Por Cristiano de Sousa Zanetti[1]

 

Procurar cobrir com uma unidade estas variedades é talvez tão absurdo como tentar esvaziar o mar com um balde, não por ser obra impossível, havendo tempo e força não faltando, mas porque seria necessário, primeiramente, encontrar na terra outra grande cova para o mar, e essa já sabemos que a não há suficiente, tanto mar, a terra tão pouca.[2]

Para expor a disciplina da cláusula penal, a doutrina brasileira costuma partir da dicotomia entre, de um lado, a cláusula penal moratória e, de outro, a cláusula penal compensatória. Sem maior explicação, tal divisão encontra-se expressa em manuais,[3] comentários ao Código Civil[4] e até em tratados[5], como se fosse um axioma ou lugar comum do direito.

Embora tradicional, a contraposição entre cláusula penal moratória e cláusula penal compensatória não se sustenta. Conforme anotava importante monografia publicada na década de 80 do século passado, a crítica se deve ao fato de tal classificação ser informada por critérios diversos, a saber: a modalidade de inadimplemento e a função da consequência prevista para o descumprimento do avençado.[6]

Realmente, para que se possa compreender a disciplina jurídica da cláusula penal, convém discriminar, em primeiro lugar, a modalidade de inadimplemento à qual se encontra relacionada, para, na sequência, abordar a função desempenhada pela estipulação no programa contratual.

Nesse sentido, no que tange à modalidade de inadimplemento, a cláusula penal pode recair sobre a mora ou sobre o inadimplemento absoluto.

Na hipótese de mora, por definição, o inadimplemento comporta emenda, razão pela qual o credor pode exigir tanto a execução da prestação principal, como os prejuízos decorrentes da mora, conforme se infere da leitura dos arts. 395 e 401 do Código Civil.

De maneira coerente, o art. 411 do Código Civil prevê que o credor pode exigir a prestação principal em conjunto com a cláusula penal ajustada. Trata-se de um truísmo, dado que somente pode haver mora se a prestação principal ainda puder ser executada com proveito para o credor.[7] Por outras palavras, se não mais fosse possível exigir o cumprimento da prestação principal, não seria possível cogitar de mora, nem, a fortiori, de cláusula penal moratória.

De acordo com o mesmo critério, a cláusula penal também pode recair sobre o inadimplemento absoluto. Trata-se do inadimplemento que não comporta emenda, tendo em vista que já não há mais possibilidade de a prestação ser executada de forma a satisfazer o interesse do credor. Daí a sua distinção com a mora, posta em evidência pelo parágrafo único do art. 395 do Código Civil.

De maneira expressiva, autorizada doutrina prefere o adjetivo “definitivo” para qualificar tal modalidade de inadimplemento.[8] Nessa hipótese, a parte prejudicada pode exigir a resolução ou a execução pelo equivalente,[9] somadas às perdas e danos decorrentes do inadimplemento, conforme previsto no art. 475 do Código Civil. Dada a ocorrência de inadimplemento absoluto, não há, logicamente, possibilidade de exigir a cláusula penal em conjunto com a prestação originalmente ajustada.

O fato de se tratar de cláusula penal que recaia sobre a mora ou sobre o inadimplemento definitivo indica a modalidade de inadimplemento que desencadeia a consequência ajustada entre os contratantes. Nada diz, no entanto, a respeito do papel concretamente desempenhado pela estipulação no programa contratual. Na verdade, para responder a essa pergunta, afigura-se necessário considerar a função que as partes atribuíram à cláusula penal, a fim de distinguir a cláusula penal com função compensatória da cláusula penal com função punitiva.

Na primeira hipótese, a cláusula penal atua como liquidação antecipada dos prejuízos decorrentes da mora ou do inadimplemento definitivo imputável ao devedor.[10] Nesse cenário, a cláusula penal tem natureza compensatória e, portanto, opera como substituta da indenização a que faria jus o devedor, a menos que as partes tenham previsto a possibilidade de se perseguir indenização suplementar, conforme autoriza o art. 416, parágrafo único, do Código Civil.

