Luis Renato Ferreira da Silva**
O que se quer discutir
A Comissão Revisora e Atualizadora do Código Civil de 2002, integrada por juristas de várias áreas e formações, todos, indisputadamente, aptos ao desempenho das atribuições que lhes foram destinadas, tem o grande desafio de aperfeiçoar um Código Civil jovem em termos legislativos.
A recenticidade da lei não é, certamente, impeditiva para que se submeta a benfeitorias. Entretanto, o risco permanente é a tentação de modificar o sistema codificado de forma parcial e incompleta. Com isso, pode-se criar um rompimento do arcabouço legislativo, levando a uma insegurança jurídica nociva à cidadania.
Em vários momentos a sensação da leitura do relatório apresentado é a de que muitas teorias se conjugam, perdendo-se a harmonia que o Código Civil de 2002 tem (assim como o seu antecessor tinha). Vou me deter, por conta da maior intimidade com o tema, na proposta de alteração do sistema de resolução por onerosidade excessiva tratado, na atual redação, nos artigos 478 a 480. Como o assunto vem umbilicalmente ligado ao artigo 317 (ainda que compreenda que se trata de coisas diversas), também objeto de alteração, sobre ele tecerei, da mesma forma, alguns breves comentários.
O tema é tão controverso (o que já faria refletir o quão maduro está para alterações substanciais) que cada um dos relatores propôs redação diversa para os artigos em análise.
O artigo 317
Tal qual se encontra, o artigo 317 destina-se à revisão de prestações pecuniárias em caso de perda do equilíbrio para a(s) prestação(ões) no momento do seu adimplemento[1].
O texto de redação da Professora Rosa Nery (“proposta 1”) propõe que alterações supervenientes nas bases objetivas da obrigação ocasionadoras de onerosidade excessiva, excedendo os riscos assumidos pelas partes, podem gerar tanto a resolução do contrato quanto a correção da prestação. Neste caso, visando ao reequilíbrio do contrato e a preservação do valor real da prestação.
No texto de autoria do Professor Flávio Tartuce (“proposta 2”), os pressupostos são os mesmos, mas a consequência é apenas a correção da prestação.
O ponto positivo, é a troca da expressão “motivos supervenientes” por “eventos imprevisíveis” que aprimora o texto. A palavra motivo está muito mais ligada à intencionalidade das partes do que a fatos concretos que independem da atuação dos envolvidos. Nessas vicissitudes que atingem as relações obrigacionais, a inimputabilidade é a condição basilar para que possam produzir efeito sobre a relação obrigacional.
Nada obstante isso, a proposta 1, afirmando que a desproporção da prestação possa levar à resolução do contrato, torna assistemático o efeito, visto que os artigos 478 a 480 tratam, justamente, da resolução contratual por onerosidade excessiva. Antecipa-se o mecanismo que irá aparecer de forma taxionômica mais correta nos referidos dispositivos específicos.
Toma-se a parte – prestação – pelo todo – contrato. Torna-se o âmbito de incidência do dispositivo mais extenso do que efetivamente se apresenta necessário. A redação do artigo 317 acaba por exigir o mesmo requisito que aparecerá para a revisão do contrato como um todo.
O que se está tratando no 317 é de uma desproporção momentânea e pontual na prestação pecuniária quando do seu adimplemento, sem que a base do contrato tenha sido afetada. Se ocorrer a hipótese cogitada nas redações propostas, mais do que corrigir a prestação, será necessário revisar toda a sua estrutura ou extinguir a relação obrigacional. Essa, entretanto, é a função da revisão/resolução por onerosidade excessiva, disciplinada mais adiante pelo Código Civil.
O parágrafo único sugerido trata de tema relevante, que é a natureza previsível do fato, mas imprevisível da sua consequência. Essa sugestão é apropriada, e poderia vir no próprio caput, evitando-se nova definição, dizendo-se, por exemplo: “[S]e, em decorrência de eventos imprevisíveis ou de consequências imprevisíveis ….”.
Na linha da assistematicidade inicialmente referida, essa inclusão dos fatos de consequências imprevisíveis não aparece nos dispositivos sobre onerosidade, onde certamente deveria estar posta.
