Marco Antônio Karam Silveira**

O Relatório da Comissão de Juristas constituída para apresentar proposta de atualização do Código Civil de 2002 foi entregue ao Senado Federal no início deste ano e formalizado no PL 4/2025, de relatoria do Senador Rodrigo Pacheco. Repleto de alterações problemáticas, destacaremos, neste breve texto, aspecto que nos parece central e inicial na pretendida atualização do Livro de Direito de Empresa, qual seja, a adoção do conceito de empresa em substituição ao conceito de empresário, sem apresentação da base teórica que lhe dê suporte, tanto pelo que se interpreta do texto do art. 966, quanto pela inexistência de qualquer menção na justificativa.

O Código Civil de 2002, unificou as obrigações de direito privado (civis e mercantis)[1] e superou a Teoria dos Atos de Comércio de base francesa, mediante adoção da Teoria da Empresa, inspirada no Código Civil italiano de 1942, com a consequente revogação da primeira parte do Código Comercial de 1850 e declínio dos atos de comércio arrolados emblematicamente no Regulamento n° 737/1850[2].

Relator do Livro de Direito de Empresa à época, Sylvio Marcondes acentuou a adoção da teoria italiana da empresa e, para sua transladação, a doutrina brasileira amparou-se na lição desenvolvida por Asquini[3], fundada nos perfis jurídicos da empresa[4].

Segundo a Teoria Jurídica da Empresa assim desenvolvida, sustenta ser a empresa um fenômeno econômico poliédrico com quatro perfis jurídicos. O perfil subjetivo é relacionado ao empresário ou à sociedade empresária; o perfil funcional atine à finalidade de circulação de bens e serviços; o perfil patrimonial ou objetivo, à universalidade de bens; e, finalmente, o perfil institucional, que significa a multilateralidade das relações formadas pela atividade empresária[5].

A atual redação do caput do art. 966[6], tradução do art. 2.082 do Código Civil italiano de 1942[7], conceitua empresário, e não empresa, por razões bem expostas por Sylvio Marcondes durante da tramitação legislativa do Código atual[8].

A proposta legislativa constante do PL 4/2025 altera o art. 966 do atual Código Civil, substituindo o conceito de empresário pelo conceito de empresa. O texto foi assim redigido: “Art. 966. Considera-se empresa a organização profissional de fatores de produção que, no ambiente de mercado, exerce atividade de circulação de riquezas, com escopo de lucro, em prestígio aos valores sociais do trabalho e do capital humano”.

O § 1º esclareceu que quem exerce a atividade de empresa é o empresário e a sociedade empresária, destacando o aspecto subjetivo dos perfis jurídicos propostos por Asquini (“§ 1º. Exercem atividade empresarial o empresário e a sociedade empresária”).

E o § 2º manteve a exclusão da profissão intelectual, de natureza científica, literária e artística da qualificação de empresária, já excepcionadas na atual redação do parágrafo único do art. 966, abandonando a locução “elemento de empresa” e adotando a qualificação empresarial pela inscrição no RPEM, que teria, nestes casos, eficácia constitutiva, diversamente da eficácia declaratória do empresário ou sociedade empresária referidos no caput, com relevantes implicações práticas (“§ 2º. Não se considera atividade empresarial o exercício de profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda que com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se requerida a sua inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis, ressalvadas as obrigações assumidas perante terceiros antes de registrada a empresa”).

Nota-se que a redação proposta para o art. 966 acarreta o abandono da Teoria da Empresa com substituição conceitual que implica alteração da base teórica fundante do Direito Empresarial brasileiro. Para além da ausência de unicidade e consenso, essa substituição ocorre sem qualquer base histórica, desvinculada de qualquer tradição do direito comercial/empresarial[9].

A utilização da locução “considera-se empresa a organização” e abandono da expressão “empresário é quem exerce profissionalmente atividade” poderia significar a adoção da teoria da organização como nova diretriz teórica do direito empresarial brasileiro. Entretanto, na Justificação constante do Relatório Final e do PL 4/2025, mercê da ausência de consistente e robusta Exposição de Motivos, não há qualquer menção à base teórica para a adoção do conceito de empresa, apenas a singela afirmação de que “propôs-se a superação da definição inspirada no Código Civil italiano de 1942” em seis linhas de um único parágrafo.