Na segunda hipótese, a cláusula penal assume caráter puramente coercitivo e atua como um estímulo para que o devedor cumpra a prestação a que se obrigou, sob pena de, como punição, ser compelido a cumprir uma outra obrigação, consistente no pagamento do montante ajustado a título de pena.[11]

Nesse caso, a cláusula penal não prefixa os prejuízos decorrentes do inadimplemento e, portanto, não substitui a indenização a que faz jus o credor. Pelo contrário, opera de maneira autônoma e com o exclusivo intuito de punir o descumprimento contratual. Sem que haja norma cogente que a proíba, o reconhecimento de sua legalidade no direito brasileiro se afigura de rigor.[12]

Aliás, mesmo quando o texto legal chega a precisar a função da cláusula penal, como ocorre no art. 410 do Código Civil, o regramento é dispositivo e, portanto, pode ser afastado pelos contratantes.[13]

Tendo em vista os critérios antes especificados, constata-se que os contratantes podem estipular ao menos quatro diferentes espécies de cláusula penal, a saber: cláusula penal moratória com função compensatória; cláusula penal moratória com função punitiva; cláusula penal que recaia sobre o inadimplemento absoluto com função compensatória e cláusula penal que recaia sobre o inadimplemento absoluto com função punitiva.

O ponto não escapou a importantes autores que se ocuparam do tema no direito brasileiro. De fato, no séc. XIX,[14] no séc. XX[15] e no séc. XXI,[16] diversos juristas deixaram claro que a cláusula penal moratória pode ser pactuada com função compensatória, de modo a pôr em xeque a dicotomia que costuma ser empregada para expor a disciplina do instituto.

Nesse sentido, aliás, propôs-se que a cláusula penal moratória com função compensatória fosse designada como cláusula penal “compensatória cumulativa”, por compensar os danos advindos da mora e ser exigível cumulativamente à obrigação principal.[17]

No direito estrangeiro, tampouco há dúvida sobre a possibilidade de ser ajustada cláusula penal moratória com função compensatória. Na Itália, um dos mais tradicionais manuais de direito civil esclarece o ponto logo no primeiro parágrafo que dedica ao exame da cláusula penal.[18] Em Portugal, a mesma orientação se faz presente em manuais dedicados a expor os preceitos básicos do direito das obrigações.[19]

Salta aos olhos, assim, que a cláusula penal não é instituto que possa ser compreendido a partir da imprecisa dicotomia entre cláusula penal moratória e cláusula penal compensatória. Muito ao contrário, sempre que se tentar restringi-la a tais limites, a cláusula penal precisará ultrapassá-los para que possa desempenhar o papel que lhe foi reservado pelos contratantes.

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[1] Professor Associado de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Bacharel, Mestre, Doutor e Livre-Docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Mestre em Sistema Jurídico Romanístico, Unificação do Direito e Direito da Integração pela Università degli Studi di Roma Tor Vergata. Foi Vice-Reitor Executivo Adjunto de Administração da Universidade de São Paulo. Vice-Presidente da Comissão de Arbitragem da CCI Brasil. Atua como árbitro e parecerista em disputas nacionais e internacionais.

[2] Saramago, José. O ano da morte de Ricardo Reis. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 62.

[3] Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: teoria geral das obrigações, v. 2. 34ª ed. Guilherme Calmon Nogueira da Gama (atual.). São Paulo: Grupo GEN, 2023, p. 162; Diniz, Maria Helena. Manual de Direito Civil. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2022, p. 86.

[4] Guilherme, Luiz Fernando do Vale de A. Código Civil comentado e anotado. 2ª ed. Barueri: Manole, 2017, p. 257; Sobrinho, Mário de Camargo. Código Civil interpretado. 15ª ed. Silmara Juny Chinellato (coord.). Costa Machado (org). Barueri: Manole, 2022, p. 419.

