifício (BEVILÁQUA, Clóvis. Observações para esclarecimento do Codigo Civil Brasileiro. In: Codigo Civil Brasileiro: trabalhos relativos á sua elaboração. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917, v. 1, p. 17).