André Abelha**
O Relatório Final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil (“Anteprojeto”) foi recentemente entregue ao Presidente do Senado Federal, marcando o início da sua tramitação legislativa[1]. Um volume colossal de possíveis alterações. Somente no capítulo do condomínio edilício (artigos 1.331 e 1.358-A), além de ajustes de grafia, são 35 dispositivos modificados, revogados ou inseridos.
Em nome da brevidade e da clareza, comento apenas as alterações que considero mais impactantes, em formato quase telegráfico, e me valendo do recurso de tabelas, cada uma com três colunas, indicando o texto do Código Civil em vigor, o que consta do Anteprojeto, e à direita, o que penso ser o mais adequado, sem pretensão legislativa, e sim como forma de expressar as ideias postas no texto. Para lançar a reflexão. Pois não podemos ser apenas pedra; também temos de ser vidraça.
- Comentários à revisão do art. 1.332
Texto em vigor | Anteprojeto | Sugestão |
Art. 1.332. Institui-se o condomínio edilício por ato entre vivos ou testamento, registrado no Cartório de Registro de Imóveis, devendo constar daquele ato, além do disposto em lei especial: (…)
§1° Sem correspondência
§2° Sem correspondência |
Art. 1.332. Institui-se o condomínio edilício por ato entre vivos ou testamento, registrado no Cartório de Registro de Imóveis, devendo constar daquele ato, além do disposto em lei especial: (…)
§ 1º Ao condomínio edilício poderá ser atribuída personalidade jurídica, para a prática de atos de seu interesse. §2º São títulos hábeis para o registro da propriedade condominial no competente oficio de registro de imóveis, a escritura de instituição firmada pelo titular único de edificação composta por unidades autônomas e a convenção de condomínio, nos termos dos arts. 1.332 a 1.334 deste Código. |
Art. 1.332. Institui-se o condomínio edilício por ato registrado no Cartório de Registro de Imóveis, do qual deve constar, além do disposto em lei especial: (…)
§1º. O instrumento de instituição pode ser subscrito pelo titular único das frações ideais. §2º. Desde o registro da sua instituição o condomínio adquire capacidade para, em nome próprio, adquirir direitos e contrair obrigações de qualquer natureza. |
A primeira mudança relevante está na inserção, pelo Anteprojeto, dos parágrafos 1º e 2º no artigo 1.332. O §1º, com sabedoria, evita a armadilha do Projeto de Lei 3.461/19, que transforma o condomínio edilício em pessoa jurídica, e seus preocupantes efeitos colaterais. A atribuição de subjetividade, ou personalidade jurídica[2], é suficiente para permitir que o condomínio, por exemplo, registre imóveis em seu nome. O §2º, a seu turno, com inspiração no Enunciado 504 do CJF, esclarece que a reunião das unidades imobiliárias em nome de um só titular não impede a instituição do condomínio edilício, nem a outorga da convenção, a qual não tem natureza jurídica de contrato. As duas revisões são positivas. E ao mesmo tempo merecem aprimoramento.
O Enunciado 246 do CJF havia aperfeiçoado a redação do Enunciado 90, riscando a expressão “nas relações jurídicas inerentes às atividades de seu peculiar interesse”, deixando a parte inicial: “Deve ser reconhecida personalidade jurídica ao condomínio edilício”. Sim, pois a subjetividade vai além dos “atos de seu interesse”, e implica a capacidade do condomínio para responder, em nome próprio, pelas dívidas. Hoje só existe consenso sobre sua legitimação ad causam. Eis o problema: o texto agora proposto retroage ao Enunciado 90, abrindo fresta para polêmicas. Além disso, por que o Anteprojeto usa o verbo “poderá”? Quem decide se o condomínio terá subjetividade? Será possível decidir em sentido contrário? A subjetividade, se reconhecida por técnica legislativa, deve sempre surgir com a instituição do condomínio.
O texto proposto para o §2º requer igual atenção. O plural “São títulos” pode levar ao equívoco de se pensar que a convenção institui o condomínio. Convenção apenas regula, repetindo certas regras legais, excepcionando outras, quando permitido, e detalhando no espaço de autonomia privada que os condôminos possuem.
O caput art. 1.332 não foi objeto do Anteprojeto, mas também merece revisão. Assim como a convenção, o testamento não é título hábil para a instituição do condomínio. Se o testador a desejou, a criação do condomínio ocorrerá, na verdade, com o registro do instrumento de partilha[3], que dá cumprimento ao testamento. E seria adequado evitar a expressão “entre vivos”, colidente com a regra que autoriza a instituição pelo titular único das unidades imobiliárias, proposta pelo próprio Anteprojeto.