[5] Carvalho Santos, J. M. de. Código Civil brasileiro interpretado, v. XI. 10ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1976, pp. 313, 314.

[6] Limongi França, Rubens. Teoria e prática da cláusula penal. São Paulo: Saraiva, 1988, pp. 135-136.

[7] Alvim, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1980, pp. 44-45.

[8] Martins-Costa, Judith. Comentários ao novo Código Civil, v. V, t. II. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, pp. 220-221.

[9] A propósito da execução pelo equivalente, cf. Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Dez anos de pareceres, v. 6. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 121; Bessone, Darcy. Do contrato: teoria geral. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 183; Martins-Costa, Judith. Comentários ao novo Código Civil, v. V. t. II. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 140; Marino, Francisco Paulo De Crescenzo. Perdas e danos. In: Obrigações. Renan Lotufo; Giovanni Ettore Nanni (coord.). São Paulo: Atlas, 2011, p. 664; Zanetti, Ana Carolina Devito Dearo. Contrato de distribuição: o inadimplemento recíproco. São Paulo: Atlas, 2015, p. 120; e Martins-Costa, Judith. O árbitro e o cálculo do montante da indenização. In: Carlos Alberto Carmona; Selma Ferreira Lemes; Pedro Batista Martins (coord.). 20 anos da Lei de Arbitragem: homenagem a Petrônio Muniz. São Paulo: Atlas, 2017, p. 613; Terra, Aline de Miranda Valverde. Execução pelo equivalente como alternativa à resolução: repercussões sobre a responsabilidade civil. In: Revista Brasileira de Direito Civil, Belo Horizonte, v. 18, out./dez. 2018, p. 72; Terra, Aline de Miranda Valverde; Guedes, Gisela Sampaio da Cruz. Efeito indenizatório da resolução por inadimplemento. In: Inexecução das obrigações, v. 1. Aline de Miranda Valverde Terra; Gisela Sampaio da Cruz Guedes (coord.). Rio de Janeiro: Processo, 2020, p. 414.

[10] Martins-Costa, Judith. Comentários ao novo Código Civil, v. V, t. II. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 726.

[11] Martins-Costa, Judith. Comentários ao novo Código Civil. v. V, t. II. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 620.

[12] Martins-Costa, Judith. Comentários ao novo Código Civil. v. V, t. II. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 620.

[13] Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, t. XXVI. 3ª ed. 2ª reimp., São Paulo, RT, 1984, p. 65, a propósito do art. 918 do Código Civil de 1916; Martins-Costa, Judith. Comentários ao novo Código Civil. v. V, t. II. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, pp. 651-652, a propósito do art. 410 do Código Civil de 2002.

[14] Santos, Joaquim Felício dos. Projecto do Código Civil Brazileiro e Commentario, v. IV. Rio de Janeiro: Lammert, 1886, pp. 48-49.

[15] Espínola, Eduardo. Questões jurídicas e pareceres. São Paulo: Cia. Graphico-Editora Monteiro Lobato, 1925, p. 260; Beviláqua, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, v. 4. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1926, p. 68; Espínola, Eduardo. Questões jurídicas e pareceres. São Paulo: Cia. Graphico-Editora Monteiro Lobato, 1925, p. 260.

[16] Martins-Costa, Judith. Comentários ao novo Código Civil, v. V, t. II. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 726.

[17] França, Rubens Limongi. Raízes e dogmática da cláusula penal. São Paulo, Rumo, 1987, p. 203.

[18] Bianca, C. Massimo. Diritto civile, v. V. Milano: Giuffrè, 2006, [reimp. da ed. de 1994], p. 221.

[19] Almeida Costa, Mário Júlio de. Direito das obrigações. 12ª ed. Coimbra: Almedina, 2009, p. 794; Menezes Leitão, Luís Manuel Teles de. Direito das Obrigações, v. II. 8ª ed. Coimbra: Almedina, 2011, p. 299.