Mairan Gonçalves Maia Junior**

Sumário. Introdução. 1. Os conceitos vagos e o compartilhamento de direitos na sucessão do cônjuge e do convivente. 2. O comprometimento da igualdade entre os descendentes na legítima.

As regras de sucessão, por sua relevância e repercussão social, sempre despertaram a atenção e o cuidado dos responsáveis por sua elaboração, em particular, quanto à definição dos critérios de designação dos sucessíveis e da ordem de vocação sucessória, pois como é sabido, a continuidade é o leitmotiv da transmissão mortis causa.

O PL 04/2025 propõe alterações nos quatro Títulos que compõem o Livro das Sucessões: Da Sucessão em Geral, Da Sucessão Legítima, Da Sucessão Testamentária e Do Inventário e da Partilha. Não obstante a importância da disciplina do fenômeno sucessório, não se tem debatido suficientemente as propostas formuladas. O presente artigo pretende destacar algumas questões referentes à disciplina da sucessão legítima, a partir da ótica da segurança jurídica, considerando a natureza constitucional do direito de herança, expressamente previsto no art. 5º, inciso XXX, da Constituição Federal e as propostas de alteração normativa veiculadas pelo PL 04/2025.

  1. Os conceitos vagos e o compartilhamento de direitos na sucessão do cônjuge e do convivente

No âmbito da sucessão legítima, dois são os pontos mais sensíveis a exigir a atenção do legislador. O primeiro, a sucessão do cônjuge e do convivente e sua eventual concorrência com descendentes e ascendentes. O segundo, a legítima em seus aspectos subjetivo e objetivo.

A solução proposta pelo PL 04/2025 para a sucessão do cônjuge e do convivente está longe de propiciar as condições necessárias a assegurar a sobrevivência condigna do cônjuge ou do convivente supérstite. O reposicionamento do cônjuge e do convivente na ordem de vocação sucessória, após os descendentes e os ascendentes, à semelhança do Código Civil de 1916, prejudica-os bastante, principalmente nos casos em que o casal optar pelo regime da separação de bens ou o cônjuge ou convivente sobrevivente não tiver patrimônio próprio, hipóteses bastante frequentes, porque, atualmente, as parcerias de conjugalidade não guardam a mesma estabilidade característica da época da promulgação do Código Civil de 1916, fator que inibe a formação de patrimônio comum.

Estatisticamente, no Brasil, as mulheres têm maior expectativa de vida que os homens, e a alteração das regras de previdência, tanto no setor privado como no público, acarretaram sensível redução no valor dos benefícios previdenciários pagos a título de pensão. Deste modo, aumenta a importância da existência de patrimônio apto a propiciar ao cônjuge sobrevivente recursos suficientes a enfrentar as adversidades da terceira idade com dignidade.

A solução do usufruto, prevista pelo art. 1.850, parágrafo primeiro, é desfavorável tanto para o cônjuge quanto para os herdeiros, pois, na verdade, submete o cônjuge à discricionariedade judicial, com base em conceitos extremamente vagos e questionáveis (“insuficiência de recursos ou de patrimônio”) e, consequentemente, gera incerteza e insegurança quanto à sucessão[1]. O PL cria a figura do “usufruto judicial”, o qual pode incidir sobre “determinados bens da herança”, ou seja, podem ser objeto do “usufruto” referido quaisquer bens da herança, incluindo empresas. O art. 1.850, parágrafo primeiro, não estipula limitação em relação ao percentual de bens da herança que pode ser objeto do referido “usufruto judicial”. A análise dos critérios previstos pela regra depende, exclusivamente, da subjetividade do magistrado, à luz dos conceitos vagos acima mencionados, os quais não trazem nenhum elemento objetivo que permita sua melhor definição.

Alega-se, como solução ao problema da sucessão do cônjuge e do convivente, a suficiência das alterações propostas nas regras de regime de bens. Entretanto, essas não atendem adequadamente às finalidades visadas pela sucessão. As regras dos regimes de bens objetivam a disciplina patrimonial do casal na vigência do matrimônio e da união estável e são incidentes no momento das respectivas dissoluções. Entretanto, não são vocacionadas para resolver as questões patrimoniais próprias da sucessão mortis causa. Trazem, ainda, o inconveniente de não apresentar critério uniforme e geral para a sucessão do cônjuge, pois dependerá do regime patrimonial adotado em cada caso concreto. Outro ponto desfavorável é a possibilidade de que os cônjuges pactuem a incomunicabilidade de salários e outros rendimentos por meio de pacto antenupcial, obstando a formação de patrimônio mínimo comum.

