Por Clara Santos, Redatora do Canal Arbitragem e Desenvolvedora de Softwares, entrevista Aline Dias, sócia de FLH – Franco Leutewiler Henriques Advogados no setor de Resolução de Disputas Estratégicas.

 

Um dos pontos positivos do Canal Arbitragem é a liberdade que existe na promoção de ensaios e hipóteses para questões que ainda não possuem respostas. Por vezes consistem tão somente em intensas provocações ao status quo.  Quando os profissionais são convidados para publicarem nesse portal, faço questão de destacar que aqui prezamos pelas marcas do autor, pois é na discordância e na estranheza que padrões são quebrados e novas ideias surgem. Não necessariamente significa resultados positivos, porém, sempre significa o rompimento da inércia do debate.

Dessa forma, gostaria de iniciar essa matéria com as ideias do Professor Emmanuel Gaillard, em sua obra “Teoria Jurídica da Arbitragem Internacional”, onde defendeu a existência de uma ordem jurídica arbitral que propõe a concepção tridimensional para o laudo arbitral. A ideia, no geral, é que a arbitragem e seu resultado não encontrariam fundamentos em ordem jurídica nenhuma, na verdade, ela compõe uma ordem jurídica própria. O prof. Gaillard elaborou a concepção de que o árbitro é o administrador da justiça internacional, alguém que não pertence a nenhuma ordem jurídica, mas atua em nome da comunidade internacional. Esse debate impacta, por exemplo, na homologação de sentença estrangeira.

Se essa ordem jurídica existe e ela não se submetem a Estado algum, que segurança as partes têm? O que isso traz de benefícios? Isso funciona para quem? Isso funciona para o Estado investidor? Ou isso é para o Estado qual se quer executar a sentença? Esses são alguns dos questionamentos que surgem quando debatido a mencionada teoria.

Por mais que alguém possa não concordar com suas ideias de ordem jurídica arbitral, a obra deve ser respeitada e considerada extremamente relevante aos estudos do processo e da arbitragem.

Não tenho certeza se o clássico Emmanuel Gaillard gostaria de ser atrelado ao Online Dispute Resolution, mas quando li seus textos as primeiras vezes, logo refleti sobre os avanços da tecnologia e a arbitragem. Autores como Ralf Michaels já defendem arbitragens totalmente autônoma do Estado[1] que serve para embasamento de teorias tecnológicas da resolução de conflitos.

O atual desenvolvimento tecnológico e o compulsório home office desses anos de pandemia proporcionaram uma maior naturalização de procedimentos correndo totalmente virtuais. Atualmente os debates já pautam a possibilidade do uso de metaversos para as audiências.

O metaverso surge de jogos digitais e se populariza com a massiva propaganda da empresa Meta sobre esse novo espaço virtual interativo. Seria o próximo passo das Câmaras Arbitrais adquirirem seus terrenos no metaverso em busca de proporcionarem uma experiência mais “real” as audiências? Será? Porém, calma aí! Ainda precisamos evoluir muito para usar isso nessa finalidade.

Ao pensar em transnacionalidade da arbitragem, atrelamos a ideia de um procedimento toca o chão de uma jurisdição apenas em caso de necessidade de execução forçada. Nesse fatídico momento, a arbitragem recorre às portas do judiciário em busca de apoio. Mas… E se não precisássemos desse apoio coercitivo?

Será que arbitragens completamente descoladas de jurisdição existem? Talvez a chave dessa discussão esteja em dois conceitos: Smarts Contracts e Blockchain. Projeto Kleros, Jur e Aragão se denominam como arbitragens onlines com base em smarts contracts e blockchain.

Essas plataformas facilitam a efetivação automática de decisões fundamentadas, em certa dose, nos smarts contracts. Estaríamos diante, portanto, do que vem se chamando blockchain arbitration.

Primeiramente é preciso esclarecer que, os smarts contracts são programas que executam cláusulas automaticamente conforme lógica de “if-else” para cada possibilidade do contrato. O front-end (o texto em que os contratantes geralmente interagem, a interface) está formatado em linguagem humana, mas o back-end, a lógica por trás disso, são algoritmos escritos em linguagem de programação. Seria algo como SE (if) aluguel não for identificado na conta corrente determinada, ENTÃO (else) débito na conta caução do imóvel E (and) notificação do inquilino por e-mail acerca da inadimplência. SE (if) inadimplência superar três meses, ENTÃO (else) fechadura inteligente do imóvel deve ser trocada e o novo código entregue apenas à imobiliária.

Já os blockchains são formas de criptografia e verificação descentralizada e sucessiva de determinada informação, com altíssima capacidade de garantir a infungibilidade e a segurança dos dados, através de autenticidade dos hashs – números únicos. Conforme declarado por Paulo Alcarva blockchain “permite que duas partes que não se conhecem cheguem a um acordo (consenso) através de uma história digital comum. Essa história digital comum é importante porque os ativos e as transações digitais são teoricamente fáceis de falsificar e/ou duplicar. A tecnologia blockchain resolve esse problema sem usar um intermediário financeiro que as duas partes conheçam.” (2019, p. 67)[2]

Vijayan [3] esclarece que os smarts contracts podem alcançar tão somente a quantia que existem nas contas dos usuários. Caso exista uma condenação de maior valor, seria necessário tocar ao solo da jurisdição adequada para buscar anexar bens do condenado a decisão.

