Daniel Dias**
Introdução
Muito tem sido escrito sobre a proposta de Reforma do Código Civil. E com razão. Esse é um dos principais temas do direito da atualidade. A alteração da lei fundamental do direito privado concerne a todos, sendo um dever funcional de todo privatista contribuir para esse debate. Já dei uma primeira contribuição no campo da responsabilidade civil, escrevendo sobre o art. 945 do, à época, Anteprojeto de Reforma do Código Civil, que trata do tema da corresponsabilidade do lesado[1].
Uma parte da proposta de Reforma sobre a qual se tem falado menos é a parte geral do direito das obrigações. Por conta disso, e com a intenção de contribuir para a discussão, este breve texto enfocará esse campo.
Na parte geral do direito das obrigações, relevam não só as propostas de alteração presentes no PL 4/2025, mas também as ausentes. Aqui abordarei, portanto, omissões do PL relativas a 4 pontos que considero problemáticos do CC, os quais deveriam ser alterados legislativamente, pois penso que o PL acaba sendo omisso ao não os abarcar, especialmente pela imensidão da Reforma proposta[2].
1) Obrigação de dar coisa incerta: dever de entregar o termo médio
O primeiro ponto diz respeito às obrigações de dar coisa incerta, uma das modalidades obrigacionais mais relevantes para a vida prática, pois é ela que regula grande parte das transações comerciais, em especial as compras e vendas de mercadorias genéricas.
O art. 244 do CC dispõe que “nas coisas determinadas pelo gênero e pela quantidade, […]; [o devedor] não poderá dar a coisa pior, nem será obrigado a prestar a melhor.” Então, por exemplo, se uma pessoa se obrigar a entregar uma garrafa de vinho (quantidade) da própria adega (gênero), e nessa adega houver garrafas de vinho de cinco qualidades distintas, pelo art. 244, o devedor não poderia entregar o vinho de quinta qualidade, nem ser obrigado a entregar o de primeira qualidade. Contudo, ele poderia entregar uma garrafa de quarta qualidade.
Parte da doutrina, porém, critica há tempos essa leitura do art. 244. É já célebre a censura de Silvio Rodrigues a esse dispositivo, dizendo acreditar “não ter sido feliz o legislador na redação desse preceito legal. Pela maneira como vem formulado, pode ser entendido como permitindo que o devedor entregue as piores coisas do gênero, com exceção da última, o que decerto não ocorreu ao legislador, nem se apresenta como solução justa. Poder-se-ia dizer que, não dando a pior coisa, pode o devedor entregar as que seguirem àquela, em sua desvalia. Assim, se um criador vender dez reses de seu rebanho de mil, facultado lhe seria escolher as onze menos boas e entregar dez delas, excluindo a pior” [3].
Por conta disso, a doutrina é unânime em afirmar que o devedor deve entregar o “termo médio”, ou seja, a coisa de qualidade média. Assim, no exemplo dado, o devedor não poderia entregar uma garrafa de vinho de quarta qualidade, sendo obrigado entregar uma garrafa de vinho de terceira qualidade, que corresponde ao termo médio em qualidade dos vinhos disponíveis na adega.
Para essa interpretação restritiva, os autores se utilizam de diversos fundamentos: “vontade da lei”, “vontade do legislador”, “espírito de justiça” [4], interpretação sistemática com o art. 1.929 do CC[5], princípio da equivalência das prestações[6] (?), boa-fé e, até mesmo, a literalidade do dispositivo[7] (!) – fundamento este último que gera perplexidade.
Enfim, se o termo médio é a solução defendida pela unanimidade da doutrina e se o texto não reflete a norma que dele se extrai, em uma Reforma tão abrangente, por que não alterar o texto legal e solucionar a questão? No BGB, por exemplo, a regra está posta de maneira mais clara: “§ 243. Uma pessoa que deve uma coisa designada somente pelo gênero terá de entregar uma coisa de tipo e qualidade médias.”
Esta é, portanto, uma primeira omissão do PL 4/2025.
