Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França***

O presente artigo tem por objeto analisar o conceito de empresa no projeto de novo Código Civil brasileiro, que assim a define:

“Art. 966. Considera-se empresa a organização profissional de fatores de produção que, no ambiente de mercado, exerce atividade de circulação de riquezas, com escopo de lucro, em prestígio aos valores sociais do trabalho e do capital humano.”

  • 1º Exercem atividade empresarial o empresário e a sociedade empresária.
  • 2º Não se considera atividade empresarial o exercício de profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda que com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se requerida a sua inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis, ressalvadas as obrigações assumidas perante terceiros antes de registrada a empresa.”

Esse conceito constitui, com a devida vênia, um total retrocesso em relação ao conceito de empresa adotado no Código Civil.

Em primeiro lugar, o projeto considera empresa a “organização profissional que “… exerce atividade de circulação de riquezas”, esquecendo-se, curiosamente, de que a organização profissional que produz riquezas, economicamente falando, também é considerada empresa.

Retorna-se ao tempo do Código Comercial de 1.850, que considerava comerciante (empresário) aquele que exercia a mercancia[1] – basicamente, a intermediação, compra e venda para revenda –, conceituada no art. 19 do Regulamento 737, também de 1850.[2]

Pior ainda. O Regulamento 737 também considerava mercancia algumas empresas produtoras de riquezas, como as “emprezas de fábrica”.

Na propalada reforma, nem isso. Somente as empresas que exerçam atividade de circulação de riquezas.

Mas ainda há outro retrocesso.

O conceito adotado pelo projeto considera a empresa como os comercialistas antigamente a conceituavam, ou seja, do ponto de vista econômico, como a organização dos fatores de produção (natureza – matéria-prima etc, capital, trabalho – mão de obra – e, hoje, tecnologia).

Sem falar que o fator organização se encontra completamente superado[3][4], Alberto Asquini já demonstrara, em 1943[5], em lição expressamente acolhida pelo Prof. Sylvio Marcondes, autor do Livro da Atividade Negocial (depois chamado de “Direito da Empresa” – Livro II, da Parte Especial do Código Civil), que o conceito econômico de empresa é poliédrico, ora apresentando-se perante o direito como sujeito de direito (empresário ou sociedade empresária), ora como objeto de direito (estabelecimento), ora como fato jurídico (atividade econômica voltada à produção de bens ou serviços para o mercado[6]).[7]

Independentemente de perquirir se essa visão é correta ou não, do ponto de vista doutrinário (não estou entrando aqui nesse mérito), o fato é que o Código Civil a acolheu em vários artigos[8], prevalecendo, no entanto, o conceito de empresa como atividade, ou seja, sob o seu perfil funcional, deduzido dos arts. 966 e 982 do codex.

Com efeito, os mencionados dispositivos têm a seguinte redação:

“Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.”

Art. 982. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples, as demais.”[9]

Dessa forma, conceituada como organização dos fatores da produção, a empresa, na “soi disant” reforma, atrita com inúmeros outros dispositivos do próprio Código[10], que enxergam a empresa como atividade, desfigurando completa – e desnecessariamente – a coerência que deve imperar nessa fundamental matéria.

E essa matéria é fundamental porque releva inclusive para efeitos de recuperação judicial ou extrajudicial: o que significa organização, para efeitos do projetado art. 966 e seu parágrafo primeiro?

Sujeito ou objeto de direito?[11]

Ao que se deduz do § 1º, sujeito de direito. Mas uma organização dos fatores de produção pode ser sujeito de direito? O que constitui tal organização, em direito?

Como se vê, andamos e andamos, mas voltamos ao ponto de partida. Empresa não é sujeito de direito. Essa, justamente, é a mais contundente – e irrespondível – crítica que se fazia à teoria da empresa em si (Unternehmen an sich), que pretendia que a empresa tivesse um interesse próprio, distinto dos homens que a compunham.[12]

E aí cria-se, talvez, um sério problema: o empresário ou a sociedade empresária que não se utilizar do trabalho alheio (um dos fatores da produção), pode ou não pode pleitear a recuperação judicial ou extrajudicial, que visa à preservação da empresa (art. 47 da Lei 11.101/05)?

Como se percebe, a alteração do art. 966 do Código Civil vigente é totalmente desnecessária, só servindo para criar mais problemas ainda do que resolvê-los.

Mas o Projeto ainda pretende mexer “no que está ganhando”.

Explica-se: o Projeto pretende que a sociedade simples sirva agora apenas como um tipo societário, reintroduzindo a sociedade civil (!):

“Art. 983. A sociedade empresária deve constituir-se segundo um dos tipos regulados nos arts. 1.052 a 1.089 deste Código; a sociedade civil pode constituir-se de conformidade com um desses tipos, e, não o fazendo, subordina-se às normas da sociedade simples.

