Alfredo de Assis Gonçalves Neto**
- Introdução
Esta exposição, dividida em duas partes, tem o exclusivo propósito de evidenciar alguns dos muitos problemas que precisam ser considerados na tramitação dessa proposta de reforma do Código Civil pelo Congresso Nacional. Não é exauriente e também não aborda pontos favoráveis, que pretendo ressaltar em outra oportunidade.
Antes de tudo – e essa é a opinião de uma grande parte dos advogados brasileiros, conforme nota divulgada por várias entidades que os representam[1] –, o conteúdo, a complexidade e a amplitude do anteprojeto de reforma preocupam e recomendam profundos debates a respeito, tanto nas comissões das duas casas legislativas como em audiências públicas das mais diversas categorias profissionais, para que revelem, tanto quanto possível, a extensão dos efeitos que podem resultar das incontáveis mudanças propostas. Só assim será possível pinçar as alterações que efetivamente refletem as aspirações da comunidade para a qual se destinam, sem distorções oportunistas, vaidosas ou ocasionais, descompassadas da realidade que visam a regular.
Não é hora de promover uma mudança tão extensa sobre temas tão variados de um ramo do direito que regula a vida dos cidadãos, mas de buscar ajustes que reclamam, de fato, a intervenção do legislador nacional.
Também é preciso considerar que não se deve mexer em regras com o fito de lhes acrescentar inutilidades, como se pode observar em numerosíssimas passagens do anteprojeto, a exemplo do que se vê na nova redação proposta para o art. 966 (que substitui o conceito de empresário pelo de empresa, como organização dos fatores de produção, notadamente por se saber que todo o texto do Código Civil pautou-se no perfil funcional da empresa, como atividade exercida pelo empresário), para o art. 972 (que altera “Podem exercer a atividade de empresário” para “Podem ser empresários”), para o art. 974, inc. I (que à proibição de o incapaz administrar uma sociedade, nele já prevista, acrescenta “mas fica ressalvada a hipótese de eventual cessação da incapacidade …”), para o art. 977 (que passa a permitir a celebração da sociedade entre cônjuges e conviventes sem limitações, quando bastava, simplesmente, revogá-lo, notadamente à luz do princípio, que é introduzido no art. 966-A, inc. III, “da autonomia privada, que somente será afastada se houver violação de normas legais de ordem pública”), para o art. 982 (que às palavras “Salvo exceções expressas” acrescenta “neste Código ou em lei especial”), para o art. 1.026, parágrafo único (que determina a liquidação da quota do devedor, se a sociedade não estiver dissolvida, acrescentando essas expressões, em boa parte incongruentes e totalmente desnecessárias: “mediante pedido de dissolução parcial, sub-rogando-se automaticamente e de pleno direito nos direitos do devedor, com todos os acessórios da dívida”), para o art. 1.088 (que comete um surpreendente erro de concordância verbal ao substituir “cada sócio ou acionista…subscrever ou adquirir” por “cada sócio ou acionista …subscreverem ou adquirirem”), para os arts. 1.032, 1.064, 1.066, § 1º, 1.072 (que dizem o que já está dito com redação mais confusa, redundante ou pior) etc. etc. etc.
Uma atenção especial a essas absurdidades, possivelmente debitáveis ao curto espaço de tempo previsto para a hercúlea tarefa, reduziria em boa medida a extensão dessa pretendida reforma.
O ideal é realizar alterações pontuais, como acontece em outros países, evitando, com isso, que inúmeros “jabutis” passem sem a necessária avaliação de sua conveniência.
- O perigo da simplificação pela adoção, sem maior exame, de orientações jurisprudenciais
Não me parece acertado, por igual, consagrar em lei uma orientação jurisprudencial, por mais prestigiada que seja, pelo só fato de ter essa origem, porque não tem a necessária visão abrangente do tema sobre que versa, própria das disposições legislativas, mas compartimentada, sujeita às vicissitudes reveladas no exame de casos concretos. A percepção do geral é inerente ao estudo sistemático do direito, à visão da realidade e a outros fatores, que o hermetismo dos Tribunais não sintoniza, os quais, com o tempo, sedimentam-se e influem no aperfeiçoamento das normas jurídicas. No entanto, sendo encampada pela lei uma orientação pretoriana, ela se torna imutável, ou quase isso, dada a natural inércia do legislador em responder prontamente aos anseios dos destinatários de seu trabalho.