2) Obrigação de dar coisa incerta: contradição sobre o momento da concretização
Nas obrigações de dar coisa incerta, o fato de a coisa não ser determinada, mas apenas determinável, impõe a necessidade de um ato que direcione o objeto mediato da obrigação a apenas uma coisa e possibilite, assim, o cumprimento do dever obrigacional. Esse ato recebe diferentes nomes entre os autores: individualização[8], concentração[9] e concretização[10].
Em tese, esse ato pode ocorrer em vários momentos distintos. Por exemplo, quando o devedor escolhe a coisa a ser entregue, ou quando a separa da coletividade, ou quando informa o credor da escolha e/ou separação, ou na entrega da coisa, entre possíveis outros.
O CC, por sua vez, trata da questão em dois diferentes dispositivos, estabelecendo marcos diversos, o que gera contradição e insegurança. De um lado, o art. 245 dispõe que, a partir da cientificação da escolha pelo credor, vigorará o disposto na seção de obrigações de dar coisa certa; de outro, o art. 246 prevê que, antes da escolha, não pode o devedor alegar perda ou deterioração da coisa. Então, fica a questão: a concretização se dá com a escolha da coisa pelo devedor ou apenas com a sua ciência pelo credor?
A incoerência entre os dispositivos salta aos olhos. Tanto que, logo após a aprovação do CC, foi apresentada proposta para alterar o art. 246, substituindo “Antes da escolha…” por “Antes de cientificado da escolha o credor…” (PL n. 6.960).
A doutrina conclama o legislador a solucionar essa incoerência, enquanto propõe a solução possível por meio da interpretação sistemática dos dispositivos. Segundo Francisco Medina, “quanto ao erro de confecção do art. 246, é de se esperar que o legislador venha a corrigi-lo no futuro, a fim de tornar o regulamento vigente o mais claro possível. Enquanto isso não ocorrer, basta recorrer à interpretação sistemática dos arts. 245 e 246 para compreender que na primeira parte do último dispositivo o legislador disse menos do que realmente pretendia, ou seja, onde ele exigiu somente a escolha (‘Antes da escolha…’), deve-se considerar abrangida também a necessidade de cientificar o credor, como se estivesse escrito ‘Antes de cientificado o credor da escolha…’.”[11]
Enfim, diante de uma incoerência tão clara de dispositivos, por que um PL tão abrangente não propôs a alteração do art. 246 e resolução da questão?
Mais uma omissão do PL 4/2025.
3) Sobreposição entre os arts. 317 e 478 do CC
Outra omissão do PL 4/2025 é em relação ao tratamento confuso dos casos de alteração das circunstâncias ou, conforme nomenclatura adotada pelo legislador, de onerosidade excessiva.
No CC há dois dispositivos que tratam aparentemente desse mesmo assunto: o art. 317 e o art. 478. Ambos com textos parecidos, mas não idênticos, referentes a alterações supervenientes e imprevisíveis das circunstâncias, só que um prevendo a revisão da prestação (art. 317) e o outro a resolução do negócio (art. 478).
Há, diante do texto em vigor, incerteza quanto à relação entre esses dispositivos. Isso leva a que, diante de uma situação de onerosidade excessiva, não haja clareza quanto ao dispositivo incidente. Consequentemente, não há certeza quanto aos requisitos de incidência da onerosidade excessiva nem quanto aos seus efeitos.
Há duas posições principais sobre a relação entre esses dispositivos, que podem ser apresentadas como posições relativas ao âmbito de aplicação do art. 317. De um lado, há quem defenda que o art. 317 diz respeito apenas a obrigações pecuniárias[12]. De outro, a posição majoritária defende que o art. 317 é aplicável a qualquer prestação[13].
Seguindo a posição majoritária, que é adotada inclusive pelos membros da comissão de juristas elaboradora do Anteprojeto que deu base ao PL 4/2025, os arts. 317 e 478 são aplicáveis às mesmas situações de onerosidade excessiva da prestação. Isso leva a doutrina a fazer uma metodologicamente esdrúxula aproximação e conciliação das diferenças dos dispositivos para fim de sua aplicação conjunta. No campo dos pressupostos de incidência, o problema principal diz respeito à “extrema vantagem” para o outro contratante, presente no art. 478, mas não no art. 317. A solução proposta – e contrária à lei – foi a de considerar o requisito acidental (Enunciado n. 365 da IV Jornada de Direito Civil).