Daí a sugestão, na tabela acima, de revisar o caput e os parágrafos 1º e 2º.
- Comentários à revisão do art. 1.333
Texto em vigor | Anteprojeto | Sugestão |
Art. 1.333. A convenção que constitui o condomínio edilício deve ser subscrita pelos titulares de, no mínimo, dois terços das frações ideais e torna-se, desde logo, obrigatória para os titulares de direito sobre as unidades, ou para quantos sobre elas tenham posse ou detenção.
Parágrafo único. Para ser oponível a terceiros, a convenção deverá ser registrada no cartório de registro de imóveis. |
Art. 1.333. A convenção que constitui o condomínio edilício deve ser subscrita pelos titulares de, no mínimo, dois terços das frações ideais e torna-se, desde logo, obrigatória para os titulares de direito sobre as unidades, ou para quantos sobre elas tenham posse ou detenção.
Parágrafo único. A convenção de condomínio não registrada é eficaz para regular as relações entre os condôminos, mas para ser oponível a terceiros e a futuros adquirentes deverá ser registrada perante o oficial do Cartório de Registro de Imóveis. |
Art. 1.333. A convenção do condomínio, subscrita pelo titular único, ou por titulares de, no mínimo, dois terços das frações ideais, torna-se, desde logo, obrigatória para todos os condôminos, possuidores e detentores de unidades ou de partes comuns.
P. único: Manter texto em vigor. |
O Anteprojeto tem o mérito de explicitar que o futuro adquirente de unidade se submete à convenção de condomínio existente, independentemente de seu registro. Porém, a redação adotada (“para ser oponível… a futuros adquirentes deverá ser registrada”) permite a perigosa interpretação de que o adquirente não se submete à convenção sem prévio registro. Um risco desnecessário, que poderia aumentar o desrespeito às normas condominiais.
Sugestão: revisar o caput a partir dos comentários do Capítulo 1 (redação sugerida na tabela); regular a sujeição do adquirente à convenção no art. 1.345 (Capítulo 4, abaixo); e manter o parágrafo único em vigor.
- Comentários à revisão do art. 1.336
Texto em vigor | Anteprojeto | Sugestão |
Art. 1.336…
VI – Não há
VIII – Não há
§1º. O condômino que não pagar a sua contribuição ficará sujeito aos juros moratórios convencionados ou, não sendo previstos, os de um por cento ao mês e multa de até dois por cento sobre o débito.
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Art. 1.336…
VI – não permitir a entrada de pessoas em sua unidade, que tenham sido apenadas na forma do art. 1.337 deste Código e seus parágrafos
VIII – noticiar o condomínio sobre ter alienado a unidade, sob pena de continuar a responder pelas despesas condominiais.
§1º. Nos condomínios residenciais, o condômino ou aqueles que usam sua unidade, salvo autorização expressa na convenção ou por deliberação assemblear, não poderão utilizá-la para fins de hospedagem atípica, seja por intermédio de plataformas digitais, seja por quaisquer outras modalidades de oferta. |
Art. 1.336…
VI – Não inserir
VIII – Não inserir
§1º. O condômino que não pagar a sua contribuição ficará sujeito aos juros moratórios convencionados ou, não sendo previstos, os de um por cento ao mês e multa de até dez por cento sobre o débito, vedada a estipulação de cláusula de desconto em razão da antecipação de pagamento. |
No art. 1.336, que trata dos deveres do condômino, a revisão tem méritos e problemas:
- Inciso VI: O locatário e o comodatário podem ser judicialmente afastados do condomínio, e em tais casos o novo dispositivo impõe ao titular da unidade a obrigação expressa de não permitir a entrada deste. Mas, na prática, a mudança sugerida realmente reforçaria a eficácia da ordem judicial? Como o inciso é genérico, a obrigação se aplica a todos os demais condôminos? Aplica-se também ao promitente vendedor, ao nu-proprietário e ao credor fiduciário? Havendo 52 multiproprietários da unidade, o que acontece? O proprietário também teria que agir em caso de mera aplicação de multa pelo condomínio? Como o titular da unidade não pode usar força física, estaria ele obrigado a ingressar em juízo e obter uma segunda ordem judicial? Que fatos o novo juiz deverá apreciar para (in)deferir a liminar e, ao final, julgar (im)procedente o pedido?