Não se entende, minimamente, a razão dessa reintrodução.

Todo mundo sabe no que consiste a sociedade simples: é a sociedade que tem por objeto atividade intelectual de natureza literária, artística ou científica (ou atividade rural, cf. arts. 982, c/c arts. 966, 971 e 984 do Código Civil).

E essa atividade não necessita de qualquer investigação jurídica para ser compreendida. Ela deve constar do contrato social, como há mais de uma década, esclareceu, superiormente, o Prof. Alfredo de Assis Gonçalves Neto:

“(…) a sociedade celebrada entre quem exerce atividade intelectual ou entre profissionais liberais tendo por objeto atividade que não é própria de empresário – ou, por outra, não tendo por objeto o exercício de atividade própria de empresário – deve ser classificada como sociedade simples.

Essa conclusão independe de qualquer elemento de ordem subjetiva: figurando no contrato social que determinada sociedade tem por objeto o exercício de atividade intelectual, ela será simples. É o que basta, aí não influindo fatores externos, como quantidade, organização, número de colaboradores ou auxiliares etc., já que o objeto é determinado na assinatura do ato constitutivo da sociedade – antes, portanto, de ser dado início à sua consecução, sendo impossível aferir, em tal momento, como ela irá desenvolver a atividade descrita no contrato social. A sociedade que nasce para exercer atividade intelectual, ainda que não a exerça ou que o faça de maneira eventual, desorganizada ou, ainda, muito bem organizada, é e será sempre simples, não tendo como ser classificada no rol das empresárias.

Fixado o critério distintivo no objeto social (e não no modo de atuar no mercado, como se dá com relação à pessoa natural do empresário), a natureza da sociedade não muda segundo sua performance financeira, estrutura ou organização; isso só ocorrerá na eventualidade de, em alteração contratual, mudar seu objeto social”.[13]

 

Não tem qualquer sentido, pois, a mudança pretendida, cujo objetivo parece ser apenas o de mudar para mudar, com a devida vênia.

Com efeito, a essa altura, qual a razão de

*** Professor Sênior de Direito Comercial da Universidade de São Paulo.

[1] “Art. 4 – Ninguém é reputado comerciante para efeito de gozar da proteção que este Código liberaliza em favor do comércio, sem que se tenha matriculado em algum dos Tribunais do Comércio do Império, e faça da mercancia profissão habitual (artigo nº 9).”

[2] “Art. 19. Considera-se mercancia: § 1º A compra e venda ou troca de effeitos moveis, ou semoventes para os vender por grosso ou a retalho, na mesma especie ou manufacturados, ou para alugar o seu uso; § 2º As operações de cambio, banco, e corretagem; § 3º As emprezas de fabricas; de commissões; de depositos; de expedição, consignação, e transporte de mercadorias; de espectaculos publicos; § 4º Os seguros, fretamentos, risco, e quaesquer contractos relativos ao commercio maritimo; § 5º A armação e expedição de navios.”

[3] Cf. ERASMO VALLADÃO AZEVEDO E NOVAES FRANÇA, “A sociedade simples”, in Tratado de Direito Empresarial (coord. Modesto Carvalhosa), vol. II, Capítulo X, SP: RT, 3ª ed., 2022, pp. 233-243, com base nas lições de VINCENZO BUONOCORE, PIERGIUSTO JAEGER, FRANCESCO DENOZZA, ALBERTO TOFFOLETTO, TULLIO ASCARELLI e ALFREDO DE ASSIS GONÇALVES NETO.

[4] Pense-se no exemplo dado por VINCENZO BUONOCORE: “Pode-se, neste ponto, concluir o discurso, precisando que, para fins da essencialidade, ocorre a empresa igualmente quando, de um lado, haja simples organização de bens e não destes e das energias laborativas em conjunto – bastando, pois, que haja estabelecimento (como complexo de capitais e de bens) predisposto ao exercício da empresa e não sendo indispensável que haja a organização do trabalho de outrem – e, de outro lado, que a atividade se desenvolva também com o auxílio de empregados, mas sem o emprego de instrumentos materiais. (…) À luz de tais critérios, é empresa também aquela na qual o empresário exerce a atividade utilizando somente o fator capital e o próprio trabalho, sem criar nenhuma organização intermediária do trabalho de outrem, como – é exemplo clássico que se traz em apoio – no caso de uma lavanderia automatizada, recte movida a fichas, que ao menos usualmente, não ocupa nenhum funcionário” (L’Impresa. Turim: G. Giappicheli Editore, 2002. p. 125-126, itálicos nossos).

