Alfredo de Assis Gonçalves Neto**

(Nota ao leitor: na Parte I deste artigo, além da crítica ao momento e forma pela qual a proposta de alteração do Código Civil tem sido conduzida, tratou-se de objeções específicas relacionadas, em síntese, à adoção de posições jurisprudenciais, à modificação proposta ao art. 1.077 e à supressão de tipos societários)[1].

 7. A unificação do registro das sociedades

Em sua nova redação, o art. 985, como norma geral, prevendo a aquisição de personalidade jurídica da sociedade com sua inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis, está a indicar que toda a sociedade, seja ela empresária ou civil (ou simples), deve sujeitar-se a esse órgão, ficando o Registro Civil de Pessoas Jurídicas apenas para as demais pessoas jurídicas de direito privado (associações e fundações).

Tal proposta seria muito boa. Dá-se, contudo, que não é prevista uma alteração no art. 998, que determina a inscrição da sociedade simples no Registro Civil de Pessoas Jurídicas. Também o art. 1.150, em sua redação atual, continuará vinculando a sociedade “simples” a esse mesmo registro. Disso resulta que poderá haver uma “sociedade civil” que, adotando um dos tipos de sociedade empresária, será inscrita no Registro Público de Empresas Mercantis, mas que será “sociedade simples”, se inscrita no Registro Civil de Pessoas Jurídicas.

 8. As regras sobre deliberação majoritária

Pelo art. 966-A, inc. VI, eleva-se a princípio a “deliberação majoritária do capital social, salvo se o contrário for previsto no contrato social.” Sob esse comando, deveria ter sido proposta a alteração do art. 999, muito criticado pela doutrina por exigir deliberação unânime para as modificações do contrato social relativas a todas as matérias de conteúdo obrigatório, previstas no art. 997. Esse dispositivo obstaculiza soluções, prestigiando o veto de qualquer sócio nas deliberações societárias – o que tem causado sérios transtornos, notadamente para as sociedades simples, como as de advogados.

Nessa toada, é dada nova redação ao art. 1.010, § 2º, (i) para permitir que o contrato social regule a solução para o empate nas deliberações sociais, (ii) para retirar a alternativa de ser solucionado por deliberação per capita (maior número de sócios) e (iii) para acrescentar a possibilidade de ser resolvido o impasse por meio de arbitragem. A solução do empate por cláusula contratual é interessante, pois evita discussão quanto à imperatividade ou não da previsão legal vigente. Já a alternativa de o empate ser resolvido pelo voto da maioria dos sócios não deve ser derriscada desse enunciado, pois tem solucionado várias situações. E, quanto à arbitragem – e isso serve para outras passagens do anteprojeto – não precisa, obviamente, figurar em norma codificada.

É adotado o princípio majoritário, por igual, para a exclusão judicial do sócio (art. 1.030) e isso não faz o menor sentido. Se a exclusão é judicial, não há motivo para alterar a atual redação da norma. Do contrário, será impossível aos “demais sócios” (texto atual) excluir o majoritário “por falta grave no cumprimento de suas obrigações.”

9. Normas de direito processual

O Código Civil vigente, na linha do de 1916, primou pela técnica de só dispor sobre normas de direito material. O anteprojeto está recheado de normas atinentes ao direito processual.

Regula, por exemplo, o modo de apuração de haveres em juízo e normatiza até a ação de dissolução de sociedade – por sinal, duas grandes omissões do Código de Processo Civil de 2015, que merecem ser urgentemente supridas. Contudo, se são elogiáveis e necessárias tais corrigendas, que se façam e se alojem no endereço adequado, pois extrapolam o conteúdo que deve conter um código destinado a dispor sobre os direitos materiais do cidadão, não, porém, sobre o modo de exercê-los.

10. A sociedade limitada unipessoal

O laconismo do Código Civil sobre a sociedade limitada unipessoal necessita, de fato, de complementação. Nesse rumo, o anteprojeto introduz a previsão de só se constituir por pessoa natural e prevê sua sujeição às mesmas vedações que possui o sócio único. Porém, perde a oportunidade para regular adequadamente outras particularidades desse instituto, mesmo bastante pontuais, como a de vedar a possibilidade de uma só pessoa constituir mais de uma sociedade unipessoal.

Afora essas omissões, o anteprojeto tropeça ao estatuir que o capital da unipessoal não é dividido em quotas (art. 1.055), não se apercebendo que, afora o fato de facilitar a restauração da pluralidade, a divisão do capital em quotas ocorre na unipessoal derivada, que resulta da reunião de quotas de uma pluripessoal nas mãos do sócio remanescente.