- Inciso VIII: O p. único do art. 4º da Lei 4.591/64, hoje em vigor, estabelece que a transmissão da unidade depende de prova de quitação das obrigações condominiais. Ainda assim, trazer a regra para o Código Civil, aprimorando-a, é algo elogiável. Contudo, aqui surgem mais perguntas do que respostas: Por que o termo despesas em vez de débitos? A obrigação surge somente com a conclusão da alienação, ou desde o contrato preliminar com imissão na posse? Qual o nexo causal entre a falta de aviso e a inadimplência do adquirente? Se o aviso for feito pelo adquirente, como geralmente ocorre, ou se comprovado o conhecimento do condomínio, o alienante ainda assim seguirá responsável? O assunto deveria ser regulado no art. 1.336 (deveres) ou no art. 1.345 (responsabilidade)?
- §1º e 2º: O Anteprojeto eleva a multa moratória para 10%, patamar mais adequado para inibir a inadimplência condominial, e veda a cláusula de desconto por pagamento antecipado, já sedimentada na jurisprudência. Entretanto, a discussão sobre a legalidade da locação de curtíssima temporada sem autorização do condomínio, incluindo sua natureza jurídica, ainda não se encontra suficientemente madura na doutrina e jurisprudência, e sua positivação soa prematura. Além disso, a remissão ao polêmico art. 406, em vez de manter o percentual de 1% para os juros moratórios, em caso de silêncio da convenção, aumentará a insegurança quanto aos juros aplicáveis. Há mais: a expressão “aquele que não fizer o reembolso de valores a que foi condenado a pagar ao condomínio, a qualquer título” poderá trazer discussões inconvenientes, pois se há condenação, fluem os juros e a multa pelo descumprimento da sentença.
Portanto, o ideal seria não incluir os incisos VI e VIII; e alterar a redação do §1º, conforme sugerido na tabela acima.
- Comentários à revisão do art. 1.345
Texto em vigor | Anteprojeto | Sugestão |
Art. 1.345. O adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multas e juros moratórios.
§1° Sem correspondência
§2° Sem correspondência |
Art. 1.345. O adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multas e juros moratórios, observado o disposto no artigo 502 deste Código, em caso de alienação onerosa.
§1° Consideram-se adquirentes, para os fins de aplicação deste artigo, o devedor fiduciante e o arrendatário, nos casos de alienação fiduciária de bens imóveis e de arrendamento mercantil
§2° O comprador, promitente comprador ou cessionário, portadores de títulos que não estejam registrados no Registro de Imóveis, serão os únicos responsáveis pelo pagamento das cotas condominiais, se ficar comprovado que se imitiram na posse do bem ou que o condomínio teve ciência inequívoca dos negócios jurídicos celebrados, como, por exemplo, pela comunicação a que alude o inciso VIII do art. 1.336, deste Código. |
Art. 1.345. O adquirente da unidade sujeita-se às regras condominiais legais e à convenção de condomínio, registrada ou não, e responde pelos eventuais débitos condominiais do alienante, inclusive multas e juros moratórios.
§1° Considera-se adquirente, para os fins de aplicação deste artigo, o devedor fiduciante e outros titulares de direito real sobre a unidade, desde que imitidos na posse, ou com direito a sê-lo, ainda que seu título aquisitivo esteja pendente de registro no Registro de Imóveis.
§2° Não inserir |
A mudança do Anteprojeto tem o correto objetivo de explicitar a obrigação do comprador, ou do titular de direito real e imissão na posse, de arcar com o pagamento das despesas condominiais, mesmo sem o registro do título. Apesar disso, a redação proposta pode ser um problema.
Segundo o art. 502, o vendedor, “salvo convenção em contrário, responde por todos os débitos que gravem a coisa até o momento da tradição”. Aqui há uma confusão conceitual e de relações jurídicas. O art. 1.345 em vigor responsabiliza o adquirente perante o condomínio, pelos débitos que já são do alienante. O art. 502, por sua vez, responsabiliza o vendedor perante o comprador. A proposta mistura as duas relações jurídicas, permitindo que o vendedor se exima do seu débito, e tem o potencial de gerar insegurança nas cobranças condominiais, complicando o que hoje é simples.
Ainda: a revisão do §2°, se mantida como está (“serão os únicos responsáveis pelo pagamento das cotas condominiais”), contrariará a posição pacificada no Superior Tribunal de Justiça, que permite ao condomínio cobrar a dívida também do promitente vendedor[4]. Não apenas isso. Se os “portadores de títulos que não estejam registrados” serão “os únicos responsáveis”, o que acontece se o título for registrado? Quem, nesse caso, será também responsável? Qual a lógica? E se o condomínio tiver “ciência inequívoca dos negócios jurídicos celebrados”? O promitente comprador ainda não imitido na posse será desde então responsável? Vale a pena criar tantas dúvidas?