Afastar o conceito de atividade (econômica) da teoria da empresa, em seu significado de conjunto encadeado de atos vinculados e dependentes entre si e finalizados à produção e circulação de bens e serviços, que na lição de Sylvio Marcondes equivale à atividade negocial, e adotar a ideia de empresa como organização exige amadurecimento teórico ainda não alcançado com mínimo consenso pela doutrina. A própria ideia de mercado, inserida no texto do art. 966, na peculiar locução “ambiente de mercado”, retrata a amplitude dos elementos que devem ser considerados para adequada conceituação de empresa na realidade brasileira, tanto no que se refere a conceito que congregue o empresário individual e a macro-empresa transnacional, quanto à inserção da atividade econômica desenvolvida pela empresa diante das normas constitucionais da ordem constitucional econômica[10].

A terminologia empregada na locução “circulação de riquezas” é dúbia e busca substituir a expressão “atividade econômica organizada para produção ou circulação de bens ou serviços” da redação atual do art. 966, muito mais precisa.  O texto proposto, embora não tenha referido o termo “habitualidade”, manteve o termo “profissional”, em vista da expressão “profissionalmente” da redação atual. Do ius mercatorum medieval[11], da Teoria dos Atos de Comércio de matriz francesa e da Teoria da Empresa de fonte italiana, o aspecto distintivo do exercício de atividade econômica comercial ou empresarial é a habitualidade, afastando a qualificação de empresário ou sociedade empresária para quem pratica atos econômicos isolados, sem recorrência ou intenção de permanência.

Ademais, ao substituir o conceito de empresário pelo de empresa, deixou-se de alterar todos os demais artigos da parte inicial do Direito de Empresa que adotam a figura do empresário como paradigma das regras do atual Código Civil. Tomem-se os artigos propostos sobre inscrição, capacidade empresarial e sociedade entre cônjuges, e se constata que se referem ao empresário, centralidade perdida pela sua substituição pelo conceito de empresa, porém mantida como referência nos dispositivos correspondentes.

A centralidade da figura jurídica do empresário, é bem verdade, confunde os iniciantes do direito empresarial na atualidade, que o assemelham com a figura do sócio, o qual não é empresário e não desenvolve atividade empresária, senão por intermédio da pessoa jurídica que integra, bem distinta pela personalidade e patrimônio autônomo em relação aos seus integrantes. A proposição legislativa, ao afastar o conceito de empresário, chave referencial da teoria da empresa em vigor, acarreta o abandono desse referencial integrante da teoria. Seja qual for a base teórica adotada pela proposição, muito embora os sujeitos que exerçam a atividade sejam o empresário e a sociedade empresária, como fez questão de acentuar o § 2º proposto, o referencial se altera.

Ainda, como defendemos, o escopo de lucro, presente na proposição (“com escopo de lucro”), é elemento não jurídico e, por essa razão, não se mostra adequado em integrar conceito jurídico da atividade econômica de empresa, notadamente no Código Civil. Lucro pode ser uma das motivações (ou a motivação principal) do negócio empresarial, mas não exclui outras motivações possíveis, tais como inovação, sustentabilidade ou promoção de igualdade na aquisição de bens ou serviços, ou algo além do mero e exclusivo efeito financeiro. Não bastasse isso, os resultados da atividade de empresa podem não ser positivos, vale dizer, pode haver prejuízo (sem lucro), e nem por isso se deixaria de qualificar a atividade como empresária. Os elementos do conceito não podem variar conforme o resultado, positivo ou negativo (lucro ou prejuízo), o que acarretaria debilidade do próprio conceito do objeto que se pretende distinguir.

Por fim, a menção aos “valores sociais do trabalho e do capital humano”, na tentativa de trazer ao texto do novo Código Civil as normas do art. 170 da Constituição da República sobre Ordem Econômica, o faz de maneira parcial (não é só o trabalho que é valorizado) e equivocada (há outros valores sociais que devem ser realizados pela atividade econômica), contribuindo, como um todo, para trazer insegurança jurídica ao ambiente negocial brasileiro, já extremamente contaminado pelas constantes alterações legislativas, regulatórias e decisórias[12].