A solução prevista é, ainda, detrimentosa aos demais herdeiros legítimos ou testamentários que podem ficar privados da fruição total ou parcial de seus quinhões hereditários por tempo ilimitado, pois o usufruto concentra o conteúdo econômico do direito de propriedade e poderá subsistir por tempo indefinido.

Indiscutivelmente, um dos pontos mais difíceis nas regras da sucessão legítima é a busca do equilíbrio na concorrência sucessória entre cônjuge ou convivente sobrevivente e os descendentes. O Código Civil de 2002 utilizou-se, com esse objetivo, das regras dos regimes de bens, mas o resultado não foi positivo, lição que deveria ser bem apreendida.

Por isso, em virtude da preocupação social e da importância da definição segura e certa dos critérios norteadores da sucessão, deveria ser mantida a concorrência sucessória do cônjuge ou convivente sobrevivente com os descendentes, no primeiro grau da ordem de vocação sucessória, independentemente do regime de bens, concorrendo em relação a todos os bens da herança, assegurando-se a igualdade de quinhões aos herdeiros concorrentes, pois a isonomia é o critério por excelência consagrado em nossa Constituição Federal. Do mesmo modo, deveria ser conservada a concorrência com os ascendentes, tal como atualmente prevista. A clareza e a objetividade dessas soluções possibilitariam sua aplicação com o indispensável grau de segurança e certeza.

Neste ponto, vale mencionar as experiências italiana e francesa. Na Itália, a reforma realizada em 1975 (Lei n. 151, de 19.05.75) alterou a disciplina da sucessão da concorrência do cônjuge prevista no art. 542 do Código Civil Italiano (CCI), o qual passou a ter direito à propriedade dos bens integrantes da herança, sendo sua quota determinada de modo fixo, a depender do número de descendentes com quem concorrer, e não apenas a seu usufruto[2]. Aliás, o art. 540 do CCI traz como regra geral a atribuição de metade da herança do de cujus ao cônjuge. Ressalva, tão somente, as situações em que concorre com descendentes, o que demonstra a preocupação do legislador com a sucessão do cônjuge[3].

O art. 756 do Código Civil Francês (CCF) estabelece que o cônjuge será convocado a suceder, seja só, seja em concurso com outros parentes do de cujus (Le conjoint successible est appelé à la succession, soit seul, soit en concours avec les parents du défunt)[4]. Na concorrência com descendentes, o cônjuge pode escolher, quando da abertura da sucessão, entre receber o usufruto da totalidade dos bens da herança ou a propriedade de ¼ dos bens, se todos os descendentes forem comuns; ou a propriedade de ¼ se existir um ou mais descendentes exclusivos do de cujus, ex vi do art. 757 CCF: “Art. 757. Si l’époux prédécédé laisse des enfants ou descendants, le conjoint survivant recueille, à son choix, l’usufruit de la totalité des biens existants ou la propriété du quart des biens lorsque tous les enfants sont issus des deux époux et la propriété du quart en présence d’un ou plusieurs enfants qui ne sont pas issus des deux époux[5].

O exercício da faculdade conferida por lei quanto à opção entre o usufruto da herança e a propriedade de ¼ está condicionado ao fato de serem todos os herdeiros descendentes comuns, ou seja, descendentes do de cujus e do cônjuge supérstite.

A escolha quanto ao modo de exercício de seu direito a participar da herança é intransmissível, mas pode ser exercida de modo expresso ou tácito e provada por qualquer meio de prova (art. 758-2 CCF). Como faculdade, ela não pode ser imposta ao cônjuge, quer judicialmente, quer pelos outros herdeiros ou pelos credores do de cujus ou do próprio cônjuge sobrevivente. Evidentemente, a situação particular da sucessão é que permite ao cônjuge definir qual a melhor escolha: a propriedade de ¼ dos bens ou o usufruto de toda a herança. O direito de habitação e de uso dos móveis que guarnecem a residência do casal, garantido pelo art. 763 CCF, pode atuar como fator de desestímulo à opção pelo usufruto, a depender da situação concreta[6]. Note-se que o direito ao usufruto tem previsão legal e independe de discricionariedade judicial.

Assim, a solução propugnada pelo PL 04/2025 está na posição contrária dos códigos europeus, ao enfraquecer a posição sucessória do cônjuge, excluindo-o da concorrência com os descendentes e os ascendentes e condicionando o deferimento ou não do usufruto à discricionariedade judicial, exclusivamente. Deste modo, não se pode falar em direito do cônjuge, pois sua concessão depende de vontade de terceiros, no caso, o Juiz da causa. Não se pode ainda deixar de mencionar que a vagueza dos conceitos utilizados (“insuficiência de recursos ou de patrimônio”) estimula o conflito judicial.