Um exemplo emblemático do que acabo de dizer ocorreu com a adoção, pelo Código de Processo Civil de 2015, de orientação sufragada pelo STJ e seguida à risca por muitos tribunais do País, que, em ação impropriamente denominada de dissolução parcial de sociedade, sustentou a necessidade de citação dos sócios (art. 601). Isso passou a impossibilitar sua propositura contra sociedades com numerosos sócios ou acionistas (uns falecidos, outros residentes no exterior, outros mais em lugar incerto e não sabido etc.). E trouxe à balha outro problema, ainda não totalmente superado, consistente em responsabilizar pessoalmente demais os sócios pelo cumprimento da sentença por figurarem como partes (litisconsortes passivos) na demanda.
Também a incorporação da jurisprudência prevalecente, que agasalhou a dissolução parcial para identificar casos de desligamento de sócios, restou desastrosa. O vigente Código Civil eliminou as causas de dissolução marcadas pelo individualismo jurídico reinante ao tempo de nosso Código Comercial oitocentista, regulando-as em capítulo próprio, como causas de resolução, melhor dizendo, de desligamento de sócio ou, ainda, de rompimento do vínculo societário em relação a um sócio (arts. 1028 a 1.032), reunindo as de dissolução societária, propositalmente, em capítulo distinto (arts. 1.033 a 1.038). Consequentemente, deixaram de ser causas de dissolução (inclusive parcial, porque da dissolução não mais derivam) a retirada, a exclusão, a incapacidade e o falecimento de sócio. No sistema atual, só se deve falar em dissolução parcial se ocorrer de uma das causas dissolutórias não imperativas previstas nos arts. 1.033 a 1.035. Como se vê, aí prevaleceu, novamente, a jurisprudência para incorporar às normas processuais uma ação de dissolução parcial de sociedade, que em nada se aproxima da de dissolução (total), como se mudança não tivesse havido, ignorando, olimpicamente, a previsão legal de liquidação da quota do sócio. Isso tem causado inúmeras distorções, como, v. g., considerar que tal dissolução parcial (desligamento de sócio mediante pagamento de haveres) é meio de … preservar a empresa!
- O direito de retirada do art. 1.077
E é o que está sendo proposto no anteprojeto sob exame. Para não delongar com muitos exemplos, colho um de minha predileção: a alteração do art. 1.077 do Código Civil, para ajustá-lo à orientação da jurisprudência predominante, segundo a qual, na sociedade limitada aplica-se, também, seu art. 1.029.
Em uma rápida digressão, não custa recordar que, ao dispor sobre o regime jurídico da sociedade simples, o legislador previu a possibilidade de seus sócios desligarem-se da sociedade por denúncia unilateral, tendo em conta o risco de responderem com todo seu patrimônio pelas obrigações assumidas pela sociedade (CC, arts. 1.023 e 1.024). Não é o caso da sociedade limitada, em que os sócios respondem pela integralização das quotas que subscreverem e, excepcionalmente, pela efetiva integralização do capital social, caso os demais sócios não o façam (arts. 1.052 e 1.055, § 1º), cingindo-se o risco, então, à perda do que apostaram. Precisamente por isso, o codificador previu que a retirada, neste último tipo societário, só é permitida em caso de dissenso quanto a alguma alteração do contrato social. Já era assim na égide do regime anterior (Dec. 3.078/1919, art. 15, primeira parte), mas, como o Código Comercial, então vigente, permitia a dissolução de qualquer sociedade contratual por vontade unilateral dos sócios (art. 335, n. 5), essa regra virou letra morta.