11. Quotas preferenciais

A mistura de normas de um tipo com outro gera insegurança jurídica e compromete o sistema. Para atender novas exigências, notadamente na área das startups, a criatividade dos empreendedores faz aparecerem novas formas de contratar, ajusta novos caminhos para atender suas necessidades, provoca o nascimento de novos institutos que só mais tarde, com sua consagração prática, vêm a ser regulados por lei. O dinamismo da atividade econômica cria uma realidade que sempre está um passo na frente das leis.

Há, porém, algumas práticas que são testadas e se revelam contrárias ao direito posto, seja por ofenderem disposições de ordem pública, seja por produzirem efeitos jurídicos indesejáveis ou incompatíveis com a sistemática do ordenamento jurídico. Nesses casos, a contemplação legislativa do novo deve ajustar-se à lógica do sistema.

É o que está acontecendo com a prática de utilizar a sociedade limitada (normalmente constituída por profissionais estranhos à área jurídica, acostumados a utilizar só esse tipo contratual) para emitir quotas preferenciais, por aplicação das normas das sociedades anônimas. No entanto, isso não é legalmente possível.

A quota não é título, nem mesmo de legitimação, mas mero referencial do quinhão da participação que o sócio possui em uma sociedade; os direitos do sócio, sua extensão etc., não se exteriorizam para além das cláusulas do contrato social e, portanto, não se incorporam às quotas que ele tenha subscrito ou adquirido. Assim, a saída de um sócio ou a outorga de alguma vantagem especial para ele (melhores dividendos, por exemplo) só é possível mediante alteração do contrato social. A lei não prevê categorias de quotas sociais nem lhes confere o status de existência autônoma.

Já a ação é um título (mesmo quando imaterial) predisposto à circulação, que confere ao legítimo portador os direitos de sócio ou acionista e, por isso, é possível à companhia emitir ações de diversas espécies e classes, cada qual assegurando tais ou quais direitos aos respectivos titulares, que ingressam na companhia ou dela se desligam mediante a transferência desses mesmos títulos, sem qualquer modificação do estatuto social.

A aplicação à quota social das disposições regulatórias das ações, previstas na lei do anonimato, mostra-se inviável por incompatibilidade sistêmica e, quando somada à supressão do direito de voto, frontalmente agressiva à regra que o assegura a todos os sócios nas sociedades limitadas (CC, art. 1.076).

Essa prática de lege ferenda de emissão de quotas preferenciais acabou sensibilizando o Departamento de Registro Empresarial e Integração – DREI, que a acolheu (IN 81/2020, Anexo IV, item 5.3.1.). Enquanto assim permanecer, possibilita sua correção pelo Poder Judiciário; inseri-la em lei implicará alteração da estrutura da sociedade limitada por lhe agregar uma das características de maior importância, que aqui e alhures separa as companhias (e as comanditas por ações) das demais sociedades.

É indispensável aprofundar o debate a respeito para analisar se convém ao nosso País criar essa solução tupiniquim – que, a meu juízo, causa uma deturpação desaconselhável em um tipo societário – ou seguir o exemplo francês, com a utilização do seu modelo de sociedade anônima simplificada, mais detalhista que a inserida em nossa lei do anonimato.

 12. Apuração de haveres

No tocante à determinação dos haveres do sócio falecido, retirante ou que da sociedade é excluído, há normas relativas à apuração judicial, que repetem, acrescentam ou modificam as disposições já existentes no Código de Processo Civil (v. g., arts. 1.031, §§ 2º e 4º).

O problema maior está em estabelecer critérios para a apuração dos haveres, dado o dinamismo da atividade empresarial. Como os sócios não têm o dom da adivinhação, exigir deles que, no momento da constituição da sociedade, estabeleçam “o método e os parâmetros de apuração de haveres, o prazo e demais condições de pagamento dos haveres” (art. 997, inc. I), é impor-lhes tarefa assaz difícil e inglória.

Limitado a esses pontos, deixo para adentrar oportunamente em outros temas cuja vastidão de proposições, ainda sobre a matéria aqui abordada, exigem uma incursão mais pensada e detalhada.

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* GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis, Algumas objeções, em matéria societária, sobre o Anteprojeto de Reforma do Código Civil de 2002 (parte II). In: MARTINS-COSTA, Judith; MARTINS, Fábio; CRAVEIRO, Mariana; XAVIER, Rafael (Orgs.). Boletim IDiP-IEC. Vol. XXIV, Canela-São Paulo, Publicado em 26.06.2024.

** Professor Titular de Direito Empresarial na UFPR.

[1] Disponível em: https://canalarbitragem.com.br/xxiii-boletim-idip-iec/algumas-objecoes/.