Leonardo Anthero Auriema** e Artur Silva Boaretto***

  1. Introdução

Seria pouco intuitivo imaginar que uma proposta de alteração de um dispositivo da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), possa afetar diretamente a dinâmica do mercado de capitais brasileiro. Embora a legislação civil esteja diretamente introjetada na dinâmica realidade desse mercado, é natural associar potenciais impactos quando advindos de eventuais alterações na Lei nº 6.385, de 07 de dezembro de 1976 (Lei do Mercado de Capitais) ou, mais frequente em tempos recentes, na Lei nº 6.404, de 17 de dezembro de 1976 (Lei das S.A.). No entanto, a proposta contida no anteprojeto de lei para revisão e atualização do Código Civil[1], com o objetivo de alterar, entre outras, as disposições de um recentíssimo regime legal dos fundos de investimento (controverso desde a sua origem), tem o potencial de afetar o mercado de capitais diretamente, em um tempo no qual as regras introduzidas em 2019 ainda estão em vias de consolidação.

Para realizar essa análise, cabe destacar alguns pontos já discutidos depois da edição da Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019 (LLE, ou Lei da Liberdade Econômica), introdutora das disposições acerca dos fundos de investimento no Código Civil, com efeitos imediatos provocados por esse regramento. A seguir, convém destacar as peculiaridades dos fundos de investimento frente aos próprios pressupostos de aplicação da lei falimentar, de modo a avaliar o nível de compatibilidade entre ambos. Por fim, propõe-se uma conclusão acerca da pertinência da alteração legislativa proposta e possíveis alternativas.

  1. A tentativa de substituição do regime de insolvência civil dos fundos de investimento

Após a promulgação da LLE, que alterou o Código Civil nos artigos 955 a 965, para submeter os fundos de investimento ao regime da insolvência civil, a doutrina trouxe diversas críticas a essa escolha legislativa. Dentre essas críticas, destaca-se o anacronismo e a impropriedade dessa escolha para a realidade jurídico-econômica dos fundos de investimento[2], sendo que o anacronismo decorreria do fato de a insolvência civil requerer a aplicação, em conjunto, da legislação processual, que, nessa matéria, ainda faz remissão à codificação processual anterior (de 1973). A impropriedade, por sua vez, se fundamentaria no fato de as disposições do Código Civil remeterem a “dívidas contraídas por pessoas naturais”, embora boa parte dessas regras, além da pouca relevância prática geral, não tenham relação com a dinâmica dos fundos de investimento e, em termos gerais, seja um instituto[3]. Baseado nessas críticas, o Anteprojeto buscou remodelar o regime introduzido pela LLE sob o argumento de estar dando “tratamento mais adequado” para atender “aos reclamos do mercado interessado, com protagonismo para a Comissão de Valores Mobiliários (CVM)”[4].

O propósito não foi bem-sucedido. Substituir o regime da insolvência civil pela disciplina da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 (LRE) tende a trazer mais confusão e insegurança jurídica, caminhando no sentido oposto ao indicado pela justificativa ao Anteprojeto. Além das dúvidas acerca da possibilidade de harmonizar o regime jurídico falimentar com a função econômico-financeira dos fundos de investimento, a proposta de alteração não considera que a CVM já aprovou uma nova regulamentação sobre os fundos de investimento com base nas disposições atuais do Código Civil[5].

Com efeito, a Resolução CVM nº 175, de 23 de dezembro de 2022 (RCVM 175) introduziu disposições para regulamentar fundos de investimento com patrimônio negativo (ou seja, insolventes), com o fito de determinar as responsabilidades e as medidas a serem tomadas por prestadores de serviços essenciais e cotistas antes da eventual declaração de insolvência pelo fundo de investimento[6]. Ou seja: não só a regulamentação parte do pressuposto da possibilidade da submissão ao regime de insolvência disciplinado no Código Civil, fazendo expressa menção ao regime, como desenhou o processo tendo em vista esse mesmo regime. Logo, uma mudança para a LRE retira essa premissa da regulamentação e força, necessariamente, o regulador a um regime legal que não necessariamente corresponde à realidade dos participantes do mercado de fundos de investimento. Afinal, enquanto a adaptação da regulamentação à remissão legal ao regime da insolvência civil tem somente 11 artigos, a LRE representa um corpo legislativo especial com 201 artigos, tornando impossível que uma nova avaliação de impacto regulatório não seja feita.

