Paulo Doron R. de Araujo**
Atendendo ao convite feito pelo IDiP e pelo IEC para contribuir aos debates sobre o anteprojeto de reforma do Código Civil, apresentado no último mês de abril ao Senado Federal pela comissão de juristas constituída para esse fim[1], optei por escrever sobre pontos que me chamaram atenção e causaram preocupação assim que me debrucei sobre as propostas de reforma ao livro de Direito de Família do Código Civil.
A opção pelo Direito de Família se explica por ter o próprio Senador Rodrigo Pacheco, em recente discurso aos membros do Instituto dos Advogados de São Paulo, apontado a necessidade de mudanças legislativas quanto ao casamento homoafetivo e à evolução do conceito de família como das principais razões que o levaram, na qualidade de Presidente do Senado Federal, a promover a atual iniciativa de reforma[2].
Não se discute que os temas de Direito de Família evoluíram consideravelmente nas últimas décadas. Tampouco se nega o protagonismo da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (como nos casos de casamento homoafetivo[3] e multiparentalidade[4]) e dos demais tribunais do país quanto à interpretação da lei civil. Ao ampliar direitos, rever conceitos e equiparar posições jurídicas tratadas de forma distinta pelo legislador de 2002, buscaram os tribunais, com arrimo na doutrina mais recente, incorporar ao ordenamento jurídico nacional consensos sociais e corrigir distorções não mais justificáveis em matéria de relações familiares.
Louvável, pois, é a iniciativa de se criar uma comissão para propor mudanças ao texto legal vigente, assim como o trabalho dos juristas que se ocuparam dessa tarefa, renunciando a afazeres particulares para dedicar tempo, energia e inteligência em prol de um Direito de Família mais próximo da realidade de hoje.
Contudo, o pouco tempo de trabalho da comissão (menos de um ano) aliado à amplitude das reformas propostas fizeram notar pontos, no texto do anteprojeto, que reclamam melhorias ou, em casos mais extremos, devem ser excluídos.
Tome-se por exemplo, no livro de Direito de Família, a redação proposta para o art. 1.560, III, do CC (prazo de três anos para anulação do casamento), que remete ao art. 1.557, a ser revogado pelo mesmo anteprojeto. Ou a redação dos artigos 1.571-A e 1.576-A, ambos a regular, em redação muito semelhante, a cessação dos deveres conjugais. Ou ainda os artigos 1.656-A e 1.653-A, os dois a tratar dos efeitos dos pactos conjugais no tempo, em redações parecidas, mas não idênticas.
As próximas poucas páginas tratam, assim, de tentativa de contribuição ao debate, em forma de apontamentos críticos a artigos propostos pelo anteprojeto que, em nosso entender, a despeito da boa intenção que lhes subjaz, parecem ter o potencial de gerar conflitos em prejuízo justamente das pessoas que pretendeu proteger.
Apesar do escopo restrito destas breves páginas, creio valer mencionar que, para além do tema deste artigo, identifiquei problemas e riscos em outros artigos do anteprojeto de reforma do Código Civil, no tocante ao Direito de Família: (a) divórcio unilateral em cartório; (b) obrigação de prestar alimentos mesmo em caso de novas núpcias ou nova união estável do alimentando; (c) arrependimento eficaz quanto às relações de filiação nos casos de cessão temporária de útero (“barriga solidária”); (d) cláusulas limitadoras de valores de pensão e temas correlatos em pactos pré-nupciais e convivenciais; (e) inclusão de novos bens comuns no regime de comunhão parcial do casamento e da união estável, (f) criação da pena de sonegados entre cônjuges e conviventes; (g) ampliação do rol de legitimados para questionar a administração parental do patrimônio de filhos menores; e (h) alimentos compensatórios. É minha intenção tratar de cada um deles, seja em outras edições deste mesmo Boletim IDiP-IEC (caso assim convenha aos organizadores), seja em outros espaços.