Ao entrar em vigor o Código de 2002 muitos operadores do direito continuaram com o pensamento impregnado pelo regime revogado, sustentando a possibilidade de o sócio da sociedade limitada (e, por mais absurdo que pareça, da anônima), exercer livremente seu direito de retirada com amparo no referido art. 1.029. Ora, o regime jurídico da sociedade limitada é o que está nos arts. 1.052 e seguintes, o qual dispõe sobre o direito de retirada a uma casuística (art. 1.077) que, na ausência de qualquer distinção, não permite recorrer ao da sociedade simples para regulá-lo. Só nas omissões do respectivo capítulo – e não há omissão – é que a sociedade limitada pode ser regida supletivamente pelas normas da sociedade simples (art. 1.053).
O anteprojeto propõe a modificação do art. 1.077 para acolher essa erronia e, assim, deixa evidente a incongruência. De fato, ao dispor que “Sem prejuízo das hipóteses previstas no art. 1.029 deste Código, o sócio que dissentiu quanto à modificação do contrato” pode retirar-se da sociedade “nos trinta dias subsequentes à reunião”, melhor faria se tivesse revogado o art. 1.077. É que, se o art. 1.029 é aplicável incondicionalmente, qual o sentido de ser mantida essa regra especial? Mais ainda: a prevalecer a proposta, se houver uma modificação do contrato social da sociedade limitada, capitulando-se, assim, uma das causas de retirada do art. 1.077, qual a razão de ser estabelecido um prazo decadencial (cujo escoamento acarreta a perda do direito) de 30 dias para seu exercício se, ainda assim, a retirada pode ser exercida posteriormente, a todo tempo, com base no art. 1.029?
É bem verdade que, para justificar a aplicação do art. 1.029 à sociedade limitada, os arautos dessa orientação sustentam que o art. 1.077 aplica-se à sociedade limitada de prazo determinado, que naquele é ressalvada. O anteprojeto procura dar consistência a esse entendimento, pois o art. 1.085-C repete a redação do art. 1.029 em relação à sociedade ajustada por tempo indeterminado, restringindo, em seu parágrafo 1º, a aplicação do art. 1.077 às ajustadas por prazo determinado. Adotada essa tese, não há razão para manter esse artigo, a não ser com redação restritiva para contemplar, apenas, as raras hipóteses de retirada de sócio de sociedade limitada com prazo determinado de duração.
- A sociedade civil (arts. 982 e 983)
É recriada a sociedade civil sem serem extintas as disposições da sociedade simples. Num primeiro momento, parece ter havido uma desatenção, mas, pensando melhor, imagino que a ideia foi reservar a sociedade simples para a função de sociedade-tronco, sociedade-base, cujas normas destinam-se a suprir as eventuais lacunas do regramento das demais sociedades; a sociedade civil, nesse contexto, passa a fazer as vezes do tipo destinado a abrigar as sociedades não empresárias. Assim, a intenção é separar, com nomes diversos, as duas funções que o Código Civil atribui àquela que denomina de sociedade simples.
Talvez a proposta esteja inspirada no Código Suíço das Obrigações que, ao tratar da sociedade simples, considerou-a como sendo aquela que não se enquadra em nenhum dos tipos de sociedade comercial e é destinada a servir de fonte para qualquer outra que venha a ser constituída sem observância das disposições inerentes às tipificadas. Porém, lá o sistema é diverso e não me parece que isso tenha qualquer relevância, pois a distinção que é sugerida resume-se ao nome de batismo. Qual a razão de não permitir que a sociedade simples cumpra os dois papeis que o Código lhe atribuiu – fato já absorvido pela comunidade jurídica nacional? Mudando o nome, muda alguma coisa? Basta ver que, segundo o projeto, a sociedade civil pode constituir-se de conformidade com um dos tipos de sociedade empresária e, “não o fazendo, subordina-se às normas da sociedade simples.” Interessante notar que, mantida a dualidade de registros, a sociedade poderá ser simples ou civil, consoante a opção que se fizer por um ou outro órgão registrador. (Ver n. 7, a ser publicado na segunda parte deste artigo)
Vingando a proposta nesse ponto, normas, como a do Estatuto da Advocacia, que tiveram suas disposições alteradas para tratar das então denominadas sociedades civis como sociedades simples (Lei 8.906/1994, art. 15), ficarão desatualizadas…
- Eliminação de tipos societários
É indicada a revogação dos artigos que dispõem sobre a sociedade em nome coletivo e em comandita simples. Não há nenhuma justificativa para tanto, senão o fato de serem tipos de pouco ou nenhum uso. Ora, como se sabe, o direito brasileiro e a maioria dos que são filiados ao sistema europeu-continental adotam o princípio da tipicidade, segundo o qual só podem ser celebradas sociedades segundo os modelos traçados pela lei para que todos saibam de pronto, e sem maiores investigações, quais os direitos e obrigações que de cada qual emanam. Eliminar um tipo significa eliminar uma opção de escolha – o que não faz qualquer sentido. Basta lembrar que a sociedade em conta de participação, quase relegada ao esquecimento há alguns anos, tem sido muito prestigiada nos dias atuais.