Examinando a regulação da onerosidade excessiva, é interessante perceber que, até o advento da denominada Lei da Liberdade Econômica em 2019 (“LLE”), não havia no Código Civil um dispositivo geral que tratasse da revisão contratual. Havia menções pontuais como na empreitada ou, em lei extravagante, como na locação de imóveis urbanos. A referida lei, com a já conhecida falta de tecnicismo, emendou o artigo 421 para em dois momentos referir que a revisão contratual deveria se dar por exceção, o que não deixa de ser um truísmo[2]. A inserção do artigo 421 sobre a revisão parece desconhecer que o sistema legal codificado não prevê a possibilidade de fatos supervenientes gerarem pretensão revisional direta.
O artigo 478
No artigo 478 consta a possibilidade de, em havendo onerosidade excessiva, surgir direito de resolução à parte que sofre o desequilíbrio. Tão somente por meio da oferta equitativa do que se beneficia da onerosidade (conforme o artigo 479) é que se estabelece uma pretensão revisional[3].
Pode-se tecer críticas à ausência de um sistema revisional direto no Código Civil. Pode-se considerar (como o faço) que há requisitos restritivos em excesso. Agora, não se pode deixar de reconhecer que há uma coerência interna no sistema.
Com os novos dispositivos (aqui também com propostas diversas dos dois relatores) inverte-se essa lógica, porque se dá pretensão revisional ou resolutória a critério do onerado. Isso já parece incompatível com o que foi inserido no artigo 421, e mantido pela Comissão, quanto à excepcionalidade da revisão. Dada a existência de duas versões, analisa-se o instituto da revisão/resolução com as peculiaridades de cada uma delas.
A proposta 1, tal como a proposta 2, retira a exigência da extrema vantagem como requisito explícito da resolução. O requisito sempre foi criticado pela doutrina e usualmente é ignorado pela jurisprudência[4]. Essa era a reforma que imaginei fosse ser feita, a que não subvertesse o sistema, mas corrigisse aquilo que a jurisprudência vinha contornando, ou corrigindo, de maneira bastante cuidadosa, com muito apoio da comunidade jurídica. Servem de exemplo desse olhar, as Jornadas de Direito Civil, organizadas por iniciativa do Centro de Estudos da Justiça Federal.
Quando se examina a letra das propostas, alguns outros problemas preocupam. O primeiro deles é o de equiparar a onerosidade à impossibilidade, pois se cogita de evento imprevisível que “impeça” o cumprimento (esse o verbo utilizado). Sabe-se que o regime da impossibilidade das obrigações está regulamentado alhures e que neste ponto trata-se de dificuldade[5], mas não de impedimento ou impossibilidade (isso não aparece na proposta 2)
A segunda ocasião seria não mais o “impedimento”, mas a criação de “riscos que excedam os normais”. Para avaliar os riscos normais, o §1º do artigo 478 na proposta 1 determina que se os considere ao tempo da celebração do contrato. Já a proposta 2 determina que se considere a alocação feita. Os riscos podem ou não exceder o que foi previsto ou distribuído sem dar azo à revisão. A questão é saber se a materialização de tais riscos importa em onerosidade. Um risco não previsto e que, ocorrendo, não gere onerosidade excessiva não deveria gerar a revisão/resolução.
Quando se trata dos riscos distribuídos, o que se faz é reconhecer que um contrato é um programa estabelecido pelas partes. Neste programa dividem-se vantagens e desvantagens do negócio econômico subjacente. Ao fazer isso, riscos são assumidos. Das duas, uma: ou bem os riscos eram previsíveis e foram alocados e seu incremento não gera revisão/resolução; ou bem são imprevisíveis e afetarão o contrato não por serem riscos, mas por caírem no conceito proposto de eventos imprevisíveis, independentemente da alocação.
