Gerson Luiz Carlos Branco**
Em atendimento ao convite do IDiP e do IEC para debater a reforma do Código Civil resolvi fazer o exame sobre o modo como a garantia geral das obrigações foi disciplinada, tendo em vista a pesquisa que tenho desenvolvido sobre o tema em minhas atividades na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.[1]
Certamente o tema não é apto a atrair as atenções da mídia como são os temas de Direito de Família, Sucessões, institutos de Direitos Reais, como a Usucapião, entre outras matérias eleitas pelo próprio Senado como sendo as principais alterações que geram interesse popular.[2]
A disciplina da garantia geral das obrigações decorre de um conjunto de disposições legais que, no Código Civil de 2003, já foram herdadas do Código Civil de 1916 e resultaram de um refinamento sistemático produzido ao longo de séculos, bem articulado no sistema codificado, em conjunto com disposições presentes no Código de Processo Civil. Dessa articulação sistemática depende, em grande parte, a segurança jurídica das relações negociais em geral, estando especialmente conectada com o princípio da força obrigatória dos contratos.
Na análise da disciplina legal sublinho dois artigos que afetam a garantia geral das obrigações e que podem gerar efeitos sobre regime de cumprimento das obrigações, especialmente as contratuais, caso seja aprovado o texto proposto. Dadas as dimensões deste artigo, será objeto de estudo somente aquilo que pode provocar mudanças na realidade jurídica e social subjacente.
O primeiro artigo é o mais central ao sistema da garantia geral: o art. 391 do Código Civil.[3] A disposição agora proposta revela preocupação com a proteção do chamado “mínimo existencial” e com os bens impenhoráveis, razão pela qual, se incluiu limitação à garantia geral das obrigações, restringindo-a aos bens penhoráveis, mediante o seguinte texto: “Art. 391. Pelo inadimplemento das obrigações, respondem todos os bens do devedor, suscetíveis de penhora”.
Sem contar a possível confusão entre “garantia” e “responsabilidade”, matéria controvertida na doutrina[4], essa limitação considera responsabilidade patrimonial do devedor como se todas as obrigações fossem pecuniárias e o modo de cumprimento estivesse restrito apenas ao instituto processual da penhora. Assim, ignora a função sistemática central do conteúdo do art. 391 em todo o sistema de cumprimento das obrigações (com efeitos no Direito Tributário, Administrativo, entre outras áreas). Neste sentido andou melhor o legislador ao regular a disposição correspondente no Código de Processo Civil, que levando em consideração os mesmos propósitos, incluiu na parte final do art. 789, “salvo as restrições estabelecidas em lei”.[5]
Veja-se que a questão não é meramente de linguagem, mas prática, pois o texto, se aprovado, retira a possibilidade de os bens “não suscetíveis de penhora” poderem ser objeto de garantia contra o inadimplemento (hipoteca, alienação fiduciária, etc.), andando na contramão de um movimento de reforço das garantias que se pode observar também em outros ordenamentos. Mais do que isso: se o bem não puder ser objeto de penhora, não responderá pelo inadimplemento das obrigações, limitando-se, por exemplo, a possibilidade de reintegração na posse, a ordem de indisponibilidade ou a constituição de outros meios de garantia que legal ou voluntariamente podem ser constituídos.
Talvez a melhor técnica seria preservar o art. 391, reflexo do milenar desenvolvimento do Direito das Obrigações, já que o enunciado correspondente no Código de Processo Civil, local próprio para tratar sobre os limites efetivos à excussão de bens, já dispõe sobre a matéria.
A segunda disposição ora objeto de análise é a supressão de regra essencial para o cumprimento das obrigações contratuais, qual seja, o art. 947 do Código Civil.[6] A leitura do “novo” art. 947 nada diz sobre o tema.
A norma vigente é, evidentemente, de grande utilidade na disciplina da responsabilidade contratual, embora possa ser aplicada em situações específicas também na responsabilidade extracontratual.
A supressão desse dispositivo cria um vácuo no regime do cumprimento das obrigações pelo equivalente, provocando perda de unidade sistemática, empobrecendo severamente o Código Civil na articulação de suas disposições.
