Onerosidade Excessiva (Arts. 478 e 479 CC) e pactos parassociais

Mariana Conti Craveiro[1]

“O grande imponderável (…) consiste basicamente em definir o que seja prestação excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra e acontecimentos extraordinários e imprevisíveis. (…) Aqui não se pode operar senão por ensaios clínicos. Não há medidas objetivas que permitam rotular o estado de uma prestação como se tornado excessivamente oneroso. Nem quando um acontecimento assume o predicado de extraordinário e imprevisível. Vai daí que é vão esperar uma resposta de autoridade, peremptória e universal. Perde o seu tempo quem o tentar.”[2]

 

Desde o início da vigência do Código Civil em janeiro de 2003, muito se tem debatido sobre o regime aplicável à alteração de circunstâncias nas relações obrigacionais duradouras, previsto nos arts. 478 e 479[3], com análises variadas sobre seus requisitos e alcance, além da discussão sobre a existência de um dever de renegociação contratual[4]; e sobre a viabilidade da aproximação da solução contida no art. 317 para o reajuste do valor de prestações pecuniárias com recurso ao princípio da conservação dos negócios jurídicos[5].

Nada obstante, o exame das soluções legalmente previstas de resolução (art. 478) ou de modificação equitativa (art. 479) de uma prestação tornada excessivamente onerosa a uma parte e extremamente vantajosa, para outra, em vista de acontecimento extraordinário e imprevisto, não se tem realizado de maneira específica e aprofundada quanto a relações obrigacionais estabelecidas no contexto societário, o que enseja algumas singelas provocações no presente Boletim.

  1. a) “Contratos de execução continuada ou diferida

O primeiro elemento para a aplicação do regime de alteração de circunstâncias eleito pelo legislador brasileiro – estar-se em presença de contrato de execução continuada ou diferida – decorre da constatação de que somente com relação a esses contratos, espalmados no tempo, existe o risco de que circunstância excepcional venha a golpeá-los, exigindo remédio para que a permanência do vínculo não se mostre iníqua.

É característica das relações societárias que elas sejam duradouras, ainda que por tempo determinado[6], tendo em vista que a própria noção de sociedade ampara-se naquela de desenvolvimento de uma atividade econômica comum, mediante contribuição dos sócios, com partilha de resultados.

As contribuições e condutas de cada sócio são, portanto, direcionadas a esse fim comum, e os deveres e direitos de cada partícipe, ao comporem o status socii, perduram ao longo da existência da sociedade[7][8]. Também é inerente à noção de sociedade a assunção, pelas partes, do risco da atividade econômica que pretendem desenvolver conjuntamente: o “risco do negócio”.

Os pactos parassociais surgem e são utilizados para personalizar e detalhar o relacionamento societário, regrando de antemão aqueles aspectos que, no contexto específico em que as partes decidem se associar e considerando o risco natural da atividade empresarial, entendem mais propícios a gerar outros riscos ao êxito de sua atuação conjunta[9].

E, no âmbito desses contratos, estabelece-se entre as partes outra relação contratual, igualmente protraída no tempo, que demanda a alocação de riscos próprios entre os convenentes, refletida nas diversas obrigações pactuadas, incluindo soluções negociais para situações críticas não apenas para o relacionamento societário (ex: opções de compra e de venda), mas também para sua própria manutenção (ex: cláusula de renegociação) ou, em seu silêncio, a remissão à disciplina legal.

  1. b) Prestação excessivamente onerosa, com extrema vantagem ao credor

Usualmente, a análise do tema da alteração das circunstâncias é realizada tomando-se por base uma relação obrigacional bilateral, sem enfoque sobre as peculiaridades de prestações de fazer ou não-fazer e com identificação clara dos polos credor e devedor.

Há que se notar, então, que nos pactos parassociais, há obrigações com prestações de variada natureza, incluindo ajustes em favor de terceiro (a sociedade), como já se deixa entrever pela indicação das matérias previstas no art. 118 da Lei 6.404/76 como características dos Acordos de Acionistas: (i) a compra e venda de ações (ii) preferência para adquiri-las, (iii) exercício do direito de voto e (iv) exercício do poder de controle[10]. Ademais, não se pode perder de vista que essas obrigações são contratadas em função do relacionamento societário nascido da decisão das partes de associarem-se, em sociedade, para a consecução de uma atividade empresarial comum.

Se a base para se considerar uma prestação excessivamente onerosa e com vantagem extrema ao credor é a bitola do risco assumido pelas partes na contratação, há que se examinar como essa alocação foi realizada e que peso foi dado a esse específico ajuste na economia global do contrato celebrado: deve-se atentar para qual tenha sido a base do negócio concluído entre as partes[11] e se, em vista dela, a onerosidade de determinada prestação é tal que justifica a resolução de todo o contrato.

Pois bem. Tomando-se as mais típicas manifestações de obrigações insertas em pactos parassociais – os acordos de voto – tem-se a prestação devida por um convenente, perante todos os demais, de votar seguindo diretrizes estabelecidas em reunião prévia. Como apurar, em cada caso concreto, que semelhante prestação possa ser tida por excessivamente onerosa e geradora de extrema vantagem para os credores para fins do art. 478? Como pensar a modificação equitativa da prestação (i.e. voto conforme as diretrizes) nesse contexto peculiar de contratação, para que seja aplicado o art. 479 do Código Civil?