Uma solução é aumentar a abrangência do caput do art. 1.345, para que ele vá além da mera responsabilidade, redigindo-se o §2° como sugerido na tabela acima, para vincular o titular de direito real sobre a unidade, com imissão ou direito à posse, ainda que seu título esteja pendente de registro junto à matrícula imobiliária da unidade.
- Comentários à revisão do art. 1.351
Texto em vigor | Anteprojeto | Sugestão |
Art. 1.351…
Sem correspondência |
Art. 1.351…
Parágrafo único. Nos casos em que as alterações previstas no caput forem pedidas pelo Poder Público, para os fins de aproveitamento de edificação subutilizada, será suficiente a aprovação por maioria simples dos condôminos. |
Art. 1.351…
Parágrafo único. Quando a conversão de uso estiver inserida no âmbito de programa de requalificação urbanística, será suficiente a aprovação por 2/3 dos condôminos presentes na assembleia. |
O Anteprojeto, em boa hora, objetiva facilitar a conversão de uso em projetos de requalificação urbana[5]. A redação, porém, traz duas preocupações. Em primeiro lugar, a conversão de uso é iniciativa do particular, e não do Poder Público, o que poderia tornar a nova regra raramente aplicável na prática. Ademais, se 2/3 do total, por um lado, é um quórum exagerado, por outro a maioria simples dos presentes é um quórum excessivamente baixo para uma mudança tão relevante, que requer consenso relevante dos condôminos, ao menos daqueles presentes na assembleia. Finalmente: como ficam os condôminos divergentes?
Sugestão: ajustar a redação do Anteprojeto, conforme indicado na tabela acima. Além disso, seria importante regular o direito dos condôminos divergentes, a fim de evitar insegurança.
Conclusão
Não sabemos se e quando teremos um novo Código, nem sabemos a dimensão final da sua revisão. A comunidade jurídica precisa discutir o Anteprojeto amplamente, até que as milhares de indagações provocadas pelo texto estejam suficientemente maduras e decantadas, prontas para deliberação legislativa.
Nesse contexto é que escrevo este artigo, tão curto quanto propositivo, com a esperança de que as preocupações aqui levantadas, e as sugestões atrevidas, imperfeitas ou não, possam contribuir para o debate em prol do melhor texto que pudermos ter. Um texto que transborde regras claras e coerentes.
Afinal, de um Código Civil esperamos mais estabilidade que inovação. Se tivermos que revisá-lo, que seu produto represente um efetivo avanço, evitando o mergulho no poço das dúvidas infindáveis. Que saibamos aproveitar tudo de bom que o Anteprojeto traz, aperfeiçoando o que for necessário, sempre em busca do essencial: segurança jurídica. O caminho à frente tem areias movediças e outros perigos, mas pode ser bem percorrido, se não for corrido. Cabe a todos nós.
**Fundador e Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM. Presidente do Comitê de Desenvolvimento Imobiliário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem – CBMA. Program on Negotiation and Leadership pela Harvard University. Mestre em Direito Civil pela UERJ. Professor convidado nos cursos de pós-graduação e extensão em Direito Imobiliário da PUC Rio, UERJ, EMERJ e outras instituições. Atualizador do livro Condomínio e Incorporações, de Caio Mario da Silva Pereira. Advogado. https://taggo.one/andreabelha.
[1] Na data de publicação deste artigo não havia, no website do Senado Federal, projeto de lei com número.
[2] Não há consenso na doutrina sobre os termos: OLIVA, Milena Donato. Condomínio edilício e subjetividade: análise crítica da categoria dos entes despersonalizados. In: Direito Civil – Direito UERJ. Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho et al (coord.). Rio de Janeiro: Freitas Bastos e UERJ. Vol. 2, p. 349-374, 2015).
[3] Assinado nos autos e homologado pelo juiz, em caso de inventário judicial, ou por escritura pública, se o inventário for extrajudicial.
[4] Por exemplo: “A jurisprudência desta Corte evoluiu no sentido de que, uma vez demonstrado que o promissário comprador imitiu-se na posse do bem e sendo comprovado que o condomínio teve ciência inequívoca da transação, há legitimidade passiva concorrente de ambos os contratantes para responder por despesas condominiais relativas ao período em que a posse foi exercida pelo promissário comprador” (AgInt no REsp 1219742/PRRel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 15/08/2017, DJe 22/08/2017)
[5] Sobre o tema, ver: CHALHUB, Melhim; ABELHA, André. Projetos de retrofit e conversão de uso em condomínios pulverizados: como superar o desafio da unanimidade? Disponível em https://www.migalhas.com.br/arquivos/2021/7/567D1974B8E7F7_edilicias.pdf. Acesso em 24.04.2024.