Catarina Monteiro Pires**[1]
- O negócio jurídico privado é uma autoregulação privada de interesses, expressão do exercício da autonomia privada das partes[2]. O negócio jurídico é um meio de autodeterminação. Essa conclusão resulta, por exemplo, (i) do sentido da declaração no domínio da anulação (negócios dolosos são anuláveis nos termos dos artigos 145.º e ss do Código Civil) e (ii) dos critérios de interpretação e integração (em particular, o artigo 113 parágrafo 2.º do Código Civil: as partes podem livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas das previstas em lei”), entre outras manifestações.
- O negócio jurídico compreende-se como o significado de um comportamento ou de uma ação, através de um duplo contexto: por um lado, o do reconhecimento de faculdades de determinação de efeitos e de sentidos (contexto normativo), por outro lado, o contexto comunicacional e atributivo de significado (contexto social).
- É amplo e complexo o domínio do direito das obrigações negociais. Dentro deste, o direito das obrigações empresariais, baseado largamente na celebração de negócios jurídicos, não visa a impor regras na preferência na circulação e ordenação de bens, nem visa a impor um sentido específico da modelação de condutas. No Brasil, a Lei da Liberdade Económica clarificou a expansividade e relevo do princípio da autonomia privada, designadamente no parágrafo único do artigo 421.º do Código Civil e no artigo 421.º-A do mesmo Código, suscitando o interesse de uma jurista estrangeira, como eu. O Código Civil português não contempla normas análogas, o alemão também não, o mesmo sucedendo com vários outros.
- Avançando um passo, reconhece-se que, nos contratos que colocam em jogo interesses do comércio internacional, podem ser relevantes fontes específicas, entre as quais avultam os usos do comércio internacional, sendo ainda conhecidas as referências à emergência de uma lex mercatoria ([3]). Trata-se ainda de um campo rico em formas de contratação padronizadas (como os modelos FIDIC) e em contratos com uma fisionomia socialmente típica, dotados de uma particular complexidade e função económica, a reclamar uma atenção particular do jurista.
- Ainda neste âmbito, surgem vários contratos mistos ou atípicos e, quanto a estes, uma coordenada central é a de que os mesmos são sempre contratos determinados, sem um regime supletivo globalmente aplicável, nem um “tipo” “predisposto a absorver” a particular regulação de interesses em presença ([4]).
- No coração do direito comercial internacional, estão os negócios de venda da empresa através das participações sociais. Há já vários anos que este domínio particular tem chamado a minha atenção, enquanto “laboratório” no qual se alcance, com particular nitidez, o significado de autonomia privada e liberdade contratual (e da diferença entre os dois conceitos).
- Em países de civil law, como o Brasil, a experiência dos negócios de aquisição de empresas tem oferecido ao jurista a formação de um modelo contratual especial em relação ao paradigma que resultaria da aplicação do Código Civil. Duplamente especial, posso mesmo afirmar: porque consagra soluções próprias, quando comparadas com as oferecidas pela lei, e porque essa especialidade resulta não da própria lei – que aliás, amiúde se revela ineficiente ou insuficiente no campo da comercialidade em apreço –, mas da própria liberdade contratual das partes.
- Julgo até que podemos mesmo considerar que o “negócio norma” traduzido na venda da empresa através da venda das participações sociais é, muitas vezes, um negócio “legalmente atípico”, porquanto o modelo construído pelos agentes económicos privados se distancia, em vários aspetos, dos modelos legais estaduais de compra e venda. Além disso, a natureza particular do objeto, mediato (empresa) e imediato (participações sociais) explicam que o referencial de base (compra e venda) seja modelado, adaptado e enriquecido em função de interesses comerciais particulares das partes. Por um lado, está em causa um negócio que internaliza uma determinada projeção de benefícios, que não só não perde de vista o dinamismo do objeto alienado, como o assume, enquanto base das valorações das partes. Por outro lado, nele se manifesta, em regra, uma ordenação e uma distribuição dos riscos de acordo com os interesses e preferências das próprias partes.
- Esta imagem surgiu-me com clareza ao refletir sobre o significado das cláusulas de “declarações e garantias” ou a utilização de cláusulas de “sole remedy”[5], nomeadamente as mais amplas, que pretendem atribuir máxima funcionalidade ao modelo contratual de reação à quebra de uma “declaração e garantia”, evitando as agruras de problemas resultantes de meios de reação desajustados, lacunas da lei, concursos de meios de reação, cúmulo de meios de reação, entre outros.
- O que acabo de dizer implica vários desafios ao jurista: a afirmação de que todos os problemas são problemas interpretativos pode ser falaciosa. Tudo começa pela interpretação, é certo[6], mas outros problemas acrescem. Há questões que se prendem com o sentido da liberdade contratual, outras com problemas do método de decisão, outras ainda com a compreensão do próprio complexo de fontes do direito nos negócios jurídicos internacionais. Creio, porém, que a maior parte delas não são apenas de “linguagem”, mas sim de método e de modelo de decisão e de aplicação do direito.
