Vera Jacob de Fradera**

 

Conforme reiterado pelos inúmeros críticos do Anteprojeto de Código Civil para o Brasil, o trabalho desenvolvido pela douta Comissão, até a presente data, resulta, segundo a opinião da maioria dos seus críticos, na elaboração de um novo Código, dada a grande quantidade de alterações sugeridas no texto do legislador Miguel Reale.

Ora, embora assista aparentemente razão aos que fundamentam essa assertiva no grande número de artigos revogados, total ou parcialmente, outros acrescidos de novos parágrafos, outros ainda dissonantes do espírito que anima esse Código, qual seja, o do solidarismo e o da funcionalização, faltam, no Anteprojeto, os qualificativos correspondentes à definição de Código. Embora constituindo essa tarefa algo espinhoso, que, por óbvio, demandaria muitas laudas, ainda assim tentaremos cumpri-la, colimando precisar a verdadeira ação desenvolvida em torno dessa tarefa de redação/atualização/revisão, esclarecendo a dúvida todavia pendente nos meios jurídicos.

Não obstante, e apenas a título introdutório e sem aprofundamento, pois este não é o local para fazê-lo, trataremos em primeiro lugar, de definir qual é o sentido de Codificação[1], por ser isso necessário, dado o fato de atravessarmos um período, onde um grupo de qualificados juristas busca, segundo sua intenção, reformar o Código Civil dos brasileiros, apenas 21 anos após a sua entrada em vigor, começando agora a ser conhecido (no sentido de apreendido), pelos operadores e aplicadores do Direito Civil.

A primeira constatação a ser feita diz respeito ao relativismo das definições do vocábulo Codificação, evidenciado pela sua abundância e variedade de sentidos, relacionando-se dito vocábulo, em primeiro lugar, à História, pois cada época codifica de uma forma distinta; a Codificação relaciona-se também, e intimamente, à Cultura de um povo, às peculiaridades do país codificador. Ademais, a Codificação não é a mesma em se tratando da matéria codificada, por exemplo, o Direito Civil ou Direito Penal.

Reproduzindo a lição de Ph. Malaurie, em um conhecido artigo, intitulado Peut-t-on definir la Codification?[2], constatamos, por um lado, a existência de Codificações-modificativas e por outro, aquelas não-modificativas. Assim, o termo Código-inovação representa a elaboração do melhor direito, aquele que cria uma nova ordem social, resultando em uma inovação na maneira de ser regulada. Já o Código-compilação visa à positivação e à ordenação clara do direito em vigor em determinada sociedade.

Nosso primeiro e notável legislador, Teixeira de Freitas, reconhecido mundialmente, elaborou um Código-compilação, no que foi seguido por seu sucessor, Clóvis Beviláqua, conservando dentro do possível a lei do colonizador, as Ordenações, e reunindo, em seu projeto, algumas inovações. Seu papel foi o de, num primeiro momento, o de consolidador, reputado livre para descobrir que, nas normas, está implícito um dinamismo vital que as impulsiona para novas combinações, possibilitando-as transcender o quadro conjuntural para o qual foram criadas [3].

Nesse sentido, o de transcender o quadro conjuntural para o qual foram criadas, vale recordar as inovações trazidas por Teixeira de Freitas[4] e Clóvis Beviláqua,[5] seu sucessor, que incluíram, em seus projetos, normas reputadas demasiado avançadas para a época, tendo sido expurgadas dos textos originais.

Já nosso segundo legislador, Miguel Reale, codificador de 2002, optou por elaborar um direito tal como deve ser, ou seja, a codificação-modificação, aquela na qual o codificador é um reformador, alterando profundamente o Código Bevilaqua[6], ao adotar o solidarismo ao invés do individualismo, elegendo como filosofia o culturalismo ao invés do positivismo e substituindo a moral canonista pela moral laica, uma moral precipuamente voltada ao social.

O citado professor Ph. Malaurie, aponta, dentre os aspectos técnicos considerados relevantes para o êxito de uma codificação, a necessidade de ser respondida uma importante questão, qual seja, a de saber quais e quantas pessoas prepararam uma determinada Codificação. Segundo refere, não existe uma resposta constante, apenas uma verdade, produto da experiência: quanto menos numerosos os legisladores, mais rápido e melhor é o Código. E confirma sua assertiva mediante exemplos concretos, a começar pelo direito de família francês, reformado quase inteiramente por Jean Carbonnier[7].

Nesse aspecto, outro civilista francês, o professor Ph. Remy, comunga dessa opinião, citando os legisladores Andrés Bello (Código do Chile), Eugen Huber (Suíça) Abd El-Razzak Sanhoury (Egito) e Meijers (Holanda): (…) confiar a redação dos projetos de Código a um só homem é um método eficaz[8].