Do ponto de vista da organização dos assuntos, o anteprojeto pretende imprimir mudanças profundas na estrutura do livro de Direito de Família. A ordem dos títulos, subtítulos e capítulos foi substancialmente alterada, em aparente esforço de reorganização e priorização de temas, chamando atenção o fato de que o casamento deixa de ser a figura central (sugestão de revogação do art. 1.511), sendo substituído pela liberdade quanto ao planejamento familiar (art. 1.511-A). Destaque-se, também, o reconhecimento da “família parental” como unidade familiar (art. 1.511-B)[5], ao lado do casamento (art. 1.514) e da união estável (art. 1.564-A).
Como resultado dessa repaginação, dentro do título reservado ao Direito Pessoal de Família (Título I), foi nomeado subtítulo para tratar especificamente da filiação (Subtítulo II), o qual conta com cinco capítulos, sendo que, para fins deste texto, nos interessam especificamente o terceiro, reservado à socioafetividade; e o sexto, sobre autoridade parental, haja vista que em razão da proposta deste Boletim e da sua compreensível limitação de espaço, abordarei unicamente a “autoridade parental”[6] em situações de multiparentalidade, com foco no caso da parentalidade socioafetiva.
A proposta para o art. 1.617-A dispõe que “A inexistência de vínculo genético não exclui a filiação se comprovada a presença de vínculo de socioafetividade”, buscando consagrar na lei realidade há tempo reconhecida pela jurisprudência[7] e defendida em doutrina[8]. Em seguida, a redação para o art. 1.617-B prevê: “A socioafetividade não exclui nem limita a autoridade dos genitores naturais, sendo todos responsáveis pelo sustento, zelo e cuidado dos filhos em caso de multiparentalidade”. Finalmente, vale transcrever a intenção de redação do art. 1.633-A: “Na eventualidade de criança ou adolescente estar sob autoridade parental de pais socioafetivos e naturais, a todos eles cabe o exercício da autoridade parental, nos termos do art. 1.617-B”.
É justamente a redação dos pretendidos artigos 1.617-B e 1.633-A que gera preocupação. Pense-se na hipótese, expressamente prevista pelo anteprojeto (art. 1.614), de reconhecimento tardio da parentalidade, por razões alheias à vontade dos pais biológicos (como nos casos de troca de bebês na maternidade ou de subtração de incapaz)[9]. Ou ainda num exemplo mais corriqueiro: mãe que se casa ou contrai união estável com outro ou outra parceira durante a gravidez ou logo depois do parto, sendo que a nova pessoa se comporta como pai ou mãe da criança e quer ver reconhecida sua condição de paternidade ou maternidade socioafetiva.
Em ambos os exemplos, mediante decisão judicial de reconhecimento, pais e mães biológicos e pais e mães socioafetivos deverão, ao mesmo tempo, ter poder de mando e decisão sobre a vida da criança ou do adolescente submetidos à autoridade parental múltipla.
Isso significa que três ou quatro pessoas diferentes, as quais não residem juntas nem estão sujeitas às mesmas percepções ambientais, sociais e culturais terão de, em conjunto, tomar decisões relevantes sobre a vida da criança: em qual idade a chupeta e a mamadeira serão retiradas? Pode ou não pode tomar refrigerante? Em qual escola será feita matrícula? Haverá incentivo aos esportes, às artes ou a ambos? A criança estudará inglês ou chinês como segunda língua? Ao invés de ir à escola, pode-se submeter a criança à experiência de home schooling?
E na adolescência: pode ou não pode ter smartphone com acesso à internet? A que horas deve chegar em casa? A namorada ou namorado pode dormir no mesmo quarto? Pode viajar com os amigos no fim de semana? Qual a idade em que haverá a conversa sobre doenças sexualmente transmissíveis e parentalidade responsável? Haverá direcionamento ou livre escolha da religião a praticar?
Superem-se as perguntas cotidianas e apresentem-se situações mais extremas: em caso de doença grave, poderá a criança ou adolescente se submeter a tratamento experimental? Por conta de convicção religiosa dos pais e mães biológicos ou socioafetivos, pode a criança ou adolescente ser privada de receber transfusão de sangue? Caso sofra violência física ou moral, a qual tipo de terapia ela deve recorrer? Em havendo a necessidade de cirurgia com risco de morte, ela deve ser autorizada ou não?