Aponta-se à disparidade normativa entre o regime de insolvência civil e o regimento falimentar, pois, embora a aplicação do regime de insolvência, previsto no Código Civil, seja passível de críticas, o mercado já estava caminhando para se adaptar ao novo regramento, sobretudo tendo em vista a forma pela qual a CVM, depois de ouvir o mercado por meio de audiências públicas, direcionou a matéria, adaptando o regime legal anterior à realidade prática e à necessidade do mercado. Por essa razão, a mudança proposta não só está desalinhada com a expectativa do mercado: tem o potencial de provocar uma miríade de situações de insegurança jurídica.

  1. A função econômico-financeira dos fundos de investimento e o regime falimentar

Um dos pressupostos para a substituição do regime da insolvência civil pelo regime falimentar está contido na proposta de alteração do artigo 1.368-C do Código Civil, proposta no Anteprojeto. Na redação hoje vigente, a regra legal estabelece ser o fundo de investimento “constituído sob a forma de condomínio de natureza especial”, expressão que o Anteprojeto visa a suprimir. Além de, potencialmente, reacender o debate acerca da natureza jurídica dos fundos de investimento[7], o Anteprojeto aproxima o fundo de investimento ao regime jurídico das sociedades empresárias, sem estabelecer essa opção de forma clara e sistêmica na legislação. Comprova-o a remoção da menção ao condomínio de natureza especial, em conjunto com a alteração do §1º ao artigo 1.368-E, o qual extirpa a referência ao regime da insolvência civil e estabelece que os fundos de investimento serão regidos pela LRE[8].

Sem descurar a complexidade do debate em torno da natureza jurídica dos fundos – com autores respeitados a sustentar diferentes pontos de vista –, é necessário sublinhar que a defesa da natureza societária dos fundos de investimento não tem por consectário lógico a aplicação da legislação falimentar, como está implícito no Anteprojeto. Além da problemática apontada na seção anterior, não pode ser ignorada a função econômico-financeira desses fundos, gerando dúvidas sobre a adequação da sistemática construída para o regime falimentar das sociedades empresárias à dinâmica própria dos fundos de investimento[9].

Nesse sentido, bastante esclarecedor é o estudo de Milton Barossi Filho e Rachel Sztajn, que aborda a função econômico-financeira dos fundos de investimento pela perspectiva econômica e jurídica. Em síntese, os autores indicam que os fundos de investimento, desde o seu nascedouro, foram pensados como instrumentos (ou veículos) de captação agregada do capital necessário para as atividades produtivas em uma gama ampla de pequenos e médios poupadores. Têm a função de possibilitar que um conjunto disperso de investidores se agreguem em uma estrutura unitária e atuem no mercado de forma semelhante a que, no passado, somente grandes capitalistas poderiam atuar.

A rigor, não seria sequer necessário tomar posição no debate acerca da natureza dos fundos de investimento para argumentar sobre o despropósito de aplicação do regime de falência e recuperação judicial aos fundos de investimento. Como apontam Milton Barossi Filho e Rachel Sztajn, a função econômico-financeira dos fundos de investimento o aproxima de uma instituição financeira, argumentando:

“Perceptível que os fundos de investimento são instrumento de captação de volumes significativos de recursos, cuja finalidade é dúplice: fonte de financiamento para investimento em ativos e retornos ou resultados aos investidores. São instituições financeiras, portanto.”[10].

Ou seja, mesmo que, em termos formais, os fundos de investimento não se classifiquem como instituições financeiras em sentido técnico-jurídico[11], desempenham uma função econômico-financeira equiparável, intermediando a destinação de recursos de poupadores para agentes econômicos que necessitam de recursos, fazendo-o por meio de administradores e gestores fiduciários, responsáveis pela boa gestão de recursos de terceiros[12].

Esse dado é importante porque, como aludido anteriormente, a LRE expressamente exclui do âmbito de sua aplicação a “instituição financeira pública ou privada (…) e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores” (artigo 2º, inciso II). As particularidades das instituições financeiras e outras entidades expressamente excluídas do âmbito de aplicação dessa lei fundamentam um tratamento específico para cada um desses casos, feito no âmbito de legislação especial e da regulamentação desses setores econômicos, que além da satisfação dos respectivos credores, devem se preocupar com questões envolvendo risco sistêmico, tutela dos recursos oriundos da economia popular, dentre outros elementos que fundamentam a aplicação de um regime especial de encerramento de suas atividades[13].

