Alexandre Junqueira Gomide**

Propalada como uma reforma urgente e necessária, os principais defensores do PL nº 04/2025 sustentam que o projeto do atual Código Civil é datado da década de 1970 e, em razão do avançar da sociedade civil e das relações jurídicas, é imprescindível uma atualização do texto legal.

Inicialmente, não se pode deixar de louvar o árduo trabalho realizado pela Comissão de Juristas, que em tão pouco tempo apresentou extenso projeto, com sugestões de alterações em mais de mil e cem artigos do Código Civil.

Embora o projeto possa apresentar falhas, a simples formação de uma comissão de renomados juristas que trabalham voluntariamente para a melhoria de um texto legal já é motivo para exaltação.

Considerando a importância do projeto e as substanciais alterações propostas, é altamente recomendável que a sociedade civil possa se manifestar, apresentando termos concordantes, discordantes e sugestões de melhorias. Ademais, como bem referido por um dos autores da Comissão de Juristas[1], as “críticas são bem-vindas” já que “imaginar uma proposição legislativa imune a censuras exigiria que a obra legislativa fosse dotada de perfeição de que carecem todas as obras humanas”.

Nesse sentido, o presente artigo, de maneira respeitosa e democrática, tem simplesmente o objetivo de apresentar algumas preocupações com projetadas alterações a um relevante instituto jurídico e que apresenta contornos significativos às relações contratuais: a lesão.

Caio Mário da Silva Pereira[2], desde meados do século XX, defendia a necessidade de a legislação brasileira prever o instituto da lesão como hipótese de anulabilidade dos negócios jurídicos, com avaliação da desproporção das prestações com base em critérios subjetivos, ou seja, “sem mencionar um índice preestabelecido”. Defendia, igualmente, fosse permitido, ainda, o restabelecimento do equilíbrio das prestações, facultando às partes espontaneamente convalidarem o novo contrato[3].

Os anos se passaram e o Código Civil de 2002 acolheu as ideias de Caio Mário da Silva Pereira, tal como se nota da redação do atual art. 157[4], que, desde a sua entrada em vigor, nunca sofreu qualquer alteração legislativa.

Inobstante a manutenção do texto original, a lesão foi objeto de relevantes discussões em Jornadas de Direito Civil e Comercial pelo Conselho da Justiça Federal, o que resultou na edição de seis enunciados[5].

No âmbito da jurisprudência, em nossa recente pesquisa, a lesão, regra geral, tem sido adequadamente interpretada pelos tribunais. Isso porque, embora seja recorrente a alegação de lesão por parte de contratantes que procuram afastar o risco próprio do contrato, normalmente os requisitos que permitem a anulação do negócio jurídico não estão presentes, mantendo-se a higidez da contratação, conferindo segurança jurídica aos contratos[6].

Diante de tal contexto, é bom destacar inexistir um movimento doutrinário consistente de autores brasileiros a reclamar a necessidade de substanciais alterações ao instituto da lesão, alegando, por exemplo, desatualização do texto legal[7]. De todo modo, o PL nº 04/2025 resolveu alterar o atual artigo 157.

Inicialmente, é bom asseverar que o projeto preservou integralmente a originalidade do dispositivo, já que não houve qualquer alteração ao caput ou aos § 1º e 2º do atual artigo 157, havendo apenas realinhamento de parágrafos (o § 2º da Lei é o atual § 3º do PL).

As novidades do projeto, portanto, são verificadas nos § 2º, 4º e 5º.

Em nossa opinião, o § 4º do projeto é uma novidade bem-vinda, uma vez que permite ao lesado “ingressar diretamente com ação visando à revisão judicial do negócio por meio da redução do proveito da parte contrária ou do complemento do preço”. A sugestão proposta parece apenas se alinhar com o Enunciado nº 291, da IV Jornada de Direito Civil[8].

Da mesma forma, o § 5º apenas enuncia questão aparentemente pacificada na jurisprudência[9] para determinar que “para a caracterização da lesão não se exige dolo de aproveitamento”, orientação também alinhada com o Enunciado nº 150, da III Jornada de Direito Civil[10].