Em outras palavras: a prestação correspondente à emissão de voto em bloco seria mesmo passível de subsunção legal? Que ela pode se tornar menos interessante ou mesmo prejudicial ao contraente, isso é um fato da vida que, por si só, não atende aos requisitos legais para a resolução contratual prevista em lei. Mas haveria situação fática tal que levasse a prolação de voto seguindo determinada diretriz a ser excessivamente onerosa para o acionista gerando extrema vantagem para os demais membros do acordo, decorrente de eventos com os atributos contidos na fattispecie?

Tomando agora uma outra obrigação bastante comum em acordos entre sócios, de caráter não “político” – ex: obrigação de o acionista fornecer à sociedade matéria prima em condições x ou y – é preciso considerar que o eventual pleito de resolução do contrato pela onerosidade excessiva dessa prestação específica, se não obstado pela modificação equitativa aceita pelo credor, ensejará o desfazimento de todo o pacto parassocial, lançando por terra a também buscada estabilidade das relações de poder na sociedade e, se o caso, para o exercício conjunto do poder de controle, objeto dos acordos de voto eventualmente também presentes.

Apenas pelos exemplos acima, pode-se intuir que a intersecção, o liame existente entre o parassocial e o social, típico desses contratos, tornam sobremaneira difícil a subsunção de certas prestações parassociais na hipótese legal do art. 478, sobretudo diante da advertência feita pelo Prof. Villela que serve de introito a este texto: se na generalidade das relações obrigacionais é preciso realizar “ensaios clínicos” para se determinar a eventual onerosidade excessiva de uma prestação, a vantagem extrema ocasionada à contraparte e mesmo os requisitos de excepcionalidades de que seus eventos causadores devem se revestir, mais cautela e exame acurado se fazem necessários na seara societária.

  1. c) “Acontecimentos extraordinários e imprevisíveis

Da mesma forma, ainda considerando a função econômica específica dos contratos parassociais de detalhar a disciplina societária e conferir regramento minucioso às relações entre sócios, os acontecimentos extraordinários e imprevisíveis que autorizariam a resolução do contrato e/ou a modificação de prestação considerada excessivamente onerosa devem ser assim configurados quando extrapolem aqueles eventos passíveis de previsão e, portanto, de regulação pelas Partes, na formação do mosaico que entendem corresponder a seu interesse comum na contratação.

Há que se considerar, nesse ponto, que a celebração de pactos parassociais é medida decorrente de certa sofisticação alcançada na evolução no direito societário das últimas décadas, cuja contratualização tem se intensificado.

Salvo raras exceções, são partes desses negócios jurídicos agentes econômicos com conhecimento do fenômeno, assessorados por profissionais acostumados à engenharia contratual e aos mecanismos de que podem lançar mão para edificar seu relacionamento societário, com recurso ao pacto parassocial e atenta alocação de riscos quanto aos eventos que consideram capazes de fulminar o interesse comum das partes em se associar, seja adotando mecanismos para lhes fazer frente, seja assumindo-os como moeda de troca na negociação.

Nesse cenário, o limiar para que um evento seja tido por extraordinário e imprevisível, nos termos legais, parece ainda mais alto, privilegiando-se a certeza e a segurança jurídicas.

  1. d) Pedido de resolução do contrato pelo devedor e oferta de modificação equitativa da prestação pelo credor.

Em linha com as reflexões apontadas no item b), acima, é preciso considerar que a própria disciplina da extinção dos pactos parassociais e, mais especificamente dos acordos de acionistas contendo acordos de voto e exercício do poder de controle, é alvo de debates importantes[12]. Ademais, deve-se frisar que a estabilidade das relações societárias é usualmente apontada como a própria razão de ser da contratação parassocial, impondo que o remédio da resolução seja administrado com ainda maior cuidado e rigor.

De fato, a resolução do pacto parassocial não necessariamente será acompanhada da extinção do vínculo societário entre as partes contratantes, com claras dificuldades práticas: liberadas do pacto parassocial originalmente contratado, as partes passarão a exercer seus direitos de sócio, individualmente, como lhes aprouver, alterando a dinâmica de poder no seio da sociedade, inclusive com a possibilidade de alienação de ações a terceiros sem observar direitos e ritos anteriormente previstos no pacto parassocial em favor dos demais acionistas[13].

Cabe considerar, ainda, que o risco de extinção prematura do acordo é elemento de ponderação bastante comum, quiçá típica, na negociação desses ajustes, como já referido. Pelo poder conferido às partes pela autonomia privada, elas podem regrar as hipóteses de alteração de circunstâncias que reputam integrantes da base do negócio, de modo a construir solução que entendam mais rente às suas efetivas necessidades em caso de seu comprometimento, inclusive tornando claras eventuais restrições à aplicação do regime legal previsto nos art. 478 e 479.