Dessa forma, a mesma fundamentação jurídico-econômica que afasta a aplicação da LRE às instituições financeiras deveria orientar a perspectiva do legislador em relação aos fundos de investimento, ainda que opte por remover a sua caracterização como condomínio ou, até mesmo, como instituição financeira per se, uma vez que tais instrumentos de captação exercem função econômico-financeira típica dessas instituições, fundamentando um tratamento normativo diferenciado, inatendível pelo regime falimentar[14].

  1. Conclusão

Um fundo de investimento pode se tornar insolvente, com registro negativo em seu patrimônio líquido, sem que os ativos que compõem seu portfólio de investimento tenham, necessariamente, perdido seu valor de mercado e sua capacidade de geração de retornos positivos. Crises, volatilidades de mercado ou gestão temerária podem ter impactos negativos no balanço do fundo, situações nas quais a regulação pode intervir para comando e direção para a sua recuperação ou para a liquidação dos seus ativos para satisfação dos credores e pagamento aos cotistas.

A RCVM 175, fruto de uma análise técnica do regulador e com participação intensa e propositiva do mercado, já oferece um roteiro para tais situações, nos quais a eventual declaração de insolvência do fundo de investimento aparece como última medida, após uma série de procedimentos que fitam solucionar a questão de forma mais eficiente. Ao invés de propor a mera substituição do regime da insolvência civil pelo regime falimentar, um caminho mais salutar seria a concessão de prerrogativas interventivas ao regulador para casos extremos, construindo uma solução normativa por meio de contribuições da sociedade civil, do regulador e dos demais participantes de mercado. Além do mais, a exclusão de uma entidade do regime falimentar não significa que as normas na LRE não possam ser aplicadas analogicamente, sempre que a legislação ou a regulamentação cabível deixar de prever soluções[15].

A proposta do Anteprojeto, portanto, para além de visar a responder um tema que já não mais preocupava, traz proposta que, além de gerar insegurança, procura remeter os fundos de investimento a uma normativa legal cuja lógica não se harmoniza, em sua própria premissa de aplicação, com a função econômico-financeira dos fundos de investimento.

Outros elementos de dúvida na própria redação das propostas legislativas não tratados neste artigo ainda reforçam a cautela na abordagem do problema: ao fazer referência genérica à LRE, o Código Civil reformado estaria fazendo remissão apenas à aplicação do regime da falência ou também à recuperação judicial? Embora a nova redação proposta para o §1º do artigo 1.368-E tenha sido alterada para remover a menção ao regime da insolvência civil, o §6º do mesmo dispositivo volta a fazer referência à insolvência; nesse caso, seria o estado geral de insolvência ou a redação daria margem para se defender que o regime da insolvência civil permanece aplicável aos fundos de investimento?

Em nosso entendimento, eventual alteração dos artigos 1.368-C e 1.368-E só deveria ser feita após um debate mais aprofundado, propondo melhorias pontuais que permitissem um tratamento dos fundos de investimento em harmonia com outras entidades reguladas do mercado, respeitando os pressupostos da construção do sistema legal. Do contrário, tais propostas deveriam ser abandonadas, em razão dos efeitos de insegurança jurídica e incerteza para o mercado de fundos de investimento no Brasil.

** Advogado, Bacharel, Mestre em Ciências e Doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Especialista em Contabilidade e Finanças pelo FIPECAFI.

*** Advogado, Graduado em Direito e Mestrando em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Graduado em Direito pela Université de Lyon.

[1] Já há excelentes contribuições acerca de todos os aspectos que estão contidos no Anteprojeto acerca dos fundos de investimento, de modo que este artigo não tratará de todos os aspectos relativos aos impactos da proposta legislativa, tendo por foco a alteração que visa a aplicar aos fundos de investimento o regime jurídico da Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005 (LRE), por meio da alteração do artigo 1.368-E do Código Civil. Entre outros, cita-se o excelente artigo da professora Fernanda Mynarski Martins-Costa que, mesmo tendo uma opinião sobre este tema, faz uma análise ampla e aprofundada de importantes elementos contidos na legislação “Artigo 1.368-E do Anteprojeto de Reforma do Código Civil: responsabilidade no âmbito dos fundos de investimentos”. In: Revista Jurídica Profissional. Volume especial “O anteprojeto de reforma do Código Civil em debate” [recurso eletrônico] / Fundação Getulio Vargas, Escola de Direito de São Paulo. São Paulo: Fundação Getulio Vargas, 2024, p. 113-122. Outra importante contribuição é a de RENTERIA, Pablo, “A Reforma do Código Civil e os Fundos de Investimento”. In: XXXI Boletim IDiP-IEC. Disponível em: https://canalarbitragem.com.br/xxxi-boletim-idip-iec/a-reforma-do-codigo-civil/.