- O modelo contratual autónomo de “declarações e garantias” cria um mecanismo de distribuição de riscos particular, cuja violação ocasiona o aparecimento de direitos patrimoniais na esfera da parte beneficiária. Como já escrevi, as “garantias” têm na base um ato de comunicação de que um estado de coisas existe, através da fixação de caraterísticas ou qualidades de certo bem, ou conjunto de bens, de certo negócio ou de certa situação jurídica, conferindo ao comprador direitos adicionais em relação ao catálogo legal[7]. Não se trata, naturalmente, de garantias das obrigações, em sentido técnico, mas pode reconhecer-se a ideia geral de previsão de uma frustração ou de uma intencionalidade de acautelar um desvio a um plano. Funcionalmente, a “garantia” é muitas vezes estipulada não como uma vinculação do declarante a uma conduta de fazer, de entregar ou de não fazer, mas sim uma adstrição do declarante a realizar uma atribuição patrimonial a favor da contraparte caso a realidade não corresponda à “declaração e garantia”. Quando temos um sistema de “declarações e garantias”, a fonte dos direitos da compradora/ do comprador é a quebra da própria “declaração e garantia”. Dito de outro modo, uma “declaração e garantia” atribui uma vantagem ou um bem à compradora/ ao comprador (uma empresa “conforme à garantia”); quando a mesma é falsa, no próprio momento da declaração há uma supressão da vantagem constituída. Uma “declaração e garantia” comprovadamente inverídica provoca uma desconformidade.
- Se, após o fechamento de um negócio de transmissão das participações sociais, ocorrem quebras da declaração e garantia, pode surgir desde logo uma perturbação na atribuição de valor convencionada entre as partes que legitima o recurso a uma reposição de valor. Muitas vezes, a própria quebra da declaração e garantia traduz-se numa privação de valor. A subsunção dos mecanismos de atribuição patrimonial a certos quadros legais tradicionais pode falsear os resultados e a função das próprias estipulações. Quero com isto dizer que, muitas vezes apresentação de uma reclamação não requer a convocação dos conceitos funcionais de “indemnização”, “culpa”, “responsabilidade” e “dano”. No direito da responsabilidade civil, a reação jurídica assenta na violação de norma de conduta, apela a um desvalor objetivo que corresponde ao ilícito e exige uma supressão patrimonial que corresponda a um dano. Em vários casos de quebra de declarações e garantias, poderá pura e simplesmente estar em causa a verificação de um objeto diferente do declarado e prometido (prestação) e uma redução do preço (contraprestação). Dito de outro modo, a quebra da declaração e garantia ativa um mecanismo sinalagmático com reflexos no preço. Em outros casos, haverá uma atribuição patrimonial determinada pelas partes (compensação), mas que prescinde do quadro típico da responsabilidade obrigacional. Outras qualificações funcionais poderão surgir, dado que não há razão para supor que o domínio das atribuições patrimoniais se deve, todo ele, encerrar num tríptico fechado de restituição (nomeadamente por enriquecimento sem causa), indemnização, prestação.
- O comportamento das partes, ao celebrar o negócio, não visa a ativar a aplicação de um “modelo” pré-concebido: visa à produção de efeitos jurídicos, dentro de um feixe de faculdades dos sujeitos. Depois, o conteúdo do próprio negócio desenha-se com atribuições de significado que não resultam de uma norma anterior e que, na generalidade dos casos, sendo negócios jurídicos privados, não é confrontado com normas injuntivas, impositivas ou proibitivas. Esse conteúdo revela mecanismos funcionais que servem uma determinada ordenação de interesses: as “declarações e garantias” são um deles, mas não o único. “earn outs”, “covenants”, “conditions precedent” e outros instrumentos compõem um complexo de interesses que não se compreende empobrecendo-o por referência a mecanismos legais estaduais pré-existentes. Creio que faz falta um novo modelo, que apele a um pragmatismo funcional no direito das obrigações negociais (ou mesmo no Direito em geral).
** Professora da Universidade de Lisboa, autora de diversos livros, parecerista e árbitra.
[2] O que, por si só, não quer dizer que não estejam presentes outras vertentes, nomeadamente de tutela do tráfego jurídico. A vinculação ao sentido da promessa, traduzida numa declaração negocial, pode ser compreendida de três pontos de vista: como respeito por um ato de autonomia privada, como respeito pela confiança gerada na contraparte e finalmente à luz da sua relevância social ou de uma justificação institucional, no que respeita à disposição e ao aproveitamento de bens jurídicos.
[3] Roy Goode, “Usage and Transnational Commercial Law”, The Development of Transnational Commercial Law. Policies and Problems, Oxford, University Press, 2018, p. (263 ss), em particular p. 291 ss.
[4] Elevando como fonte a autonomia privada, Guilherme Carneiro Monteiro Nitschke, Lacunas contratuais e interpretação. História, conceito e método, Quartier Latin, 2019, p. 533.
[5] Catarina Monteiro Pires, Cláusulas de acordo integral e cláusulas de solução única ou de “remédio” único, UCP, Lisboa, 2020.
[6] Vide per totum a reflexão de Judith Martins-Costa, “O Método da Concreção e a Interpretação dos Contratos – Primeiras Notas de uma Leitura Suscitada pelo Código Civil”, in Temas Relevantes do Direito Civil Contemporâneo, São Paulo, Atlas, 2009.
[7] Catarina Monteiro Pires, Aquisição de Empresas e de participações acionistas – Problemas e litígios, Almedina, Coimbra, 2017, p. 63.