Nelson Eizirik**

O Projeto de Lei 4/2025, apresentado à sociedade brasileira em abril de 2024 como “Anteprojeto para a Atualização do Código Civil”, apresenta, conforme abalizada doutrina, inúmeros defeitos, dentre os quais: falta de sistematização; linguagem coloquial, a disfarçar a ausência de rigor técnico; insegurança jurídica, dado o grande número de expressões indeterminadas empregadas em seu texto; contradições entre suas normas; redação deficiente, com o uso de neologismos impressionistas que visam a dar ares de ineditismo a alguns de seus dispositivos; impacto econômico e custos desnecessários que criará para as empresas, com as inevitáveis demandas que receberão, quer pela confusa disciplina dos contratos, quer pela perigosa disciplina da responsabilidade civil, quer ainda pela preocupante disciplina do direito societário[1].

Enfim, o Projeto logra reunir um amontoado de disposições despidas de qualquer sistematicidade, subvertendo certezas jurídicas, valores e princípios já consagrados em nossa doutrina e jurisprudência e incentivando a criação de desnecessária litigiosidade.

Caso seja aprovado pelo Congresso Nacional, com a redação que apresenta atualmente, além de todos os efeitos nefastos acima mencionados, causará considerável impacto negativo para as companhias abertas e o mercado de capitais brasileiro.

Nos termos da Lei das S.A. (Lei nº 6.404/76), que constitui um diploma sistemático e bem redigido, quando o administrador da companhia ou seu acionista controlador, agindo ilicitamente, causa danos à companhia ou a seus acionistas, deverá indenizá-los. Nesse sentido, a Lei estabelece uma série de deveres aos administradores, assim como elenca um conjunto de exemplos de atos que constituem abusos pelo exercício ilegal do poder de controle.

Assim, por exemplo, quando o administrador de uma companhia pratica um ato, com culpa ou dolo, ou em infração à lei ou ao estatuto, pode gerar danos à companhia e/ou aos acionistas. Os danos sofridos pelos acionistas podem ser diretos ou indiretos. Os danos indiretos refletem perdas sofridas pela companhia e que, somente de forma indireta, impactam os patrimônios individuais. Com efeito, os danos sofridos pelos acionistas, no caso, que decorram de desdobramentos do dano acarretado à companhia, correspondem aos chamados danos indiretos, reflexos, ou “por ricocheteio”[2].

Embora os danos indiretos constituam, à evidência, modalidade de dano, não são indenizáveis. O dano indireto não autoriza a propositura de ação de responsabilidade por terceiro ou por acionista contra o administrador ou acionista controlador. Se o patrimônio da companhia sofre dano decorrente de ato ilícito do administrador ou controlador, a ação para haver indenização compete à própria companhia, na condição de titular do patrimônio que sofreu o dano. O acionista somente é ressarcido quando sofrer danos de forma direta, nos termos do §7º do artigo 159 da Lei das S.A[3].

A Lei das S.A., tendo em vista a necessária segurança jurídica no direito societário, adotou essa estrutura como base para os pedidos indenizatórios, uma vez que, caso autorizasse cada acionista a propor ações autônomas para obter reparação por danos indiretos, haveria o risco de: decisões contraditórias em processos idênticos, o que poderia ferir o princípio da igualdade entre os acionistas, previsto no seu artigo 109, parágrafo 1º[4]; enriquecimento indevido dos acionistas que, na hipótese de a companhia também ser reembolsada pelos prejuízos causados por administradores ou controladores, teriam seus patrimônios reparados tanto pela via direta como pela indireta; e desrespeito à autonomia reconhecida à pessoa jurídica e ao direito de ela própria resguardar, de forma independente, o patrimônio para o qual o conjunto de acionistas contribuiu[5].

O vigente Código Civil, em seu artigo 403, estabelece que a obrigação de indenizar somente inclui os danos emergentes e os lucros cessantes que decorram de forma direta e imediata da conduta do devedor. Para que se configure o nexo de causalidade e imponha-se a obrigação de indenizar, deve-se aferir a existência de um liame de necessariedade entre causa e efeito, de modo que o resultado danoso seja consequência direta do fato lesivo, conforme vem decidindo os tribunais[6].