Embora várias disposições do anteprojeto possam ser objeto de crítica e aperfeiçoamento, indiscutivelmente o capítulo da “responsabilidade civil” é o que de modo mais grave afeta o sistema do Direito das Obrigações, pela ruptura sistemática grave com o restante do Código, o que certamente impactará na vida social e no aumento da litigiosidade.
O Código vigente já havia trazido uma certa “perda” sistemática ao denominar o capítulo que antes era destinado a regular o Título VIII da “liquidação das obrigações”[7] (no Código civil de 1916), para no seu Título IX chamá-lo “Da Responsabilidade Civil”. Todavia, o Código Civil vigente manteve a articulação sistemática da parte geral das obrigações e da disciplina do incumprimento dos contratos com as disposições que tratam da responsabilidade contratual, essa regulada em diversos artigos do Título IX.
Agora, a proposta apresentada ao Senado para o Titulo IX (da Responsabilidade Civil) rompe praticamente com todas as conexões sistemáticas, tendo sido aquele Título reescrito por inteiro, para tratar essencialmente da responsabilidade extracontratual, limitando substancialmente a sua aplicação para as hipóteses de responsabilidade contratual. Como consequência, enfraquece a garantia das obrigações, tal como demonstrado pela supressão da norma insculpida no art. 947 (que trata do cumprimento pelo equivalente), tendo em vista o predomínio da inclusão de inovações não consolidadas na área da responsabilidade extracontratual.
Não nos parece que o art. 947 do anteprojeto seja equivalente ao mesmo artigo do código vigente, por duas razões. Primeiro, a redação atual trata do cumprimento de obrigações, enquanto o dispositivo do anteprojeto trata da “reparação de danos”, hipótese que não se confunde com o cumprimento específico ou com o cumprimento da obrigação pelo equivalente. Segundo, o §1º do art. 947 do anteprojeto trata de “indenização em dinheiro” quando a “reconstituição natural” não seja possível, tema claramente voltado para a obrigação de indenizar na responsabilidade civil extracontratual. A simples leitura dos dois parágrafos subsequentes torna evidente essa conclusão.[8]
Suprimir a norma do art. 947 empobrece substancialmente o sistema e torna a garantia das obrigações mais frágil, ampliando o poder dos juízes ao julgar e disciplinar a matéria. E assim ocorre porque a disposição correspondente do Código de Processo Civil limita essa garantia, conforme o art. 499 e seu recente parágrafo único, que reduz substancialmente os poderes do credor.[9]
A matéria relativa à garantia geral das obrigações, por estar conectada diretamente com o regime do cumprimento e descumprimento das obrigações, teria andado melhor se tivesse seguido a lógica adotada pela recente reforma do Código Civil Francês, que após uma sólida produção de artigos científicos e de aprofundados debates ao longo de mais de 20 anos,[10] construiu um verdadeiro consenso sobre como reformar o velho Código de Napoleão. Como resultado está a organização do modo de cumprimento das obrigações no art. 1.217[11], o qual foi seguido por uma série de artigos que trataram analiticamente das opções outorgadas ao credor na hipótese de inadimplemento.
A propósito do Código Civil francês, recorde-se, ainda, medida que reforça a garantia geral das obrigações: a adoção do mecanismo previsto no terceiro inciso do art. 1.217, cujo procedimento foi regulado no art. 1.223[12], prevendo-se a possibilidade de o credor reduzir o preço da prestação, tema que infelizmente ficou de fora da disciplina do anteprojeto de Código Civil.
Para concluir, servem estas breves reflexões como contribuição sobre a necessidade de aprofundar o debate a respeito das conexões sistemáticas do Código Civil, cuja coerência é essencial para a estabilidade das relações jurídicas dado o seu caráter central na regulação da vida social.