Chamamos a atenção para esse detalhe, tendo em vista o fato de, se nos detivermos no número de participantes da Comissão de Reforma do Código Civil, veremos serem eles em grande número, e, embora sendo reconhecidas por todos suas qualidades ou capacidades, cada um tem uma formação diferente, adquirida em distintas Escolas Jurídicas, cujas concepções sobre o Direito Civil são, em muitos casos, divergentes, adotando soluções não poucas vezes criticadas, além de apresentar um texto eivado de repetições e contradições, constatadas ao longo dos meses, pela crítica hostil efetuada pela Doutrina e pelos operadores do Direito em geral, que não concordam com todas as pretendidas melhorias no texto do Código Reale.

Embora variadas sejam as concepções do que seja uma Codificação, há uma unanimidade em relação à exigência de certos elementos comuns a todas elas, quais sejam, a simplificação, a racionalização e a clareza.

Levando esses elementos em consideração para qualificar o nosso Anteprojeto, observa-se claramente nele não estarem presentes esses qualificativos, fato apontado na imensa maioria dos comentários a respeito da intervenção no texto do Código Reale, como já apontado, reputada desordenada e sem qualquer preocupação com a busca pela solução mais perfeita, mais justa, mais atual, tornando, realmente, aperfeiçoado aquilo que parece à maioria como realmente necessitando reparos.

Ademais dos elementos comuns aqui mencionados, uma Codificação pode conter elementos outros, tais o carácter inovador ou não, uma ideologia ou não, um espírito sistemático ou não; uma extensão modesta ou ampla…[9]

Faltam-lhe ainda outras qualidades, como a de ser, pelo menos em parte, exaustivo, qualidade que lhe garantiria uma certa segurança da ordem jurídica, contribuindo a uma maior acessibilidade do cidadão ao Direito.

O Anteprojeto, em que pese não constituir um novo Código, ambiciona, sem fundamento científico, ser exaustivo, visando a abranger um amplo universo de normas reguladoras de matérias anteriormente ausentes do Código Reale, devido ao tempo transcorrido entre a sua elaboração, aprovação e entrada em vigor, e ao progresso e modificações de certas áreas, tanto na ciência como nas relações sociais e humanas.

Ao concluir este primeiro tópico, evocamos uma reflexão interessante, da lavra do renomado civilista francês, Bruno Oppetit, referente ao tema ora analisado: “A ideologia da codificação, desde o instante em que obedece às motivações passionais e irracionais, e onde parece provir de uma vontade prometeica de regulamentar e de dominar, desemboca em impasses técnicos[10].

Data maxima venia, são muitos os impasses técnicos identificados pela comunidade de juristas, desde o momento da divulgação do texto da pretendida reforma, objeto desses comentários.

Diante do que brevemente acabamos de expor, concluímos, pela não consideração do Anteprojeto como ter resultado em um novo Código, por lhe faltarem as qualificações para tal, ou seja, nele não se encontram a simplificação (ao contrário), a racionalização (se exercitada, não teriam ocorrido as situações geradoras de incerteza e dubiedade) e a clareza, (talvez uma das qualidades mais desejáveis em um Código, a começar pelo uso correto do idioma nacional) [11] ; tampouco é exaustivo e garantidor da segurança, desta sorte, não contribuindo para a facilidade de acesso do cidadão à Justiça, outra das razões de ser da adoção de um Código por determinado país.

Seria o Anteprojeto uma recodificação? É o que a seguir, modestamente, pretendemos esclarecer.

De início, trazemos à baila a afirmação categórica de Ph. Remy, segundo o qual, “a ideia de uma recodificação civil carrega, forçosamente, intenções ou ambições mais vastas do que a atualização do conteúdo do Código, e isso não é, evidentemente, para facilitar a tarefa[12]. Por que razão isso ocorre? Responde o prof. Remy, com palavras semelhantes as que estamos usando ao pretender explicar o vivenciado neste exato momento por nosso mundo jurídico e político: recodificar é, necessariamente, outra coisa que codificar! E, malgrado o vasto volume de normas alteradas pelo Anteprojeto, com ou sem necessidade, chegando a ultrapassar mais de 1000, como apontado por seus críticos, não autorizam seja o Anteprojeto considerado “novo” Código Civil e tampouco uma recodificação.

Afinal, como classificar o Anteprojeto de lei visando a atualizar o nosso Direito Civil? Assim sendo, ressurge a indagação: qual seria a verdadeira natureza do Anteprojeto, uma (re)codificação ou uma reforma?

Assim sendo, embora esteja comprovada a reunião de um grande volume de sugestões, correções e acréscimos ao texto do Código Civil de 2002, a recodificação não pode consistir apenas em um amontoado de leis. Se assim fora, seria considerada um corpo sem doutrina, conforme as palavras de J.L. Sourioux [13].