Não à toa, apesar de tratar dos riscos, as propostas acabam por definir eventos imprevisíveis. Ambas as propostas o fazem no §2º do novo artigo 478. Ali está posto que a mensuração da imprevisibilidade é “a razoabilidade da pessoa de diligência normal e com a mesma qualificação da parte prejudicada”. Essa noção, em dispositivos que tentam ser objetivos nos conceitos adotados, peca pela unilateralidade do parâmetro. Se o contrato pressupõe proposta e aceitação, ou seja, bilateralidade de declarações, a previsibilidade não pode ser unilateralmente considerada. Levar-se em conta as qualificações do prejudicado, ignora que a imprevisibilidade deve ser genérica e não específica (tanto que, no § 4º da proposta 2, afasta-se a condição pessoal ou subjetiva dos contratantes).
Na proposta 1, o § 3º parece tentar conciliar o fato de estar tratando da revisão com a dicção do artigo 421 reformado pela LLE. A alteração limita o poder revisional ao necessário para eliminar ou mitigar a onerosidade excessiva conforme interesse de ambas as partes. A isto, a proposta 2 acrescenta que deve ser observada a boa-fé e a alocação de riscos (novamente ela) pactuada pelas partes, bem como a ausência de sacrifícios excessivos para as partes.
Aqui surgem outras dúvidas. Se houve alteração (conforme o caput) dos fundamentos para a celebração do contrato, a revisão não deveria se destinar a reerguer esses fundamentos e não a ser a mínima possível? A boa-fé a ser observada na revisão não é consequência dos artigos 422 e do novo 422-A que considera a sua violação inadimplemento contratual? Se sim, por que repetir? Se não, trata-se de outra boa-fé? Se o objetivo da revisão é superar os sacrifícios onerosos, haverá ela de estabelecer novos sacrifícios, apenas que não excessivos para as partes?
Ambas as propostas afirmam no §5º que esses dispositivos não se aplicam aos contratos de consumo, ainda que de execução continuada ou diferida. A matéria de consumo está regulada em diploma próprio. Por que tem que ser explicitada a não aplicação? Haverá outros que se apliquem? Por exemplo, o artigo 317 vai poder se destinar aos contratos de consumo, só porque lá não se excepcionou? E se não se excepcionou lá por desnecessário, por que aqui o é?
O artigo 479
Como deu-se a inversão da pretensão revisional no artigo 478, passa-se à oferta equitativa do artigo 479, que também sofreu modificações. Agora afirma-se que se o prejudicado pela onerosidade pedir a resolução (mesmo tendo a faculdade de pedir a revisão), essa pode ser imposta a ele pela outra parte (isso porque se manteve o caput tal qual estava).
A inovação advém no parágrafo único que permite, em caso de pedido de revisão, a recusa e o pedido de resolução. Ora, se alguém ingressa com um pedido de revisão e a outra parte não concorda, o que ele tem que demonstrar é o não cabimento da revisão, e, para isto, tem que refutar as premissas da contraparte com os argumentos que tiver. O parágrafo único parece querer criar uma contestação com matéria de defesa vinculada, ou seja, só naqueles argumentos será possível contestar. Não é papel do Código Civil dar um roteiro de contestação. Ele estabelece causas de pedir para pretensões, mas não para exceções, porque as primeiras dizem respeito à possibilidade jurídica do pedido. Já as segundas estão diante da regra geral da ampla defesa. Imagine-se que o réu sustente que não cabe a revisão porque já houve o cumprimento integral da prestação. Isso não consta dos incisos do parágrafo único.
O artigo 480
Já o novo artigo 480 traz para o direito brasileiro a teoria da quebra da base objetiva do negócio jurídico. A redação é direta e trabalha não mais com a imprevisibilidade, mas com a superveniência do fato, ou do conhecimento do fato, que rompa com a base. A verdade é que o dispositivo não fala em revisão, mas em renegociação. A renegociação, por qualquer motivo, não precisa ser autorizada por lei porque dentro do espectro da liberdade contratual das partes. Então não me parece que o dispositivo queira dizer o óbvio (se o contrato estiver com problema pode ser renegociado). Trata-se de dispositivo que deveria ter consequência específica. Dada a posição em que se encontra logo após a revisão por imprevisibilidade e antes do novo art. 480-A, que introduz a resolução por frustação da finalidade, está no escopo do binômio revisão/resolução.