A grande novidade do PL com relação à lesão e que ensejou o presente artigo diz respeito ao § 2º, que assim determina:

Art. 157 […]

  • 2º Em casos de patente vulnerabilidade ou hipossuficiência da parte, presume-se a existência de premente necessidade ou de inexperiência do lesado.

A pretendida inovação merece a nossa atenção. Inicialmente porque é a primeira vez que os vocábulos vulnerabilidade e hipossuficiência são trazidos para o Código Civil, já que os Códigos de 1916 e 2002 não empregam tais termos, característicos de um léxico diverso daquele próprio à linguagem do Código Civil[11].

Se, por um lado, a Lei Civil não adota em seu texto tais vocábulos, o Código de Defesa do Consumidor, por outro, estabelece como princípio o “reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo” (art. 4º, inciso I), bem como determina a facilitação da defesa do direito dos consumidores, inclusive com a inversão do ônus da prova quando, a critério do juiz, “for verossímil a alegação ou quando ele for hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência” (art. 6º, VIII).

Nas relações de consumo (assim como nas relações de emprego) é necessário proteger o contratante vulnerável[12]. Ocorre que nas relações civis e empresariais, regra geral, não há desequilíbrio entre os contratantes. O sistema do Código Civil vigente, portanto, não foi construído partindo do pressuposto de um dos contraentes merecer proteção especial. É necessário, assim, atenta reflexão na acolhida das noções de hipossuficiência e vulnerabilidade no texto do Código, evitando-se o que se intitulou de “consumerização do direito privado”[13]. É necessário lembrar que a regra pretendida não é para a tutela de consumidores[14], mas de contratantes em relação civil ou empresarial.

Além disso, atente-se que o conceito de vulnerabilidade contratual, como bem ressaltou Jorge Cesa Ferreira da Silva[15], não faz parte do léxico jurídico tradicional e falta-lhe uma delimitação mais precisa, já que é uma condição multifacetada. A doutrina consumerista costuma tratar a vulnerabilidade como técnica, jurídica e fática[16]. Nesse sentido, além da dificuldade em saber quais os requisitos para qualificar contratantes como vulneráveis em uma relação civil ou empresarial, também se questiona a qual tipo de vulnerabilidade o artigo 157 do projeto está a se referir[17].

A ausência de critérios objetivos e seguros para qualificar os contratantes como hipossuficientes ou vulneráveis na relação civil pode resultar em maior insegurança jurídica, já que a interpretação é subjetiva.

Também não parece adequado, nas relações civis e empresariais, presumir preemente necessidade ou inexperiência quando for verificada vulnerabilidade de um dos contratantes. Até porque tal presunção parece contrariar justamente enunciado do Conselho da Justiça Federal. Segundo o enunciado nº 290 da IV Jornada de Direito Civil:

A lesão acarretará a anulação do negócio jurídico quando verificada, na formação deste, a desproporção manifesta entre as prestações assumidas pelas partes, não se presumindo a premente necessidade ou a inexperiência do lesado (grifamos).

Tal como já defendido anteriormente[18], na análise da lesão, talvez seja mais relevante aferir o risco contratual assumido do que avaliar a qualificação do contratante.

Para nós, a vulnerabilidade, a hipossuficiência, a falta de providência ou de habilidade de negociar não são (ou não deveriam ser) situações que autorizam a invocação da lesão. É necessário que além da desproporção da prestação, seja identificada a premente necessidade, que não diz respeito à miséria ou insuficiência habitual de meios para prover a subsistência própria, mas trata “da impossibilidade de evitar o contrato, que não decorre da capacidade econômica ou financeira do lesado, mas da circunstância de não poder deixar de efetuar o negócio”[19] ou a inexperiência, que significa “a falta de conhecimentos ou habilidade relativos à natureza daquilo que se realiza, excludente ou prejudicial da capacidade de exata percepção ou entendimento de coisas ou fatos, sob o ponto de vista econômico[20]”. Essa inexperiência deve assinalar a situação de desigualdade técnico-científica ou transacional e que vai ser aproveitada pela parte mais forte e conhecedora, em detrimento da débil, precisamente aquela situação que pode caracterizar a relação de consumo[21].

Assim, a avaliação da lesão necessariamente requer a observância de tais requisitos, não sendo adequado que se amplie a sua aplicação para as situações de vulnerabilidade e hipossuficiência. O fato de um contratante ser vulnerável perante o outro não significa que há preemente necessidade ou inexperiência.