Como se vê, o espaço para desentendimentos e conflitos é grande. Se um casal, vivendo sob o mesmo teto, já tem de lidar com divergências de opiniões e visões de mundo, o que se dirá de três ou quatro pais ou mães que não vivem juntos e não compartilham rotina e valores, todos com iguais poderes de decisão e influência sobre a vida dos filhos. Em caso de não haver consenso, como será resolvida a questão? Votação por maioria? Assembleia de pais e mães? Procedimento de mediação? Ação judicial?
Não se ignora o fato de que a doutrina da multiparentalidade foi construída sob viés oposto às perguntas feitas acima, as quais partem da premissa de que tanto pais e mães biológicos quanto socioafetivos querem participar, colaborar e interferir no desenvolvimento dos filhos. A realidade, na maioria dos casos em que se recorre à noção de multiparentalidade é diametral e infelizmente oposta: pais e mães biológicos não se apresentam e, diante de tal vazio, outras pessoas ocupam esse espaço, oferecendo afeto e assistência à criança ou ao adolescente, razão pela qual, no melhor interesse do menor, passa a fazer sentido o reconhecimento da parentalidade socioafetiva.
Tanto é assim que nos casos que deram origem ao conceito da multiparentalidade (dual paternity), originários do estado da Louisiana, nos Estados Unidos, as discussões se concentraram em direitos hereditários em relação ao pai biológico[10] e deveres de prestar alimentos e assistência à criança[11]. Naquelas decisões, nas reformas do Código Civil da Lousiania ao longo da década de 1980 e nas decisões que lhes seguiram, ao se permitir que alguém pudesse ter, ao mesmo tempo, dois pais (um biológico e um por presunção legal decorrente do casamento com a mãe), pretendeu-se ampliar as possibilidades de recebimento, pela criança, de verbas alimentares e indenizatórias, o que não se confunde com o direito de direcionar a vida do menor em todos os seus aspectos.
Por outro lado, até hoje naquele estado norte-americano, e também em outros como Flórida e New Hampshire, não parece existir previsão legislativa que outorgue, de forma automática, a autoridade e custódia da criança a todos os pais e mães ao mesmo tempo, numa espécie de guarda múltipla compartilhada[12].
Quanto ao Direito brasileiro, ao julgar o Recurso Extraordinário 898.060, o STF decidiu: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”. Consolidou-se a ideia de multiparentalidade entre nós, sem se dar contornos específicos acerca do exercício do poder familiar ou poder parental pelos múltiplos pais e mães.
Ao se consultar a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, mediante a busca pela expressão “paternidade socioafetiva” nas ementas dos julgados, encontra-se pouco mais de uma centena de acórdãos, em sua maioria a tratar de casos de reconhecimento de paternidade socioafetiva post mortem e a envolver partes maiores e capazes. Em outro grupo menor de casos, dentre os já referidos, identifica-se a intenção da parte autora, já maior de idade, em remover o nome do pai biológico de seu registro civil; ou do suposto pai socioafetivo, em razão de alegado erro ao registrar filho ou filha como biológicos, de ver seu nome e de seus genitores excluídos do registro civil da criança ou do adolescente.
Essa análise da jurisprudência do maior tribunal do país, ao menos nos julgados em que a expressão “paternidade socioafetiva” consta da ementa, revela que não há demanda da sociedade para pronta resposta ou orientação normativa quanto à forma de exercício do poder familiar ou parental em casos de multiparentalidade.
Em verdade, encontram-se poucos e raros casos em que há efetiva disputa entre ascendentes socioafetivos e biológicos pela convivência com a criança ou adolescente, sendo que a solução adotada foi a fixação de regime de visitas, sem alteração no regime de guarda já estabelecido para um dos lados nem compartilhamento do poder familiar ou parental[13].