Indo além, os outros tipos societários continuam sendo bastante utilizados em países como a França, a Itália, Portugal, Argentina etc. A dupla categoria de sócios tem propiciado acomodar os investidores em sociedades marcadamente pessoais, como as de profissões intelectuais. Aliás, recordo que propus e foi aceita pela comissão incumbida de elaborar o anteprojeto de Código Comercial para o Senado Federal (PLS 487/2013), a criação de um tipo próprio para abrigar (i) as pessoas que exercem profissão intelectual, atribuindo a elas o comando e a responsabilidade ilimitada pelas obrigações da sociedade e (ii) os investidores, estes sem ingerência nos negócios sociais e com responsabilidade limitada às suas prestações. Esse vazio legislativo é fruto do modo de pensar que se enraizou entre nós sobre a utilização de um tipo como a sociedade em comandita.
O mais surpreendente, porém, é que o legislador irá decretar a limitação de responsabilidade dos sócios para todas as sociedades empresárias, de modo que aqueles que se quiserem reunir em uma sociedade com o propósito de dar maior crédito ao empreendimento empresarial que será desenvolvido, assumindo pessoalmente a responsabilidade subsidiária pelo pagamento das obrigações por ela contraídas, não mais poderão contar com um tipo destinado a tanto, como a sociedade em nome coletivo, nem mesmo com a comandita por ações, que também irá desaparecer, como se verá a seguir.
- O cochilo na manutenção da sociedade em comandita por ações
O art. 1.090 do Código Civil, dispondo sobre a sociedade em comandita por ações, estabeleceu que ela é regida “pelas normas relativas às sociedades anônimas, sem prejuízo das modificações constantes deste Capítulo.” Esse enunciado evidencia que as normas relativas à comandita por ações, que se encontravam na Lei das S. A. deixaram de viger, transpostas que foram para um capítulo próprio do Código Civil. Ao alterar o art. 1.090 para dizer a sociedade em comandita por ações “tem o capital dividido em ações e rege-se e pelas normas relativas à sociedade anônima”, o anteprojeto cai no vazio, uma vez que revoga os atuais artigos que identificam a comandita por ações (arts. 1.091 e 1.092) e não há mais outros que as regulem.
Não se diga que o problema poderia ser contornado substituindo-se as “normas relativas à sociedade anônima” pelas “normas dos arts. 280 a 284 da Lei 6.404/1976”, pois estas, uma vez revogadas pela parte que se pretende suprimir do art. 1.090, não se repristinam.
É bem verdade que a Lei 14.195/2021, desatenta ao comando do mencionado art. 1.090, restaurou o art. 284 da Lei das S. A., mas o fez exclusivamente para não permitir que a comandita por ações emita ações com voto plural – preceito insuficiente para descrever o tipo e para determinar seu regime jurídico.
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** Professor Titular de Direito Empresarial na UFPR.
[1] Associação dos Advogados de São Paulo, Centro de Estudos das Sociedades de Advogados, Instituto dos Advogados Brasileiros, Instituto dos Advogados de São Paulo, Movimento de Defesa da Advocacia e Sindicato das Sociedades de Advogados do Estado de São Paulo e do Rio de Janeiro. Disponível em: https://bit.ly/4wnm7w, acesso em 22.05.2024.