[2] Nessa linha opina XAVIER, Luciana Pedroso e SANTOS-PINTO, Rafael, “Art. 7º: Fundos de investimento. Art. 1.368, C, D, E”. In: MARQUES NETO, Floriano Peixoto; RODRIGUES JR., Otavio Luiz; e LEONARDO, Rodrigo Xavier, Comentários à Lei da Liberdade Econômica – Lei 13.874/2019, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 425-464.

[3] A mesma lógica argumentativa é trazida por GOUVÊA, Carlos Portugal. “Comentários aos artigos 1.368-C a 1.368-F do Código Civil: fundos de investimento na Lei da Liberdade Econômica”. In: MARTINS-COSTA, Judith e NITSCHKE, Guilherme Carneiro Monteiro, Direito Privado na Lei da Liberdade Econômica: Comentários, São Paulo: Almedina, 2022, p. 607-608.

[4] BRASIL, Relatório Final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, Brasília: Senado Federal, 2024, p. 296, disponível em: https://www12.senado.leg.br/assessoria-de-imprensa/arquivos/anteprojeto-codigo-civil-comissao-de-juristas-2023_2024.pdf.

[5] Nesse sentido, é cirúrgico o apontamento feito por Pablo Renteria: “Evidentemente, não se trata de negar espaço para aprimoramentos no texto legal, mas de reconhecer que as propostas formuladas não estão suficientemente maduras, nem se mostram, neste momento, oportunas. Isso porque o mercado ainda está se adaptando às inovações trazidas pela Lei de Liberdade Econômica, que foram objeto de regulamentação pela Comissão de Valores Mobiliários apenas em 2022, após um longo e minucioso procedimento de consulta pública, e que segue ainda hoje em período de transição. E diante de tal cenário, o início de um novo ciclo de reforma legal, antes mesmo de concluído o anterior, sobrecarregaria os participantes da indústria, bem como poderia comprometer a qualidade da proposição legislativa, pois, somente com o tempo, é possível decantar as efetivas insuficiências da atual disciplina legal”. RENTERIA, Pablo, “A Reforma do Código Civil e os Fundos de Investimento”, cit.

[6] Sendo oportuna breve menção, citam-se: (i) o imediato fechamento para resgates e não realização de amortização de cotas; e (ii) elaborar um plano de resolução do patrimônio líquido negativo, em conjunto com o gestor, cujo conteúdo contenha análise das causas e circunstâncias que resultaram no patrimônio líquido negativo e proposta de resolução para o patrimônio líquido negativo (cf. artigo 122 da RCVM 175).

[7] Há diversas obras e artigos abordando a controvérsia acerca da natureza jurídica dos fundos de investimento, apenas para referência, cita-se dois trabalhos recentes após a edição da Lei de Liberdade Econômica: CEREZETTI, Sheila C. Neder; YAMAJI, Crisleine Barboza e LIMA, Thaís Vieira. “Fundos de investimento: funções, natureza jurídica e distinções com outros institutos”. In: KUYVEN, Fernando, Direito dos fundos de investimento, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 19-44; XAVIER, Luciana Pedroso e SANTOS-PINTO, Rafael, “Art. 7º: Fundos de investimento. Art. 1.368, C, D, E, cit., p. 433-436; e NETO, Carlos Martins. Natureza jurídica dos fundos de investimento e responsabilidade de seus cotistas à luz da Lei de Liberdade Econômica: como ficou e como poderia ter ficado. In: HANSZMANN, Felipe; HERMETO, Lucas (Org.). Atualidades em direito societário e mercado de capitais: fundos de investimento. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021, p. 55-72.

[8] A relação entre o regime falimentar e a caracterização dos fundos de investimento como uma sociedade empresária já tinha sido feita antes do anteprojeto. É nessa linha que argumenta Carlos Portugal. “Comentários aos artigos 1.368-C a 1.368-F do Código Civil: fundos de investimento na Lei da Liberdade Econômica” cit., p. 608.