Ademais, para que possa ser indenizado, o dano deve ser concreto, ou seja, aquele cuja ocorrência pode ser verificada; o dano hipotético ou eventual, por apresentar algum grau de incerteza quanto à sua consumação, não é passível de indenização.

Nas companhias abertas com ações negociadas em bolsa de valores, é possível que um ato praticado pelo administrador ou pelo acionista controlador produza impactos no patrimônio da sociedade e repercuta na cotação das ações, embora seja difícil atribuir apenas àquele ato a alteração no valor de mercado de tais valores mobiliários.

Com efeito, o mercado de ações, quer primário (lançamento de novos títulos), quer secundário (negociação de títulos já emitidos em bolsa ou no mercado de balcão) constitui um mercado de risco, no qual múltiplas causas podem afetar a cotação dos papéis nele negociados.

De um modo geral, a oscilação negativa do valor das ações reflete, embora não exclusivamente, perdas sofridas pela generalidade dos acionistas em virtude de sua participação no capital da sociedade, e que somente de forma indireta impacta os patrimônios individuais de cada acionista; assim, a perda patrimonial suportada por cada acionista constitui um dano indireto, reflexo do dano causado ao patrimônio social; tratando-se de dano indireto não é indenizável.

A jurisprudência de nossos tribunais é pacífica no sentido de que perdas decorrentes da oscilação de cotação das ações em bolsa de valores constituem danos indiretos, portanto não indenizáveis em ações propostas contra os administradores ou acionistas controladores, ou mesmo contra a companhia[7].

Na esfera arbitral, vale mencionar que, em Comunicado ao Mercado divulgado em 09.01.2.025, a Petrobras informou que, em procedimento instaurado na Câmara de Arbitragem do Mercado da B3, no qual os requerentes alegavam perdas financeiras causadas por falhas informacionais da companhia, a sentença considerou improcedente pedido de indenização por entender, entre outros motivos, que investidores não podem propor ação de indenização por danos indiretos, como são aqueles relacionados à desvalorização de suas ações em bolsa.

O Projeto de Lei 4/2.025, em seu artigo 944-B, “caput”, tem a seguinte redação: “A indenização será concedida, se os danos forem certos, sejam eles diretos, indiretos, atuais ou futuros”.

Temos observado, nos últimos anos, um crescente número de ações, principalmente na esfera arbitral, contra companhias abertas, por alegados danos sofridos por acionistas decorrentes da desvalorização de seus títulos em bolsa, danos tipicamente indiretos.

Ainda que, em nossa opinião, as companhias não possam figurar no polo passivo de tais ações, por absoluta falta de previsão na Lei das S.A., uma vez que ela disciplina, apenas, a responsabilidade dos administradores e acionistas controladores, a matéria ainda não está pacificada.

Muitos investidores, ou mesmo associações de investidores, tem proposto ações de indenização na esfera arbitral contra companhias abertas por alegadas perdas decorrentes da oscilação negativa na cotação de seus papéis em bolsa.

Tais ações são de manifesta inspiração na teoria da “Fraude no Mercado”, desenvolvida nos Estados Unidos, a qual estabelece uma série de presunções em favor do investidor de bolsa que sofre danos consistentes na oscilação da cotação de suas ações. Tal teoria, criada pelos tribunais norte-americanos, a nosso ver aqui inaplicável, propiciou naquele país uma litigiosidade de grandes dimensões, criando uma verdadeira “indústria de ações judiciais”, que, no mais das vezes, são resolvidas mediante acordos milionários[8].

Pode-se perfeitamente imaginar que, mantida a redação do artigo 944-B, qualquer investidor que tiver prejuízos em bolsa, decorrentes da desvalorização de suas ações, procurará um pretexto qualquer para demandar contra a companhia emissora, seus administradores ou acionistas controladores.

Infelizmente não estou exagerando: o inacreditável “caput” do artigo 944-B do Projeto não exige que o ato seja ilícito[9] para que a indenização “seja concedida” (SIC). Ou seja, basta o dano, sem necessidade de se comprovar o ato ilícito do autor e o nexo de causalidade, já que danos indiretos são tidos como indenizáveis.