Fosse admitido a uma das partes suscitar a anulação do negócio jurídico por alegação de vulnerabilidade ou hipossuficiência nas relações civis e empresariais, os negócios jurídicos perderiam a característica da irretratabilidade, além de permitir comportamentos oportunistas. Até porque, como bem defendido por João Pedro Biazi, “é normal que as avenças permitam um jogo de interesse mais vantajoso para uma das partes e menos para outra”[22].

Nesse sentido, em razão do risco contratual, permitir-se uma interpretação ampliativa das expressões inexperiência e premente necessidade fere a alocação de riscos a que as partes se obrigaram.

Para nós, portanto, nada obsta que nas relações paritárias ou empresariais, as partes firmem contratos desequilibrados, desde que, naturalmente, o desequilíbrio seja consentido em razão do risco contratual assumido por uma das partes. O fato de partes contratantes serem vulneráveis também não afasta a possibilidade de assumirem maiores riscos. Insistimos: a necessária proteção ao contratante vulnerável já é verificada no Código de Defesa do Consumidor.

Nesses termos, embora seja tentador ao operador do direito aplicar a lesão de modo a permitir anulação do negócio jurídico quando for verificada vulnerabilidade contratual, ao fazê-lo, poderá simplesmente reduzir ou eliminar o risco contratual assumido pelas partes, ferindo a autonomia privada e a liberdade contratual.

Portanto, algumas relações obrigacionais podem, sim, nascer desequilibradas, desde que o desequilíbrio seja risco livre e conscientemente assumido pelo contratante.

Em conclusão, como sugestão ao PL nº 04/2025, defendemos que não se deve conferir interpretação ampliativa aos requisitos que autorizam a lesão. Assim, sugerimos que o § 2º do artigo 157 seja eliminado, de modo a conferir segurança jurídica às relações civis e empresariais.

** GOMIDE, Alexandre Junqueira. A lesão no Projeto de Lei nº. 04/2025. In: MARTINS-COSTA, Judith; MARTINS, Fábio; CRAVEIRO, Mariana Conti; XAVIER, Rafael Branco (Orgs.) Boletim IDiP-IEC, vol. LXII. Publicado em 9 de julho de 2025.

[1] DELGADO, Mário Luiz. DNA, dívidas: reforma do Código Civil não pode ser interditada. Ig Último segundo, 29 abr. 2025. Disponível em: https://ultimosegundo.ig.com.br/2025-04-29/dna–dividas–reforma-do-codigo-civil-nao-poder-ser-interditada.html.amp. Acesso em 30 abr. 2025.

[2] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos contratos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959. p. 220 e seguintes. Inclusive, no anteprojeto de Código das Obrigações apresentado pelo autor, em 1964, constavam dois dispositivos a respeito da lesão (artigos 62 e 63).

[3] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos contratos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959. p. 222 e seguintes.

[4] Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta. § 1º Aprecia-se a desproporção das prestações segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico. § 2º Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito

[5] São eles: Enunciado 28 da I Jornada de Direito Comercial e Enunciados 149, 150, 290, 291 e 410 das Jornadas de Direito Civil.

[6] A exemplo disso, vide: “Embargos à execução – Compromisso de compra e venda de imóvel – Loteamento – Inadimplemento do executado embargante aos termos do contrato originário e das respectivas renegociações posteriores incontroverso – Alegação de defeito no negócio jurídico (lesão) – Não reconhecimento – Pretensão de revisão ou anulação contratual que depende de demonstração pelo interessado da desproporção manifesta entre as prestações assumidas, não presumida a premente necessidade ou a inexperiência do lesado – Inteligência do artigo 157 do Código Civil e Enunciado 290 do CJF – Elementos objetivos constantes dos autos que não indicam a presença de nenhum dos pressupostos legais de ocorrência da alegada nulidade – Vício de consentimento não configurado – […] Recurso não provido (TJSP; Apelação Cível 1000972-10.2017.8.26.0146; Relator (a): Henrique Rodriguero Clavisio; Órgão Julgador: 18ª Câmara de Direito Privado; Foro de Cordeirópolis – Vara Única; Data do Julgamento: 11/08/2021; Data de Registro: 11/08/2021). No mesmo sentido: TJSP; Apelação Cível 1007503-14.2022.8.26.0704; Relator (a): Claudia Carneiro Calbucci Renaux; Órgão Julgador: 24ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional XV – Butantã – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 24/04/2025; Data de Registro: 24/04/2025 e TJSP; Apelação Cível 0000345-81.2012.8.26.0248; Relator (a): Claudia Menge; Órgão Julgador: 32ª Câmara de Direito Privado; Foro de Indaiatuba – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 27/03/2025; Data de Registro: 27/03/2025.