No campo das consequências da onerosidade excessiva, a questão é quanto ao efeito resultante, já que o art. 317 prevê a revisão e o art. 478, a resolução. A doutrina majoritária vem preferindo a revisão em detrimento da resolução, embora os argumentos sejam de consistência duvidosa. Por exemplo, há quem alegue que, com o art. 317, “supriu-se a omissão do próprio Código Civil, que, ao tratar da onerosidade excessiva em seus arts. 478 e seguintes, deixou ao contratante prejudicado a oportunidade de pleitear apenas a resolução (extinção) do contrato.”[14] Mas qual é a omissão se o art. 478 dispõe expressa e claramente que, em caso de onerosidade excessiva, poderá a parte pedir a resolução do contrato?
No PL 4/2025 foram feitas alterações que não atacam esse problema central da sobreposição dos arts. 317 e 478. Na verdade, o texto proposto no PL 4/2025 aprofunda-a ainda mais: no art. 317 substitui-se a “desproporção manifesta” pela “onerosidade excessiva”, de modo que ambos os dispositivos passariam a depender do mesmo requisito central, a onerosidade excessiva; no art. 478 foi retirada a referência à “extrema vantagem” do outro contratante e incluída a possibilidade de a parte lesada pedir a revisão, ao lado da possibilidade de resolução. Contudo, com essas alterações, a tendência é que seja reforçada a posição já majoritária de ambos os dispositivos serem aplicados conjunta e indistintamente para resolver os mesmos casos.
Ocorre que não faz sentido haver dois dispositivos para resolver os mesmos casos. Uma duplicidade assim gera, na melhor das hipóteses, redundância. Na prática, gera também divergência, desentendimento e insegurança. A saída seria o PL ter enfrentado a questão e propor uma das duas soluções seguintes: de um lado, partindo-se da autonomia dos dispositivos, delimitar melhor a sua separação, deixando claro a que grupo de casos distintos cada um deles é aplicável; de outro, partindo-se da sobreposição, revogar um dos dispositivos e adequar a redação do outro – suprimir, por exemplo, o art. 317 e acrescentar no art. 478 o direito a escolher a revisão do contrato.
A não solução, e possivelmente o agravamento, da sobreposição dos arts. 317 e 478, é mais uma grave omissão do PL 4/2025.
4) Supressão do art. 405 do CC
Por fim, o PL 4/2025 perde a oportunidade de revogar o art. 405, dispositivo segundo o qual “contam-se os juros de mora desde a citação inicial.”. O artigo é equívoco e dispensável, merecendo ser revogado[15].
O dispositivo é equívoco, porque seu texto parece impor regra mais ampla do que a que efetivamente resta vigente. De um lado, nem sempre que há citação deve haver contagem dos juros de mora, por incidirem os juros apenas em casos de obrigações pecuniárias. De outro, mesmo havendo incidência de juros, nem sempre a contagem se dá desde a citação, ocorrendo frequentemente antes, quando da constituição do devedor em mora. Ou seja, apenas nos casos envolvendo obrigações pecuniárias em que a citação constitui o devedor em mora é possível dizer que os juros de mora são contados da citação inicial.
O PL até tenta mitigar esse problema, pois acrescenta uma ressalva final, propondo a seguinte disposição: “contam-se os juros de mora desde a citação inicial, ressalvadas as hipóteses previstas nos arts. 397 e 398 deste Código.” A solução não parece ser a mais feliz. A regra geral é a de que os juros de mora devem ser contados a partir da mora do devedor e, apenas excepcionalmente, a partir da citação. O art. 405, mesmo com a nova redação proposta, parece dispor de maneira diversa, como se o marco geral da contagem dos juros de mora fosse a citação inicial do devedor.
Além disso, o regramento do art. 405 é dispensável, uma vez a sua existência ou supressão não alteram a forma de contagem dos juros de mora. Isso porque, por aplicação das regras gerais de mora (art. 395), de perdas e danos (arts. 404 e 407) e de constituição em mora a partir da citação (art. 240 do CPC), já se extrai a regra geral de contagem dos juros de mora da constituição do devedor em mora e, excepcionalmente, a partir da citação inicial.