No mesmo sentido, JAEGER, DENOZZA e TOFFOLETO: “Quando se enfrentaram os problemas práticos de interpretação desta norma, a primeira concepção que entrou em crise foi aquela da empresa como organização do trabalho. Fez-se um exemplo deste tipo: suponhamos que haja um senhor que produz bens e serviços com cinco funcionários. Este é seguramente um empresário (…) A um certo ponto esse senhor compra uma máquina que faz o trabalho dos cinco funcionários e, dessa forma, substitui os cinco pela máquina que opera. Pode-se dizer que não é mais um empresário porque não tem uma organização de trabalho? Evidentemente, não. Assim sendo, a organização do trabalho é uma organização que em uma empresa normalmente existe, mas que não é absolutamente essencial. Não se pode dizer que não há uma empresa se falta a organização de trabalho” (Appunti di diritto commerciale – Impresa e Società. 7. ed. Milão: Giuffrè, 2010. p. 19).

[5] Os Perfis da Empresa, tradução de FÁBIO KONDER COMPARATO, RDM 104/109.

[6] A propósito do conceito de atividade (e ato), cf. o genial Capítulo 7 do Corso di Diritto Commerciale de TULLIO ASCARELLI, denominado “O empresário”, traduzido para o português pelo Prof. FÁBIO KONDER COMPARATO na RDM 109/183.

[7] “O conceito econômico de empresa – como organização dos fatores da produção de bens ou de serviços, para o mercado, coordenada pelo empresário, que lhe assume os resultados – tem sido fonte de contínua discussão sobre a natureza jurídica da empresa, entre os autores que já não consideram suficiente a lição de Vivante, aliás consagrada na doutrina brasileira, de que ‘o direito faz seu aquele conceito econômico’. Entretanto, suscitada na hermenêutica dos códigos comerciais do tipo francês, e acirrada pela exegese do novo código civil italiano, a disputa encontrou afinal seu remanso. Segundo esclareceu Asquini – apresentando o fenômeno econômico de empresa, perante o direito, aspectos diversos, não deve o intérprete operar com o preconceito de que ele caiba, forçosamente, num esquema jurídico unitário, de vez que empresa é conceito de um fenômeno econômico poliédrico, que assume, sob o aspecto jurídico, em relação aos diferentes elementos nele concorrentes, não um, mas diversos perfis: subjetivo, como empresário, funcional, como atividade; objetivo, como patrimônio; corporativo como instituição” (cf. SYLVIO MARCONDES, Problemas de Direito Mercantil, Max Limonad, 1970, p. 136/137, destaques nossos; Exposição de Motivos Complementar do Anteprojeto de Código Civil).

[8] Por exemplo, em vários dispositivos o Código Civil tomou empresa como sinônimo de empresário ou sociedade empresária: arts. 931 (as “empresas” respondem, independentemente de culpa), 1.178 (“atividade da empresa”), 1187 (“indústria ou comércio da empresa”).

[9] Esse perfil também foi adotado na LSA: “Art. 2º Pode ser objeto da companhia qualquer empresa de fim lucrativo, não contrário à lei, à ordem pública e aos bons costumes”. Evidentemente, “empresa” está aí por atividade econômica voltada para o mercado.

[10] Arts. 971, 972, 973, 974, §§ 1º e 2º, 1.142 e §§ 1º, 2º e 3º, 1.155, 1.172, 1.184 e 1.188.

[11] Cf. o pertinente questionamento ao projeto, feito pelo eminente Prof. JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, catedrático de Direito Comercial da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, publicado no jornal eletrônico Migalhas, de 26.3.25: “Aqui importa perguntar porquê a alteração do originário art. 966, que define empresário (e, por dedução, empresa), qual a utilidade, na economia do citado Livro II, da definição de empresa. Não vislumbro resposta satisfatória. Tanto mais porque me parece que a nova definição de empresa é incongruente com o disposto em outras normas do Livro II. Por exemplo, no art. 1142: «Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado para o exercício da empresa». Na definição do art. 966 [o insigne Mestre está se referindo ao art. 966 do projeto de novo Código Civil], a empresa é organização de bens, e é ela que exerce certa atividade (https://www.migalhas.com.br/coluna/novos-horizontes-do-direito-privado/427042/sobre-as-sociedades-limitadas-no-projeto-de-alteracoes-ao-codigo-civil, destaques nossos)

[12] Cf. L’interesse sociale, “O Interesse Social”, de PIERGIUSTO JAEGER, tradução de José Estevam de Almeida Prado, revisão de Daniel de Avila Vio, SP: Quartier Latin, 2022, n. 6, p. 57-59.

[13] Temas de direito societário e empresarial contemporâneos, coord. MARCELO VIEIRA VON ADAMEK, Malheiros Editores, 2011, p. 49.