Nessas brevíssimas linhas, chama-se a atenção para a necessidade de compreensão da complexa dinâmica existente em cada relação societária em vista da qual um pacto parassocial tenha sido celebrado, para que se possa compreender qual a “base do negócio”, a alocação de riscos e, por consequência, os quadrantes em que determinada prestação constante desse tipo de negócio jurídico peculiar ter-se-á se tornado excessivamente onerosa e, ao mesmo tempo, geradora de extrema vantagem ao credor (ou credores), em vista de eventos extraordinários e imprevisíveis, também eles não albergados na equação de risco moldada pelas partes.

O exercício teórico parece válido, mesmo que para eventualmente se concluir que o regime da alteração de circunstâncias, tal como erigido no Código Civil vigente, não encontra substancial aplicação concreta nas relações obrigacionais previstas em pactos parassociais, por serem mais dificilmente atingidos, com relação a elas, os requisitos do art. 478.

Considerado o importante papel dos pactos parassociais no direito societário da atualidade e, por consequência, no mercado, afigura-se positivo que assim seja, pois

“assim como nas doenças, o remédio tem que compensar os seus custos, aí incluídos os efeitos adversos, comumente chamados de colaterais. Toda resolução de contrato por excessiva onerosidade importa custos mais ou menos pesados para outro valor fundamental na economia e justiça dos contratos que é o respeito às vontades que lhes deram vida e os introduziram no circuito dos fatos econômicos e sociais. Sua paradigmática expressão é sempre evocada com temor e reverência: pacta sunt servanda[14].

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[1] Bacharel, Mestre e Doutora em Direito Comercial pela Faculdade de Direito Universidade de São Paulo- Largo São Francisco. Vice-Presidente do IDiP – Instituto de Direito Privado. Ex-Coordenadora do Grupo de Estudos em Arbitragem e Direito Societário do CBar – Comitê Brasileiro de Arbitragem. Advogada em São Paulo, com atuação como árbitra, listada nas principais instituições arbitrais brasileiras.

[2] Villela, João Baptista, “Equilíbrio do contrato: os números e a vontade”, in Revista dos Tribunais, vol. 900, out 2010, p. 85 e seguintes, obtida em versão digital.

[3] Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato.

[4] Posição defendida por Schreiber, Anderson, Equilíbrio Contratual e Dever de Renegociar, 2ª Edição, São Paulo, Saraiva, 2020, p. 372 e seguintes.

[5] Contra, por todos, Marino, Francisco Paulo De Crescenzo, Revisão Contratual – Onerosidade excessiva e Modificação contratual equitativa, São Paulo, Almedina, 2020, p. 24-39.

[6] Por exemplo, as sociedades de propósito específico são criadas em vista de um único empreendimento, encerrando-se após a sua conclusão.

[7] Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.

[8] Sobre esse particular, as Professoras Judith Martins-Costa e Paula Costa e Silva frisam, com base em Giorgio Oppo, que a tônica das obrigações duradouras é a relação entre tempo e adimplemento: “nos contratos duradouros, o tempo se apresenta não como modalidade acessória, mas como nota individualizadora da prestação” e “corresponde ao interesse contratual, que repousa na satisfação continuativa de uma necessidade estável. A duração é correlata à continuidade do interesse e de sua satisfação”. “A duração é própria função do contrato, no sentido de que o protrair-se do adimplemento por uma certa duração é pressuposto para que o contrato produza o efeito querido pelas partes e satisfaça as necessidades que o motivaram. É o caso, exemplificativamente (…) dos contratos de sociedade lato sensu considerado” (Crise e Perturbações no Cumprimento da Prestação. Estudo de Direito Comparado Luso-Brasileiro, São Paulo, Quartier Latin, 2020, p. 76-77).

[9] A caracterização dos pactos parassociais e sua função econômica pode ser encontrada em nosso Contratos entre SóciosInterpretação e Direito Societário, São Paulo, Quartier Latin, 2013, p. 38-41.

[10] Cf. Contratos entre Sócios…., cit. p. 42 e 75-76.

[11] Na síntese das Profas. Judith Martins-Costa e Paula Costa e Silva, a base do negócio jurídico pode ser descrita como “o estado geral das coisas ou conjunto de circunstâncias objetivas ou objetiváveis – como o jogo de vantagens e desvantagens, para ambas as partes, a finalidade da prestação, a sua utilidade para o credor, a natureza do negócio jurídico e as circunstâncias em que concluído – considerado pelas partes quando decidiram concluir o negócio jurídico, e cuja subsistência é necessária para que o contrato seja uma regulação dotada de sentido” (Crise e Perturbações no Cumprimento da Prestação. Estudo de Direito Comparado Luso-Brasileiro, cit., p. 67).

[12] Veja-se, a respeito, Pereira, Rafael Setoguti Julio, A Extinção do Acordo de Acionistas, São Paulo, Quartier Latin, 2019, p. 101-145.

[13] Naturalmente, caso haja a previsão de restrição de circulação de ações em artigos dos estatutos de sociedades anônimas fechadas (ex: direito de preferência), ela seguiria vigente.

[14] Villela, João Baptista, “Equilíbrio contratual….”. cit.