O Projeto, ao prever indenização por danos indiretos, sem a comprovação da ilicitude do ato do autor, e sem o nexo causal, na contramão da jurisprudência de nossos tribunais, poderá propiciar uma verdadeira “enxurrada” de ações contra companhias abertas, incentivando a litigiosidade contra as empresas e aumentando a insegurança jurídica no mercado de capitais.

** Advogado no Rio de Janeiro e em São Paulo, Professor da Faculdade de Direito da FGV-RJ.

[1] JUDITH MARTINS-COSTA, FABIO FLORIANO MELO MARTINS, MARIANA CONTI CRAVEIRO e RAFAEL BRANCO XAVIER, “O que é um Código Civil?”. In: Boletim IDiP, volume XLVII. Disponível em: https://canalarbitragem.com.br/xlvii-do-boletim-idip-iec/o-que-e-um-codigo-civil/.

[2] ANA CAROLINA WEBER. Responsabilidade Societária: Danos Causados pelos Administradores. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 215-234.

[3] In verbis: Art. 159. Compete à companhia, mediante prévia deliberação da assembléia-geral, a ação de responsabilidade civil contra o administrador, pelos prejuízos causados ao seu patrimônio. […] § 7º A ação prevista neste artigo não exclui a que couber ao acionista ou terceiro diretamente prejudicado por ato de administrador.

[4] § In verbis: 1º As ações de cada classe conferirão iguais direitos aos seus titulares.

[5] MARCELO VIEIRA VON ADAMEK. Responsabilidade dos Administradores de S/A e as Ações Correlatas. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 391-392

[6] STJ, 3ª Turma, Embargos de Declaração no Agravo Regimental em Recurso Especial nº 790.643- DF, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, julgado em 23.06.2016.

[7] Nesse sentido, ver as seguintes decisões: (i) Superior Tribunal de Justiça, 4ª Turma, Recurso Especial nº 1.214.497 – RJ (2010/0171755-3), Rel. Min. João Otávio de Noronha (Relator para acórdão Ministro Raul Araújo), j. em 23.09.2014; (ii) Superior Tribunal de Justiça, 3ª Turma, Agravo Interno no Recurso Especial n° 1.787.426 – RS (2018/0336398-0), Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. em 30.11.2020; (iii) Superior Tribunal de Justiça, 3ª Turma, Recurso Especial n° 1.014.496 – SC (2007/0294327-4), Rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 04.03.2008; (iv) Superior Tribunal de Justiça, 4ª Turma, Recurso Especial n° 1.327.357 – RS (2012/0117592-8), Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. em 20.04.2017; (v) Superior Tribunal de Justiça, 3ª Turma, Recurso Especial n° 1.741.678 – SP (2011/0299244-0), Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. em 12.06.2018; (vi) Superior Tribunal de Justiça, 4ª Turma, Recurso Especial n° 1.572.055 – SP (2019/0123293-8), Rel. Min. Raul Araújo, j. em 21.03.2022; (vii) Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Apelação Cível n° 5010110-30.2015.4.04.7200/SC, Rel. Des. Federal Vânia Hack de Almeida, j. em 04.06.2019; (viii) Superior Tribunal de Justiça, 3ª Turma, Agravo Interno no Recurso Especial n° 1.787.426/RS (2018/0336398-0), Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. em 30.11.2020, publicado em 03.12.2020; e (ix) Superior Tribunal de Justiça, 4ª Turma, Agravo Interno no Recurso Especial nº 1.798.907 – RJ (014/0155420-8), Rel. Min. Raul Araújo, j. em 21.10.2024.

[8] A propósito, o nosso artigo “A ‘fraud-on-the-market theory’ pode ser aplicada no Direito Societário brasileiro?”. In: Alberto Venancio Filho, Carlos Augusto da Silveira Lobo e Luiz Alberto Colonna Rosman (Org.). Lei das S.A. em seus 40 anos. Rio de Janeiro: Gen Forense, 2017, p. 85 e seguintes.

[9] Assim também o novo art. 927 proposto, in verbis: “Art. 927. Aquele que causar dano a outrem fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único: Haverá dever de reparar o dano daquele: I – cujo ato ilícito o tenha causado, nos termos do parágrafo único do art. 186 deste Código; II – que desenvolve atividade de risco especial; III – responsável indireto por ato de terceiro a ele vinculado, por fato de animal, coisa ou tecnologia a ele subordinado”.