Julio Gonzaga Andrade Neves**

O Anteprojeto de Reforma do Código Civil foi entregue ao Presidente do Congresso na última semana e desde logo se intensificaram os debates sobre o teor final das propostas.

É saudável que seja assim: quando a lei impacta cada brasileiro, é dever cívico de cada especialista contribuir ao debate com clareza, nos elogios e nas críticas, sem pretensão de imunidade de ideias. Disse Richard Dawkins, o biólogo inglês, “it is an essential part of the scientific enterprise to admit ignorance, even to exult in ignorance as a challenge to future conquests[1]”. Michel de Montaigne, igualmente, anunciou “ce n’est pas ici ma doctrine, c’est mon étude”.

Mirando assim, por lentes da ciência (por isso, pronto para me descobrir errado), e sem pretensão de dogmas (dividindo, portanto, pensamentos e não doutrina), senti-me compelido a cuidar do início dos prazos prescricionais ao aceitar o convite do Instituto de Direito Privado – IDiP e do Instituto de Estudos Culturalistas – IEC, que tenho a honra de integrar e cujos associados abarcam parte relevante da comunidade privatista brasileira.

Fruto de intensa controvérsia jurisprudencial e doutrinária, a contagem do prazo prescricional ganhou clareza de regime no Anteprojeto e, parece-me, incorporou as melhores tendências internacionais.

A primeira inovação do Anteprojeto está na explicitação de que, em regra, a contagem dos prazos prescricionais flui objetivamente a partir do surgimento da pretensão (= exigibilidade). Objetivamente, diz-se, por independer da capacidade do titular de efetivamente manejar essa pretensão em juízo, conhecendo sua existência, seu devedor, e as causas jurídicas que lhe suportam. Nesse sentido, diz o novo art. 189, §1º, que “o início do prazo prescricional ocorre com o surgimento da pretensão, que decorre da exigibilidade do direito subjetivo”.

A mudança é muito positiva, conquanto a merecer ajuste de redação, já que exigível é a prestação (positiva ou negativa, de dar, fazer ou não fazer, surgida de posição jurídica pessoal ou real), e não o direito subjetivo (por definição, posição inercial, consistente na prerrogativa de incorporar a prestação ao patrimônio, conforme desempenhada pelo devedor).

A interpretação cristalizada – i.e., de independer a prescrição de qualquer cogitação sobre conhecimento do titular a seu respeito – era mesmo a melhor. O caput do art. 189 sempre ignorou filtros subjetivos, ao passo que outros dispositivos no próprio Código (art. 206, §1º, II, “b”) e em legislação extravagante (CDC, art. 27) expressamente invocavam a ciência em seu suporte fático. O silêncio do art. 189 era eloquente, e não omissão[2]. As exceções dependiam de previsão expressa.

Essa posição era tudo menos pacífica. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça se dividia entre precedentes que acolhiam essa natureza objetiva do termo inicial[3], e outros (com viés discretamente majoritário) tendentes à necessidade de ciência para que se deflagrasse o prazo[4]. Também a doutrina não era pacífica, havendo inclusive posições intermediárias, pela fluência objetiva ou subjetiva conforme o suporte fático a ensejar surgimento da pretensão[5].

Em alguma medida, a proposta do Anteprojeto teve o mérito de fazer confluir essas diferentes visões em um regime híbrido: à regra geral de fluência objetiva criou-se, adicionalmente, um regime misto específico para responsabilidade aquiliana, lançado no art. 189, §§2º[6] e 3º[7]. O regime pode ser assim resumido:

  • há dois prazos prescricionais para as pretensões decorrentes de responsabilidade civil aquiliana, com pressupostos de fluência diferentes. A verificação de qualquer dos prazos leva à prescrição, independentemente do outro;
  • o prazo prescricional mais curto, de três anos, inicia-se quando o titular da pretensão sabe, ou deveria saber, do dano e de sua autoria. Adotou-se, portanto, um viés subjetivo (excepcional, como o §1º do mesmo artigo esclarece) à teoria daactio nata[8]; e
  • o prazo prescricional mais longo, decenal, corre do surgimento da pretensão, independentemente de qualquer consideração subjetiva. Apoia-se, assim, em base objetiva da teoria da actio nata.

O regime duplo – batizado “short stop; long stop” – já havia sido acolhido na Alemanha e na França. Estou convencido de que ele é o melhor. Trata com celeridade a prescrição quando o titular tem condições concretas de manejo da pretensão, mas deixa de fazê-lo; e trata com sensibilidade a necessidade de segurança jurídica, ao fechar a porta prescricional passado um período mais longo, independentemente de condições concretas de manejo da pretensão. Como resultado de modelagem teleológica do instituto, o novo regime espanca a noção (a meu ver, desde sempre) equivocada de que só há prescrição contra credor negligente.

É um excelente ponto de partida para o Anteprojeto[9]. Há ainda, a meu sentir, espaço para melhoras adicionais:

  • na contagem com filtro subjetivo (short stop), os alemães diferiram o início do prazo ao primeiro dia do ano seguinte à ciência (BGB, §199). Com isso, eliminaram incertezas probatórias sobre o momento exato da ciência, que pode ser de insidiosa (e, nada obstante, decisiva) aferição. Era o caso de se importar essa solução;
  • na contagem com filtro objetivo (long stop), convinha se convertesse o comando em regra subsidiária para todo prazo prescricional que cogite de filtro subjetivo, e não apenas as hipóteses de responsabilidade civil do Código. A relevância prática é grande: há filtro subjetivo, por exemplo, para a responsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor (art. 27). Com o ajuste, seria fechada a porta para qualquer cogitação de instabilidade de relações para além de um decênio, o que parece muito desejável;
  • deixou-se de regular as hipóteses em que a prescrição se opera por ter o devedor operado maliciosamente para ocultar o dano ou impedir, de outra forma, o manejo da prescrição. Parte dos autores – e aqui me incluo – recorre ao abuso do direito (CC, art. 187) para resolver o ponto, mas convinha houvesse solução explícita a respeito. As possíveis respostas para tanto são variadas: pode-se (iii.a)promover a inclusão de causa de impedimento ou suspensão de fluência dos prazos quando houver óbice malicioso do devedor para manejo da pretensão, ou (iii.b) inserir a referência expressa de que o exercício da exceção de prescrição está sujeito aos limites de que cuida o art. 187 do Código; e
  • deixou-se, ainda, de esclarecer se a regra de direito intertemporal do art. 2.028 valerá para mudança de prazos que a reforma carrearia, ou se haverá regime diverso. Não é oportuno deixar passar a oportunidade de esclarecer essa administração, sempre espinhosa, de transição de uma contagem a outra.

O regime prescricional se apoia em segurança jurídica, e seria uma derrota para os esforços de reforma que a disciplina da prescrição carregasse, para além desse ponto da história, dúvidas quanto ao início dos seus prazos. Nada sugere será esse o caso. O começo dos trabalhos legislativos, nesse ponto, foi bastante alvissareiro.

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** Doutor em Direito Civil pela USP. Advogado.

[1] DAWKINS, Richard. The God Delusion. Nova Iorque: Mariner Books, 2008, edição Kindle (pos. 2024 de 7635).

[2] Foi o que, em outra sede, sustentamos: NEVES, Julio Gonzaga Andrade. A prescrição no direito civil brasileiro: natureza jurídica e eficácia. 2019. Tese (Doutorado em Direito Civil) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019, p. 115 e ss. doi:10.11606/T.2.2019.tde-14082020-131224. Acesso em: 2024-04-23.

[3]O Código Civil vigente adotou, como regra geral, a data da lesão do direito – e não a da respectiva ciência – em prol da segurança jurídica, escopo da prescrição, evitando, assim, impor a alguma das partes o ônus da dificílima prova da data da ciência do fato, o que deixaria a fluência do prazo, em muitas hipóteses, a critério do autor da ação, sendo as exceções a essa regra dependentes de previsão legal específica (p. ex.: §1º, inciso II, alínea “c”, do art. 206, do Código Civil e art. 27 do CDC).” (STJ, RESp 1.861.295/SP, 4ª T., rel. Marco Buzzi, j. em 12 de março de 2021).

[4] “O início do prazo prescricional, com base na Teoria da Actio Nata, não se dá necessariamente no momento em que ocorre a lesão ao direito, mas, sim, quando o titular do direito subjetivo violado obtém plena ciência da lesão e de toda a sua extensão.” (STJ, AgInt no AREsp 2.350.317/RJ, 3ª T., rel. Min. Marco Aurelio Belizze, j. em 18 de outubro de 2023).

[5]O Código Civil vigente adotou, como regra geral, a data da lesão do direito – e não a da respectiva ciência – em prol da segurança jurídica, escopo da prescrição, evitando, assim, impor a alguma das partes o ônus da dificílima prova da data da ciência do fato, o que deixaria a fluência do prazo, em muitas hipóteses, a critério do autor da ação, sendo as exceções a essa regra dependentes de previsão legal específica (p. ex.: §1º, inciso II, alínea “c”, do art. 206, do Código Civil e art. 27 do CDC).” (STJ, RESp 1.861.295/SP, 4ª T., rel. Marco Buzzi, j. em 12 de março de 2021).

SIMÃO, José Fernando. Prescrição e Decadência. Início dos Prazos. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 204 e ss.

[6] “§ 2º Ressalvado o previsto na legislação especial, nos casos de responsabilidade civil extracontratual, a contagem do prazo prescricional inicia-se a partir do momento em que o titular do direito tem conhecimento ou deveria ter, do dano sofrido e de quem o causou”.

[7] “§ 3º Nas hipóteses do § 2º, quando o dano, por sua natureza, só puder ser conhecido em momento futuro, o prazo contar-se-á do momento em que dele, e de seu autor, tiver ciência o lesado, observado que, independentemente do termo inicial, o termo final da prescrição não excederá o prazo máximo de 10 anos, contados da data da violação do direito.”

[8] A referência à actio nata remonta a Windscheid, e nada mais é do que a expressão latina de “nascimento da pretensão”. Com o passar do tempo, a expressão foi apropriada para designar o início do prazo prescricional. No original (conquanto traduzido): «Actio è quindi l’espressione per indicare ciò che si può pretendere da un altro; se noi cerchiamo di caratterizzare brevemente questo fenomeno, possiamo dire opportunamente: actio è l’espressione per indicare la pretesa.» / «Actio é, portanto, a expressão para indicar o que se pode pretender de outro; se tentarmos caracterizar este fenômeno brevemente, podemos dizer de forma oportuna: actio é a expressão para indicar a pretensão.» (WINDSCHEID, Bernhard; MUTHER, Theodor. Polemica intorno all’actio (com introdução de Giovanni Pugliese). Trad. Giovanni PUGLIESE. Florença: Stabilimenti Tipolitografici Vallecchi, 1954, p. 12).

[9] Registro em rodapé, por não ser objeto de responsabilidade civil, meu endosso à crítica feita pelo Prof. Marcos Bernardes de Mello no texto inaugural do Observatório da Reforma do Código Civil do IDiP: o caput do art. 189 não poderia manter a referência à extinção da pretensão, quando desde Pontes de Miranda tem-se claro que a hipótese é de exceção substantiva, com encobrimento eficacial apenas. Disponível em [https://www.conjur.com.br/2024-abr-11/equivocos-do-legislador-civil-em-relacao-a-prescricao/].