A exclusão do cônjuge do rol de herdeiros necessários previsto pelo art. 1.845, como proposta pelo PL 04/2025, seria suficiente para atender às situações particulares de sucessão, em especial nas hipóteses de famílias recompostas, consagradas pela doutrina anglo-saxã pela expressão “Patchwork families”. Nesses casos, se o autor da herança desejasse, poderia excluir, por testamento, a participação do cônjuge da herança, ou limitá-la, de acordo com a sua vontade, resolvendo a contento as questões do planejamento sucessório, de modo a propiciar meios próprios de sobrevivência ao cônjuge supérstite e o equilíbrio na partilha do acervo hereditário.

Vale lembrar que as regras do Código Civil se destinam à disciplina da transmissão mortis causa em todo o país devendo atentar para as situações comuns e gerais, e não para os casos de exceção. Para esses, o ordenamento prevê os instrumentos adequados, como, por exemplo, a analogia, a interpretação extensiva e os princípios gerais do direito.

Outros direitos sucessórios do cônjuge e do convivente também são fragilizados, como, por exemplo, o direito real de habitação, previsto pelo art. 1.831 do CC/02, pois as propostas dos arts. 1.831-A e 1.832, o transformam em “direito de habitação compartilhado”.

O § 1º do art. 1831 procura tutelar os integrantes do agrupamento familiar ampliando o direito real de habitação aos “descendentes incapazes ou com deficiência, bem como ascendentes vulneráveis[7]. Por esse motivo, de difícil compreensão a genérica e aberta redação do art. 1.831-A que o estende às “pessoas remanescentes da família não conjugal[8], dando margem a que outros integrantes da família ampliada, como, cunhados, primos ou tios, possam ser considerados como titulares do direito real de habitação, mesmo sem ostentarem a qualidade de herdeiros.

A disposição banaliza o direito de habitação e desconsidera seus importantes efeitos como direito real limitador do conteúdo do direito de propriedade titularizado pelos herdeiros legítimos ou testamentários. Há, ainda, impropriedade na redação ao referir-se a “família não conjugal”. O direito das sucessões tem em atenção as pessoas dos herdeiros, e não outros integrantes do agrupamento familiar. A proposta gera forte potencial de conflitos.

O inciso III do art. 1.832 cria outro direito real de habitação para pessoas que não moravam no imóvel[9]. A disposição carece de sentido, pois pode vir a conflitar com os direitos das pessoas mencionadas no art. 1.831, sendo também causa para litígios, na medida em que herdeiro beneficiado pela previsão pode forçar sua morada conjunta com os legitimados do art. 1.831. Note-se que sua parte final dispõe: “manterem-se, com exclusividade, a título de direito real de habitação”. O artigo desconsidera o direito real de habitação previsto no art. 1.831 e não se compatibiliza com as finalidades do direito das sucessões.

Ademais, caso o herdeiro, quando da morte do autor da herança, habitasse na mesma residência e não tivesse imóvel próprio, a ele poderia ser reconhecido o direito real de habitação, nas condições previstas no art. 1.831.

  1. O comprometimento da igualdade entre os descendentes na legítima

O segundo ponto a ser destacado, entre as soluções propugnadas pelo PL 04/2025 para a sucessão de herdeiros legitimários, refere-se à possibilidade de tratamento diferenciado também com base em conceitos vagos e juridicamente indeterminados, aspecto que compromete a celeridade e a segurança indispensáveis à sucessão mortis causa.

O art. 1.846, parágrafo único, prevê possa o autor da herança majorar a legítima em até um quarto de modo a beneficiar “descendentes e ascendentes que sejam considerados vulneráveis ou hipossuficientes”[10]. A subjetividade, a vagueza e a imprecisão dos conceitos utilizados já comprometeriam, por si só, a segurança da aplicação de referida regra e desrespeitam o critério basilar que fundamenta a sucessão dos herdeiros legitimários desde a antiguidade clássica: a igualdade entre os descendentes ou os ascendentes chamados a suceder.

Porém, o mais importante é que a isonomia entre os filhos, constitucionalmente assegurada no art. 227, parágrafo 6º, da Constituição Federal, não se compatibiliza com os discrimens sugeridos no PL 04/2025. Ademais, o titular da herança pode, caso o deseje, dispor livremente dos bens da parte disponível para melhorar a solução hereditária de eventuais herdeiros vulneráveis ou hipossuficientes. O sistema já propicia solução para o problema, basta o titular da herança desejar fazê-lo, e, por isso, carece de razoabilidade a disposição normativa sugerida.