[7] Ressalte-se, contudo, o excelente trabalho de Anderson Schreiber, que sugere propostas interpretativas para conferir interpretação mais ampliativa à lesão: SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 109 e seguintes.

[8] Enunciado nº 291: “Nas hipóteses de lesão previstas no art. 157 do Código Civil, pode o lesionado optar por não pleitear a anulação do negócio jurídico, deduzindo, desde logo, pretensão com vista à revisão judicial do negócio por meio da redução do proveito do lesionador ou do complemento do preço”.

[9] Nesse sentido: TJSP; Apelação Cível nº 1014440-43.2018.8.26.0037; Relator (a): Schmitt Corrêa; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Foro de Araraquara – 6ª Vara Cível; Data do Julgamento: 18/12/2023; Data de Registro: 18/12/2023.

[10] Enunciado nº 150: “A lesão de que trata o art. 157 do Código Civil não exige dolo de aproveitamento”.

[11] Ademais, as palavras hipossuficiente, vulnerável e vulneráveis agora também são trazidas nas pretendidas alterações do § 1º do artigo 1.831 e do parágrafo único do artigo 1.846.

[12] FILOMENO, José Geraldo Brito. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Ada Pellegrini Grinover [et al]. 11. ed. Rio de Janeiro, 2017. p. 78.

[13] Vide mais em SILVA, Jorge Cesa Ferreira. A vulnerabilidade no Direito Contratual. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Ano LXII. 2.021. Número 1. Tomo 1. p. 519.

[14] No âmbito do Código de Defesa do Consumidor, ainda que o consumidor não esteja sob preemente necessidade, ou não seja inexperiente, o simples fato de a prestação estar desproporcional já admite a modificação do contrato, tal como estabelece o artigo 6º, inciso V. Assim, sendo a relação consumerista, o consumidor estará sempre protegido.

[15] SILVA, Jorge Cesa Ferreira. A vulnerabilidade no Direito Contratual. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Ano LXII. 2.021. Número 1. Tomo 1. p. 519.

[16] MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo: RT, 2002. p. 270.

[17] A respeito da indeterminação de conceitos do projeto, recomenda-se a leitura de SILVA FILHO, Osny da. Paridade e simetria no Anteprojeto de Reforma do Código Civil. Revista Jurídica Profissional. Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. Volume Especial. 2024. p. 193 a 205.

[18] GOMIDE, Alexandre Junqueira. Risco Contratual e sua perspectiva na incorporação imobiliária. São Paulo: RT, 2023. p. 67.

[19] BECKER, Anelise. Teoria geral da lesão nos contratos. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 122.

[20] BECKER, Anelise. Teoria geral da lesão nos contratos. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 122-123.

[21] BECKER, Anelise. Teoria geral da lesão nos contratos. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 124.

[22] Segundo o autor: “o advérbio ‘manifestamente’ não pode, de forma alguma, ser ignorado. Embora o nosso legislador tenha se afastado das porcentagens romanas de Maximiliano, a desproporção exigida à lesão contratual não deve ser marginal. Afinal, é normal que as avenças permitam um jogo de interesse mais vantajoso para uma das partes e menos para outra. O que se impede, por vício de consentimento, não é este traquejo natural dos negócios, mas sim a desproporção gritante e manifesta (BIAZI, João Pedro. Lesão contratual em tempos de pandemia: uma necessária análise histórico-dogmática. Migalhas. Coluna Migalhas Contratuais. Publicado em 01 abr. 2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/323246/lesao-contratual-em-tempos-de-pandemia-uma-necessaria-analise-historico-dogmatica. Último acesso em: 9 jul. 2025.