O arsenal de dúvidas despertado pela formulação de conceito de empresa na proposição do art. 966 é intensificado pela inserção do art. 966-A. Este determina ao operador do direito que as disposições relativas ao Direito de Empresa “devem ser interpretadas e aplicadas visando ao estímulo do empreendedorismo e ao incremento de um ambiente favorável ao desenvolvimento dos negócios no país”, segundo alguns princípios, que a proposição descreve como os

“da liberdade de iniciativa e da valorização e aperfeiçoamento do capital humano; da liberdade de organização da atividade empresarial, nos termos da lei; da autonomia privada, que somente será afastada se houver violação manifesta de normas legais de ordem pública; da autonomia patrimonial, voltada para a circulação de riquezas, nos termos do parágrafo único do artigo 49-A deste Código; da limitação da responsabilidade dos sócios, nos termos legais e de constituição a empresa; da deliberação majoritária do capital social, conforme as peculiaridades na constituição da empresa; da preservação da empresa, de sua função social e de estímulo à atividade econômica; de simplicidade e instrumentalidade das formas”.

Além do art. 966-A lembrar a proposição legislativa de Projeto de Código Comercial de 2013 (PLS 487/2013), de autoria do Senador Renan Calheiros, e de relatoria atual da Senadora Soraya Thronicke, no elenco nele inserido não se teve preocupação em distinguir princípios e regras, catalogando-os todos como princípios, o que exige um exame particular de cada um para evidenciar quais são princípios e quais são regras, além da demonstração da inadequação de diversas dessas orientações (vamos assim denominá-las) em um Código Civil.

Ademais, o caput do art. 966-A não está em consonância com o caput do art. 966 proposto. Lá, o texto trata dos “valores sociais do trabalho e do capital humano” como integrantes do conceito de empresa, tentando uma leitura conforme o art. 170 da Constituição da República. Aqui, o texto diz que as disposições do Livro de Direito de Empresa devem ser interpretadas e aplicadas segundo estímulo ao empreendedorismo e incremento ao ambiente favorável de negócios.

A incongruência gerada entre os artigos 966 e 966-A está em que as orientações de hermenêutica e aplicação do direito empresarial, restritas ao empreendedorismo e melhoria do ambiente de negócios, deixam de lado os valores constitucionais mencionados no art. 966 que foram trazidos, em parte, como conceito de empresa. Não se pode desvincular os elementos do conceito de determinado objeto, de um lado, dos princípios diretivos de interpretação e aplicação sobre esse mesmo objeto, de outro. Ocorrendo divergência entre os elementos e as diretivas de interpretação, obtém-se contradição e insegurança jurídica, ou, risco à estabilidade normativa em seu aspecto legislativo, contribuindo para intensificar o conflito entre liberdade e busca de igualdade.

Ademais, os ditos princípios dos incisos I a IX já constam na legislação, tanto na Constituição da República (I, II e III) e Código Civil (III, IV, V, VI e IX) quanto na legislação especial (e.g., Lei nº 6.404/1976 e Lei nº 13.874/2019).

Em conclusão, não se sabe qual teoria foi adotada, o que forneceria ao intérprete e ao aplicador das normas de direito empresarial a fonte na qual são colhidos os elementos constituintes que deram forma ao conceito. Há um vazio teórico na alteração, evitando que se possa contribuir para o debate científico em bases sólidas e conhecidas. Defendemos a possibilidade de evolução do conceito de empresa no direito empresarial brasileiro, desde que fundada em amplo debate e maturação doutrinária, que considerem a diferença de porte de quem exerça a atividade, a exata distinção entre “empresa jurídica” (empresa para o direito) e “empresa econômica” (empresa para a economia), abrindo também oportunidade para a discussão da efetiva manutenção da distinção entre atividade econômica empresária e não-empresária, presente na proposição legislativa, que conflitua com o conceito de empresa proposto.

* Citar como: SILVEIRA, Marco Antônio Karam. O significado do abandono da Teoria da Empresa na proposta legislativa de atualização do Código Civil (PL 4/2025). In: MARTINS-COSTA, Judith; MARTINS, Fábio; CRAVEIRO, Mariana Conti; XAVIER, Rafael Branco (Orgs.) Boletim IDiP-IEC, vol. LXIV. Publicado em 16 de julho de 2025.

** Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

[1] O movimento unificador, entre nós, deve-se a Teixeira de Freitas. Vide, por exemplo: PELA, Juliana K. O contrato de sociedade entre o Esboço e o Código Comercial. In: MARTINS COSTA, Judith.  FERNANDES, Marcia; GIANNOTTI, Luca; WEBBER, Pietro. Augusto Teixeira de Freitas: Humanismo, Dogmática e Sistema. Rio de Janeiro: Processo, 2024, p.371-386. Na Itália, Cesare Vivante, em aula inaugural proferida em 1892 na Faculdade de Bolonha, deflagrou movimento pela unificação do direito privado, retratando-se dessa posição anos mais tarde. A unificação, todavia, influenciou decisivamente a elaboração do Codice Civile de 1942, modelo legislativo adotado pelo Código Civil Brasileiro de 2002, como observou Miguel Reale, na Exposição de Motivos do novo Código Civil. Túlio Ascarelli afirmou que a “unificação realizou-se no âmbito do direito das obrigações, conservando-se por outro lado um estatuto especial para os empresários, e mesmo para os médios e grandes empresários comerciais, e as sociedades comerciais”: ASCARELLI, Túlio. O desenvolvimento histórico do direito comercial e o significado da unificação do Direito Privado. Tradução Fábio Konder Comparato. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, n. 114, p. 237-252, 1999.

[2] Atualmente, tramitam no Senado Federal o Projeto de Lei nº 487/2013, de relatoria do Senador Renan Calheiros, e na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 1.572/2011, de relatoria do Deputado Federal Vicente Cândido (PT), ambos tratando do Projeto de novo Código Comercial.

[3] A teoria de Alberto Asquini sofre algumas críticas doutrinárias atuais, no sentido de seria insuficiente para explicar, v.g. “as razões que levam agentes econômicos a criar empresas, e a empenhar-se no seu crescimento”: SZTAJN, Rachel. A Teoria Jurídica da Empresa. Atividade empresária e mercado. 2 ° Ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 3.

[4] Sylvio Marcondes, na Exposição de Motivos do Anteprojeto do Código Civil de 2002, adotou expressamente a ideia de fenômeno econômico poliédrico da empresa.

[5] ASQUINI, Alberto. Perfis da empresa. Tradução Fábio Konder Comparato. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, n. 104, p. 109-126, 1996, p. 109 e p. 114-124.

[6] “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”.

[7] “É  imprenditore  chi  esercita  professionalmente  una   attivita’ economica organizzata al fine della produzione  o  dello  scambio  di beni o di servizi”.

[8] MARCONDES, Sylvio. Problemas de Direito Mercantil. 2ª tiragem, São Paulo: Max Limonad, 1970, p. 19-21.

[9] Para um estudo a respeito da importância da historicidade dos conceitos e de categorias jurídicas: ASCARELLI, Tulio. O desenvolvimento histórico do direito comercial e o significado da unificação do direito privado. Trad. Fábio Konder Comparato. Revista de Direito Mercantil Industrial, Econômico e Financeiro, n. 114, abr./jun. 1999, p. 242 e seg.

[10] KARAM, Marco Antônio. A empresa na realidade brasileira: entre liberdade econômica, igualdade e solidariedade social e estabilidade normativa. Revista Estudos Legislativos, v. 14, p. 45-63, 2022, e KARAM, Marco Antônio. Empresa jurídica e empresa econômica e a sistematização jurídica das situações de empresa na realidade brasileira. Cadernos do Programa de Pós-graduação em Direito – ppgdir./ufrgs, v. 17, p. 193-214, 2022.

[11] GALGANO, Francesco. Lex mercatoria. 5. ed. Bologna: Società editrice il Mulino, 2010, p. 9-14.

[12] Como tento demonstrar em: KARAM, Marco Antônio. A empresa na realidade brasileira: entre liberdade econômica, igualdade e solidariedade social e estabilidade normativa. Revista Estudos Legislativos, v. 14, p. 45-63, 2022.