Em que pese entender que, se se quer adotar um sistema revisional, a teoria da quebra da base é mais abrangente e adequada, inegável que as contradições sistêmicas afloram. Há um longo artigo 479 todo cuidadoso com garantir uma revisão limitada e, imediatamente, a introdução de uma teoria muito mais ampla e sem nenhum tipo de detalhamento. A sensação que resta é a de que a palavra revisão assusta. Acabou-se de ter a LLE – redundante e atécnica – com restrição máxima à revisão, mas um instituto que possa parecer renegociação, ainda que muito mais amplo, vem na sequência e como não fala em revisão, não precisa de requisitos outros.
Por fim, acrescentou-se o artigo 480-A tratando da frustração do contrato. O tema, novamente, cria a possibilidade de tratar-se a superveniência com uma outra alternativa. Várias são as posições sobre as hipóteses de frustração[6]. Sempre esposei a de que ela é uma das abrangências da teoria da quebra da base do negócio jurídico[7]. Por tal motivo, parece-me redundante com o artigo 480-A. Mas ainda que não o fosse, novamente, não se construiu um sistema, mas se elencaram teorias…
Para refletir
Quero deixar clara minha posição. Entendo que o Código Civil de 2002 teve um sistema claro e coerente. Esse sistema é da revisão excepcional. O sistema não está completo, mormente nos tempos modernos com mudanças substanciais e inimagináveis da velocidade cotidiana[8].
Nada obstante, introduzir alterações (e acomodações) de princípios antagônicos com rompimento da estrutura do sistema (e tudo em tão pouco espaço de tempo) gerará, para além da sempre reiterada insegurança, uma descrença na estabilidade dos contratos e no sistema de direito privado.
** Mestre em Direito pela UFRGS – Doutor em Direito pela USP. Professor Associado do Departamento de Direito Privado e Processo Civil da Faculdade de Direito da UFRGS. Sócio de TozziniFreire Advogados.
[1] Ainda que haja posições contrárias como bem aponta Marino, Francisco Paulo De Crescenzo. Revisão Contratual. Onerosidade Excessiva e Modificação Equitativa, Almedina, SP, 2020, pp. 25/26 (com as posições da doutrina expostas nas notas 25, 26 e 27).
[2] Sobre a excepcionalidade, muito antes da LLE, já havia me posicionado in Revisão dos Contratos no Código Civil: reflexões para uma sistematização das suas causas à luz da intenção comum dos contratantes in LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore; MARTINS, Fernando Rodrigues (coord.). Temas Relevantes do Direito Civil Contemporâneo: reflexões sobre os 10 anos do Código Civil. São Paulo, Atlas, 2012, pp. 378-400.
[3] Reforçando que esta é a sistemática (por si só excepcional) adotada, o artigo 157 e seus §§, tratando da lesão (tradicionalmente uma causa de intervenção no domínio contratual em razão de circunstâncias concomitantes à formação do contrato), também prevê que o lesado tenha pretensão anulatória. Só se revisa o contrato caso o beneficiado pela lesão se ofereça para reestruturar a equação econômica.
[4] Neste sentido, por todos, AGUIAR JR., Ruy Rosado de. Comentários ao Novo Código Civil – Da extinção do contrato, Vol. VI, Tomo, II. Forense, RJ, 2011, p. 911.
[5] Por todos, RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Revisão Judicial dos Contratos – Autonomia da Vontade e Teoria da Imprevisão, 2ª. ed., Atlas, SP, 2006, pp. 127/131.
[6] Resumindo e elencando todas elas, COGO, Rodrigo Barreto. A Frustração do Fim do Contrato – o impacto dos fatos supervenientes sobre o programa contratual. Renovar, RJ, 2012, pp. 171/173.
[7] Revisão dos contratos: do Código Civil ao Código de Defesa do Consumidor. Forense, RJ, 1998, pp. 138/139.
[8] Aliás, demonstrando a lacuna sistêmica, MARTINS-COSTA, Judith e COSTA E SILVA, Paula. Crise e Perturbações no Cumprimento da Prestação. Estudo de direito comparado luso-brasileiro. Quartier Latin, SP, 2020.