Não se trata, tão somente, de se utilizar conceitos vagos e abrangentes, mas de aplicá-los de modo inadequado e a situações que não são propícias ao seu uso, problema que permeia todo o PL 04/2025, mas que se torna mais grave no Livro das Sucessões, v.g. a previsão da exclusão do herdeiro legitimário por deserdação por “ofensas psicológicas”, nas propostas de alteração dos arts. 1.962 e 1.963.

Na próxima semana, esse Boletim trará considerações acerca da disciplina proposta pelo PL 04/2025 para a sucessão testamentária – que, tal qual a sucessão legítima até aqui examinada, padece de graves problemas –, concluindo que tantos desacertos não atendem ao que esperam cidadãos e cidadãs.

* Citar como: MAIA JUNIOR, Mairan Gonçalves. A (In)segurança jurídica nas regras de sucessão legítima e as propostas do Projeto de Lei n. 04/2025. In: MARTINS-COSTA, Judith; MARTINS, Fábio; CRAVEIRO, Mariana; XAVIER, Rafael (Orgs.). Boletim IDiP-IEC. Vol. LXXV, Canela-São Paulo. Publicado em: 5.11.2025

** Professor visitante do Instituto de Direito Europeu e Comparado da Faculdade de Direito da Universidade de Oxford, Reino Unido. Estágio Pós-doutoral realizado no Instituto Max-Planck de Direito Internacional Privado e Comparado, em Hamburgo, Alemanha. Professor Livre-Docente em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutor em Direito, na área de Direito Civil e Mestre em Direito, na área de Direito das Relações Sociais, títulos obtidos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Assistente-Doutor, sendo Professor dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação, no núcleo de Direito Civil, dessa Universidade. Professor dos Cursos de Especialização em Contratos e Processo Civil da PUC/COGEAE. Pesquisador no Max-Planck-Institut für Europäische Rechtsgeschichte, Frankfurt, Alemanha. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará, graduado em Administração de Empresas, com habilitação em Administração Pública pela Universidade Estadual do Ceará (1987). Desembargador Federal do TRF da 3ª Região. Juiz do TRE-SP (2025-2027). Presidente do TRF da 3ª Região (2020-2022). Vice-Presidente do TRF da 3ª Região (2016/2018). Diretor Presidente da Escola de Magistrados do TRF da 3ª Região (2012/2014). Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, (2007/2009). Juiz Federal (1992-1999), Juiz do Estado de São Paulo (1992).

[1] In verbis: § 1º Sem prejuízo do direito real de habitação, nos termos do art. 1.831 deste Código, o juiz instituirá usufruto sobre determinados bens da herança para garantir a subsistência do cônjuge ou convivente sobrevivente que comprovar insuficiência de recursos ou de patrimônio.

[2] MAIA JUNIOR, Mairan Gonçalves. Conjuntos Normativos de Equilíbrio na posição sucessória do cônjuge, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2025, p. 207.

[3] MAIA JUNIOR, Mairan Gonçalves. Conjuntos Normativos de Equilíbrio na posição sucessória do cônjuge, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2025, p. 211.

[4] MAIA JUNIOR, Mairan Gonçalves. Conjuntos Normativos de Equilíbrio na posição sucessória do cônjuge, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2025, p. 174.

[5] Em tradução livre: “757. Se o cônjuge pré-morto deixa filhos ou descendentes, o cônjuge sobrevivente recebe por herança, à sua escolha, o usufruto da totalidade dos bens existentes, ou a propriedade de um quarto dos bens quando todos os filhos são comuns e a propriedade de um quarto na presença de um ou vários filhos que não sejam comuns”.

[6] MAIA JUNIOR, Ob. cit. p. 174.

[7] “§ 1º Se ao tempo da morte, viviam juntamente com o casal descendentes incapazes ou com deficiência, bem como ascendentes vulneráveis ou, ainda, as pessoas referidas no art. 1.831-A caput e seus parágrafos deste Código, o direito de habitação há de ser compartilhado por todos”.

[8] “Art. 1.831-A. Terão direito de habitação sobre o imóvel de moradia do autor da herança, as pessoas remanescentes da família parental, podendo habilitar-se para esse direito os que demonstrarem o convívio familiar comum por prova documental, conforme anotações feitas na forma do § 1º do art. 10 deste Código”.

[9] “III – se a herança não comportar as soluções previstas nos §§ 1º e 2º e ela consistir apenas em único imóvel de morada do autor da herança, terão as pessoas apontadas no caput deste artigo direito de ali manterem-se, com exclusividade, a título de direito real de habitação”.

[10] Parágrafo único. O testador, se quiser, poderá destinar até um quarto da legítima a descendentes e ascendentes que sejam considerados vulneráveis ou hipossuficientes.