** Professor Associado de Direito Empresarial na UFRGS. Advogado, associado do IDiP e do IEC.
[1] A respeito do tema publiquei recentemente dois trabalhos, quais sejam,
BRANCO, G. L. C. Garantia e Responsabilidade Patrimonial: novos meios executivos e a execução forçada como reforço da obrigação. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 25, p. 59-89, 2020 e BRANCO, G. L. C.. A disciplina da garantia geral das obrigações no regime do inadimplemento. In: Aline de Miranda Valverde Terra; Giselda Sampaio da Cruz Guedes. (Org.). Inexecução das Obrigações. Pressupostos, evolução e remédios. 1ed.São Paulo: Editora Processo, 2021, v. 2, p. 615-641.
[2] https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2024/04/codigo-civil-conheca-as-propostas-de-juristas-para-modernizar-a-legislacao
[3] Art. 391. Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor.
[4] A propósito, ver as clássicas obras de BETTI, Emilio e CARNELUTTI, Francesco. Diritto Sostanziale e processo. Milano: Giuffrè, 2006, GANGI, CALOGERO. Il concetto dell’obbligazione e la distinzione tra debito e responsabilità. Nuova Riv. Dir. Comm., 1951, e COMPARATO, Fábio Konder. Essai D’analyse Dualiste de L’obligation en Droit Privé. Paris: Dalloz, 1964.
[5] “Art. 789. O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei.”
[6] “Art. 947. Se o devedor não puder cumprir a prestação na espécie ajustada, substituir-se-á pelo seu valor, em moeda corrente.”
[7] Art. 1.533 e ss. do Código Civil de 1916.
[8] Redação do anteprojeto: “Art. 947. A reparação dos danos deve ser integral com a finalidade de restituir o lesado ao estado anterior ao fato danoso.
- 1º A indenização será fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
- 2º Nos casos de dano extrapatrimonial, admite-se, a critério da vítima, a reparação in natura, na forma de retratação pública, por meio do exercício do direito de resposta, da publicação de sentença ou de outra providência específica que atendam aos interesses do lesado.
- 3º Nas hipóteses do parágrafo anterior, a reparação in natura pode ser efetivada por meio analógico ou digital, alternativa ou cumulativamente com a reparação pecuniária.”
[9] CPC: “Art. 499. A obrigação somente será convertida em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.
Parágrafo único. Nas hipóteses de responsabilidade contratual previstas nos arts. 441, 618 e 757 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e de responsabilidade subsidiária e solidária, se requerida a conversão da obrigação em perdas e danos, o juiz concederá, primeiramente, a faculdade para o cumprimento da tutela específica.
[10] Sobre a reforma do Código Civil Francês, ver BOTTIN, Louise. Les sanctions de l’ineécution après la rréforme du droit des contrats. Paris: Hartmattan, 2020; GILARDEAU, Eric. L’empire du matérialisme juridique sur le contrat. La réforme du contrat dans les codes civils allemande et français. Paris: L’Harmattan, 2022; DESHAYES, Olivier, GENICON, Thomas, LAITHIER, Yves-Marie. Réforme du droit des contrats, du régime general et de la preuve des obligations. Commentaire article par article. 2 ed. Paris: Lexis Nexis, 2018.
[11] “Article 1217. La partie envers laquelle l’engagement n’a pas été exécuté, ou l’a été imparfaitement, peut:
– refuser d’exécuter ou suspendre l’exécution de sa propre obligation;
– poursuivre l’exécution forcée en nature de l’obligation;
– obtenir une réduction du prix;
– provoquer la résolution du contrat;
– demander réparation des conséquences de l’inexécution.
Les sanctions qui ne sont pas incompatibles peuvent être cumulées; des dommages et intérêts peuvent toujours s’y ajouter”.
[12] “Article 1223. En cas d’exécution imparfaite de la prestation, le créancier peut, après mise en demeure et s’il n’a pas encore payé tout ou partie de la prestation, notifier dans les meilleurs délais au débiteur sa décision d’en réduire de manière proportionnelle le prix. L’acceptation par le débiteur de la décision de réduction de prix du créancier doit être rédigée par écrit.
Si le créancier a déjà payé, à défaut d’accord entre les parties, il peut demander au juge la réduction de prix”.