Porém, atualmente cresce o número de ativos digitais que os cidadãos possuem. Será que os No Fugibel Tokens, ou, NFT, terrenos no metaverso, animais de estimação criptonativos podem ser utilizados para compensação condenações digitais? Precisamos pensar mesmo em intervenção estatal para o arresto de um NFT? Preciso pensar em uma intervenção estatal para o bloqueio de valores da conta de um produtor de conteúdo para internet? Veja, são perguntas sinceras? O contraditório e as decisões em plataformas onlines podem ser consideradas processos ou jurisdição? Nos últimos anos de Ada Pellegrini Grinover, vimos ser debatido ampliação desse conceito: “Jurisdição, na atualidade, não é mais poder, mas apenas função, atividade e garantia. E, sobretudo, seu principal indicador é o de garantia do acesso à Justiça, estatal ou não, e seu objetivo, o de pacificar com justiça” [4]

Para esclarecer mais sobre CriptoArbitragens, entrevistamos a Aline Dias sobre esse tema, qual a primeira pergunta consiste no que seriam as CriptoArbitragens? Um termo que encontramos ao pesquisar sobre o tema é “Arbitragem de criptomoedas”, estamos falando do mesmo objeto?

“Encontra-se a referência ao termo Criptoarbitragem para métodos de resolução de disputas heterocompositivos (ou seja, resolução da disputa por um terceiro, não pelas próprias partes) que fazem uso de blockchain, smartcontracts e criptomoedas, em plataforma automatizada, privada, descentralizada e virtual.

Outro tema diferente é o da “arbitragem de criptomoedas”, que no mercado financeiro corresponde a um sistema de especulação voltado à obtenção de lucros mediante operações que congreguem um mesmo tipo de criptomoeda em diferentes corretoras.” Aline Dias.

A CriptoArbitragem seria algo próximo de uma arbitragem completamente virtual? Ou estamos falando de lógicas distintas?

“São lógicas distintas. Em termos específicos de procedimento, a criptoarbitragem vai mais além do que simplesmente permitir o processamento virtual do caso, pois faz uso de tecnologias mais avançadas que permitem maior segurança e celeridade.” Aline Dias.

Em seu artigo, vimos que sistemas como Kleros, que sempre é citado quando falamos da intercessão da arbitragem e de blockchain, não é classificado como uma arbitragem na conclusão do artigo. Por quê?

“Não há necessidade de tentar forçar a classificação do Kleros como arbitragem. De fato, ambos são sistemas livremente escolhidos pelas partes, que permitem a renúncia à resolução da disputa pelo Poder Judiciário, e resultam em determinação proferida por terceiro. Isso, contudo, não significa que sejam idênticos, nem tampouco que o procedimento adotado pelo Kleros preencha todas as características reguladas pela Lei nº 9.307/1996, a começar pelo fato de que no Kleros não há espaço para livre escolha dos julgadores (art. 13, §§1º e 3º, da Lei de Arbitragem). O Kleros é um sistema híbrido, que congrega diferentes características, algumas delas próximas ao sistema da arbitragem, e outras completamente novas.” Aline Dias.

Acredita que a CriptoArbitragem pode ser impulsionada após as transformações que a pandemia deixou?

Uma relevante premissa do Kleros é permitir a descentralização da resolução da disputa, para negócios igualmente descentralizados, que não precisem depender de intermediários ou da efetiva localização das partes. Por certo, os efeitos do distanciamento social provocado pela pandemia já contribuem para a descentralização das relações econômicas, que por sua vez necessitarão, cada vez mais, de sistemas de resolução de disputas mais adequados à realidade atual.” Aline Dias.

O que a CriptoArbitragem tem de novo para contribuir com as resoluções de conflitos?

“Antes mesmo de contribuir para a resolução de conflitos, sistemas como o do Kleros contribuem para a geração de novos negócios. Sem uma plataforma confiável de resolução de disputas, pessoas que não se conhecem dificilmente realizam algum tipo de aproximação. Uma das primeiras preocupações de qualquer contratante é garantir a qualidade do serviço procurado – e não há como conseguir essa garantia sem um confiável mecanismo de resolução de disputas.” Aline Dias.

Diante das questões esclarecidas pela Dra. Aline Dias, deixamos registrados como pontos reflexivos dessas questões as vantagens da adoção das CriptonArbitragens. Imaginem quantos elementos de conexão podem existir em transações e relações internacionais em operações com criptomoedas ou negociação de NFT? Imaginem como esses inúmeros elementos de conexão podem dificultar a formação de um processo ou até mesmo a execução eficiente das decisões online. Portanto, a jurisdição estatal é realmente um elemento de segurança? Para quem? À medida que nossa dependência de ativos e moedas virtuais aumenta, mais partes estarão inclinadas a ter suas disputas resolvidas por meio de arbitragem de blockchain.

A equipe do Canal Arbitragem agradece a participação da Dra. Aline Dias em nossa matéria, e recomenda o podcast do Direito 4.0 onde ela explica mais detalhes das CriptonArbitragens!

 

[1] Ralf Michaels, ‘Is Arbitration Autonomous’ in C. L. Lim (ed) The Cambridge Companion to International Arbitration (CUP, 2021) 115, 137

[2]ALCARVA, Paulo. Banca 4.0. Revolução Digital: Fintechs, blockchain, Criptomoedas, Robo-advisers e crowfunding. Coimbra: Conjuntura Actural Edtiroa. 2019, p. 67.

[3] VIJAYAN, Sneha. Autonomous Arbitration in the Era of The Metaverse. Kluwer Arbitration Blog. 23 de março de 2022. Disponível em : http://arbitrationblog.kluwerarbitration.com/2022/03/11/autonomous-arbitration-in-the-era-of-the-metaverse/

[4] GRINOVER, Ada Pellegrini. Ensaio sobre a processualidade: fundamentos para uma nova teoria geral do processo. Brasília: Gazeta Jurídica, 2016, pp. 18-19.