Conclusão
O PL 4/2025 incorre, como visto, em 4 graves omissões na parte geral do direito das obrigações. Essas, e muitos outros motivos que a crítica vem apresentando, demonstram que o PL 4/2025 deve ser repensado e, do jeito que está, não deve ser aprovado.
* Citar como: DIAS, Daniel. Algumas Omissões Do PL 4/2025 na Parte Geral das Obrigações. In: MARTINS-COSTA, Judith; MARTINS, Fábio; CRAVEIRO, Mariana Conti; XAVIER, Rafael Branco (Orgs.) Boletim IDiP-IEC, vol. LXVIII. Publicado em 20 de agosto de 2025.
** Professor e Coordenador do Mestrado Profissional em Direito dos Negócios e Arbitragem da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP, com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München e no Instituto Max-Planck de direito comparado e internacional privado em Hamburgo. Estágio pós-doutoral na Harvard Law School.
[1] Daniel Dias. Corresponsabilidade do Lesado no Anteprojeto de Reforma do Código Civil, Revista Jurídica Profissional, volume especial, 2024. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/rjp/article/view/92226/86464. Acesso em: 8 jun. 2025.
[2] “A reforma é imensa”, como afirmou Menezes Cordeiro ao comentar sofre o Anteprojeto de Reforma do Código Civil brasileiro. Cf. António Menezes Cordeiro. Reestruturar a responsabilidade civil: bases e implicações suscitadas pelo projeto de reforma do Código Civil brasileiro de 2002. Disponível em: https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2024/11/Reestruturar-a-responsabilidade-civil_bases-e-implicacoes.pdf. Acesso em: 06 jun. 2025.
[3] Silvio Rodrigues. Direito civil, vol. 2: parte geral das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2002, n. 13, p. 30.
[4] Rodrigues, Direito civil, cit., n. 13, p. 30.
[5] Francisco Medina. Compra e venda de coisa incerta no direito civil brasileiro: uma análise do dever do devedor no código civil de 2002: tomo I – evolução histórica e perfil dogmático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021, p. 251; José Fernando Simão. Comentários ao art. 244. In: Anderson Schreiber et. al. Código Civil Comentado. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2025, p. 191.
[6] Flávio Tartuce. Direito civil, vol. 2: direito das obrigações e responsabilidade civil. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025, p. 51-52.
[7] Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber. Fundamentos do direito civil, vol. 2: obrigações. Forense, 2020, p. 72.
[8] Clóvis Bevilaqua. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil commentado – vol. IV. 6 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1943, com. art. 876. p. 20.
[9] Orlando Gomes e Edvaldo Brito. Obrigações. 18 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, n. 31, p. 36.
[10] Cf., entre outros, Francisco Medina. Compra e venda de coisa incerta no direito civil brasileiro: uma análise do dever do devedor no código civil de 2002: tomo II – concretização e distúrbios da relação jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021, p. 3.
[11] Medina, Compra e venda de coisa incerta, t. II, p. 46.
[12] Cf., entre outros, Francisco Marino. Revisão contratual fundada em excessiva onerosidade superveniente: competência exclusiva do credor e limites de atuação do juiz. In: Henrique Barbosa e Jorge Cesa Ferreira da Silva (coord.) A evolução do direito empresarial e obrigacional: 18 anos do Código Civil, vol. 2. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 478 ss,
[13] Entre outros, cf. Tepedino e Schreiber, Fundamentos do direito civil, vol. 2, p. 224 ss.; Simão, Comentário ao art. 317, cit., p. 234 ss.
[14] Tepedino e Schreiber, Fundamentos do direito civil, vol. 2, p. 224.
[15] Sobre esse tema, cf. Daniel Dias. O marco inicial da contagem dos juros de mora: análise do art. 405 do Código Civil. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 11, n. 3, 2022. Disponível em: <http://civilistica.com/o-marco-inicial-da-contagem/>. Acesso em: 06 jun. 2025.