[9] A existência de personalidade jurídica não é elemento vinculativo ao regime falimentar, como bem apontam Vera Helena de Mello Franco e Rachel Sztajn. O próprio rol de “sujeitos excluídos” estabelecido no artigo 2º da LRE ratifica essa afirmação, excluindo do regimento falimentar, por exemplo, instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades (vide FRANCO, Vera Helena de Mello; SZTAJN, Rachel. Falência e recuperação da empresa em crise. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 19).

[10] BAROSSI FILHO, Milton; SZTAJN, Rachel. “Fundos de investimento: função econômico-financeira e natureza jurídica”, cit., p. 53-54.

[11] A Lei 4.595, de 31 de dezembro de 1964, estabelece em seu artigo 17 a caracterização de uma instituição financeira em seu aspecto funcional, o que poderia englobar, também, os fundos de investimento nesse sentido apontado por Milton Barossi Filho e Rachel Sztajn. No entanto, o artigo 25 da lei estabelece que as instituições financeiras devem se constituir como sociedades anônimas, um requisito formal que pelo desenho da legislação em vigor não pode ser cumprido.

[12] Evidentemente, se a comparação for entre o escopo de atuação das sociedades simples (atividade intelectual, de natureza científica, literária ou artística) e a sociedade empresária, parece claro que os fundos de investimento em sua atividade de intermediação e gestão de recursos de terceiros mais se aproxima de uma atividade empresarial; afinal, não existe dúvida de que as instituições financeiras exercem atividade de empresa. Ainda assim, com um entendimento diferente de Carlos Portugal Gouvêa em obra acima mencionada, entendemos que não deveria haver uma conexão linear entre a defesa da natureza societária dos fundos de investimento e a aplicação da LRE.

[13] No caso das instituições financeiras, os regimes especiais mencionados estão previstos na Lei nº 6.024, de 13 de março de 1974, que dispõe sobre a intervenção e a liquidação extrajudicial de instituições financeiras, o Decreto-lei nº 2.321, de 25 de fevereiro de 1987, que institui regime de administração especial temporária (RAET), nas instituições financeiras privadas e públicas não federais e a Lei nº 9.447 de 14 de março de 1997, que dispõe sobre a responsabilidade solidária de controladores de instituições submetidas aos regimes das leis que instituem os regimes especiais.

[14] Com isso, não se está afirmando que os fundos de investimento e as instituições financeiras sejam totalmente equiparáveis de modo que o regime jurídico das leis especiais mencionadas na nota anterior deva ser aplicado aos fundos de investimento. Há maior complexidade no trato de instituições financeiras, inclusive por conta do risco sistêmico envolvido na quebra dessas instituições. Não obstante, parte das medidas previstas na legislação especial para a crise de uma instituição financeira são passíveis de ser aplicadas aos fundos de investimento. A própria RCVM 175 estabelece que, em caso de insolvência, os cotistas de fundo de investimento podem decidir pela cisão ou incorporação de classe de cotas de fundos de investimento, como medida que objetiva sanar a insolvência. Tal medida é similar à possibilidade que instituições financeiras sofram interferência governamental para a venda de ativos e alienação de controle para agentes de mercado saudáveis, conforme aponta Eduardo Salomão Neto. A lei poderia permitir que a CVM tomasse medidas mais rigorosas em situações limítrofes, tendo em vista em casos extremos de gestão ruinosa de recursos e proteção dos investidores de mercado. Em qualquer cenário, a insolvência do fundo de investimento justifica a atuação de um regulador específico e não a remissão a um regime geral de falência ou recuperação judicial que prejudicariam a própria satisfação dos prejudicados pela insolvência do fundo, sobretudo quando se considera a necessidade de um procedimento judicial para endereçar o problema de insolvência. Para uma análise da especialidade do regime de insolvência das instituições financeiras, ver: SALOMÃO NETO, Eduardo. Direito Bancário, 3ª edição, São Paulo: Trevisan, 2020, p. 695-700.

[15] A possibilidade de aplicação analógica da LRE tem sido amplamente reconhecida pela doutrina desde sua promulgação em 2005 (TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; ABRÃO, Carlos Henrique (Coord.). Comentários à Lei de Recuperação Judicial de Empresas e Falência. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 6) até os dias atuais (TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de (Coord.). Comentários à Lei de Recuperação de Empresas. São Paulo: Revista dos Tribunais, Thomson Reuters, 2021, p. 7).