Eis a razão pela qual a regra proposta para os arts. 1.617-B e 1.633-A do anteprojeto gera preocupação. Sem demanda social premente, quer-se avançar na regulamentação da multiparentalidade socioafetiva para a criação de situação jurídica em que diversos pais e mães terão plenos e concomitantes poderes de mando e direção da vida de crianças e adolescentes. O risco de conflitos, brigas e discussões é evidente, com projeção de consequências indesejáveis sobre os menores.
É bastante conhecido o adágio romano a afirmar que communio est mater rixarum. A pretendida regulamentação da multiparentalidade socioafetiva no anteprojeto parece não ter levado esse importante conselho em consideração. Melhor será se durante o trâmite legislativo isso for alterado, buscando-se o compasso com outras jurisdições (Lousiania e outros estados norte-americanos, por exemplo) que lidam com o assunto há bem mais tempo. Deve prevalecer a análise casuística do melhor interesse do menor, a critério do juiz que decidir em concreto sobre a parentalidade socioafetiva, sem que a lei fixe, de antemão, se o poder familiar ficará a cargo de pais e mães biológicos, socioafetivos ou de ambos ao mesmo tempo.
** Graduado e Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Professor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito SP). Presidente do Comitê de Responsabilidade Civil da International Bar Association (IBA). Vice-presidente da Comissão Especial de Estudos sobre o Projeto de Reforma do Código Civil, do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP). Membro do IDiP. Advogado e árbitro.
[1] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/04/17/novo-codigo-civil-senado-recebe-anteprojeto-de-juristas-e-analisara-o-texto, acesso em 23.05.2024.
[2] “Nos últimos 20 anos, tivemos uma evolução no Brasil que pode ser considerada equivalente a algum meio século em algum momento da história. A inovação das relações sociais, das modernizações impostas pela pandemia, ao advento da internet, nos impôs uma atualização. A própria concepção de família. Uma, evidentemente, é a do casamento homoafetivo, uma das principais razões que me fizeram levar adiante a discussão desse anteprojeto”, extraído de https://www.iasp.org.br/2024/05/23/presidente-do-senado-defende-participacao-do-iasp-nos-temas-nacionais/, acesso em 23.05.2024.
[3] STF, ADI 4277, Rel. Min. Ayres Britto, Plenário, j. 04.05.2011.
[4] STF, RE 898.060, Rel. Min. Luiz Fux, Plenário, j. 21.09.2016.
[5] Nos parágrafos do art. 1511-B consta a definição de “família parental” como “composta por, pelo menos, um ascendente e seu descendente, qualquer que seja a natureza da filiação, bem como a que resulta do convívio entre parentes colaterais que vivam sob o mesmo teto com compartilhamento de responsabilidades familiares pessoais e patrimoniais” (§ 1º) e a previsão de que “A família parental cria obrigações comuns e recíprocas de suporte, de sobrevivência e de sustento dos que dividem fraternalmente a mesma morada” (§ 3º), além de outras disposições.
[6] Nova denominação do poder familiar previsto no atual art. 1630 do CC.
[7] “O reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo sócio-afetivo entre pais e filhos. A ausência de vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento. A relação sócio-afetiva é fato que não pode ser, e não é, desconhecido pelo Direito” (STJ, REsp 878.941/DF, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, DJ 17.09.2007).
[8] Vide, por exemplo, CALDERÓN, Ricardo. Princípio da Afetividade no Direito de Família. 2ª ed. rev. atual. e amp. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
[9] Vale referir o célebre “caso Pedrinho”: ALVES, Renato. O caso Pedrinho: A emocionante história dos pais em busca do filho desaparecido por dezesseis anos e os bastidores da investigação policial e da cobertura jornalística. São Paulo: Geração Editorial, 2015.
[10] Warren v. Richard, 296 So.2d 813 (La.1974).
[11] Smith v. Cole, 553 So. 2d 847 (La. 1989).
[12] ANDERSON, Precious. Mom who’s my Father?: Dual Paternity in Louisiana (March 12, 2022). Disponível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=4056149, acesso em 23.05.2024.
[13] Por exemplo: TJSP, Agravo de Instrumento 2158523-47.2021.8.26.0000, Rel. Des. Francisco Loureiro, 1ª Câmara de Direito Privado, j. 19.10.2021.