Essa assertiva é, sem dúvida, válida, mas como levá-la a cabo, quando uma profusão de ideias, escolas, ideologias se encontram para mudar um Código? Quando, ao invés de redução, estamos frente a um acréscimo (desordenado) de regras e parágrafos aos já existentes no texto do legislador Reale? Nesse caso, a reforma, sob pretexto de atualizar, acabará, se aprovada, por inchar o nosso Código Civil, desfazendo a sua fisionomia original, tantas são as alterações dissonantes em relação ao modelo original, ora perpetrados, em nome de uma desejada atualização.

Essa opção tem como consequência a perda do efeito instituidor do Código Reale, bem assim, seus efeitos de ordem e sistematização, restando ele então desfigurado para sempre, enquanto o movimento de reforma tampouco adquire a almejada condição de recodificação[14].

Diante desse impasse, qual seria a melhor solução para a atualização de certos aspectos do Código Reale, realmente necessitando de reforma ou substituição?

O recurso seria a descodificação, proposta já no século XX, por Natalino Irti[15], na Itália, na França por vários juristas e, entre nós, por Orlando Gomes[16] e Clóvis do Couto e Silva, advogando esses autores a adoção de um Código central, “um núcleo básico e fundamental dos grandes princípios e das cláusulas gerais, exercendo o Código uma função harmonizadora, interna e externamente”, como expresso por Almiro do Couto e Silva[17].

Com efeito, face à multiplicação e especialização de matérias a demandar regulação, torna-se impossível reuni-las todas em um só Código[18].

Torna-se imperioso pensar nas consequências, em sua grande maioria negativas, que resultariam da possibilidade de ser aprovado um texto capaz de suscitar, ao mesmo tempo, tanto interesse pelo seu conteúdo e tão pertinentes e bem fundadas críticas acerca de seus resultados, por parte da Doutrina e dos operadores do Direito em geral.

 

** Professora aposentada da UFRGS, Mestre e Doutora em Direito pela Universidade de Paris II, Advogada e Parecerista.

[1] O vocábulo Codificação surgiu na Inglaterra, no século, XIX. V. a respeito V. F. LESSAY, “Blackstone, Common Law et codification “, Droits, PUF, vol. 3, pp. 03

[2] Revue Française de l’Administration Publique, 1997 / 82, pp. 177-182.

[3] V. João Baptista VILLELA, “Da Consolidação das Leis Civis à teoria das Consolidações: problemas históricos-dogmáticos”, in Augusto Teixeira de Freitas e il diritto latino-americano, a cura de S. SCHIPANI, Cedam-Padova, Padova, 1988, pp. 241 e segs.

[4] Dentre outras, a reunião, no mesmo Código, das obrigações civis e comerciais.

[5] O texto do art. 259 do seu projeto estatuía: “Pelo casamento, torna-se a mulher companheira e sócia de seu marido, cuja posição social compartilha e de cujo nome tem o direito de usar”. V. Silvio MEIRA, Clóvis Beviláqua, sua vida e sua obra, edição da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 1990, pp. 402.

[6] Embora alguns o tenham considerado e ainda o considerem um “velho e revelho Código”, quando, reconhecidamente são, o Código de 1916 e o de 2002, dois diplomas bastante distintos.

[7] Importante lembrar que Jean Carbonnier foi um jurista-sociólogo, sendo sua obra mais conhecida nessa área, Flexible Droit, traduzida em muitos idiomas, na qual ele expõe os pilares da sociedade, quais sejam, a família, a propriedade e o contrato. V. Flexible droit,: pour une sociologie du droit sans rigueur, LGDJ, Paris 2013, 1a edição datada de 1976.

[8] V. “La codification…cit ”, in Droits, 26, vol. 02, PUF, Paris, 1998, pp. 15, nota 2. Lamentavelmente, Teixeira de Freitas e Miguel Reale, não são mencionados no texto do prof. Remy.

[9] V. Ph. MALAURIE , texto cit., pp. 182.

[10] No original : L’idéologie de la codification, dès l’instant où elle obéit à des ressorts passionnels et irrationels, et où elle semble procéder d’une volonté prométhéenne de réglementer et de dominer, débouche sur des impasses techniques. B. OPPETIT, Essai sur la codification, 1998, cit. por Bernard TESSYÉ, in “La Recodification du droit du travail français: le bal des Illusions”, Études à la mémoire du professeur Bruno Oppetit, Lexis Nexis, LITEC, Paris, 2009, pp. 629 e segs.

[11] Apenas para ilustrar, trazemos dois exemplos, coletados por professor de Direito Civil da FGV, quais sejam, 1º, a redação do art. 1560, III (prazo de 03 anos para anulação do casamento), que remete ao art. 1576-A, ambos a regular de forma semelhante a cessação dos deveres conjugais; 2º, os arts. 1656-A e 1653-A, ambos tratando dos efeitos dos pactos conjugais no tempo, com redação semelhante, mas não idênticos. V. Paulo DORON, Boletim IDiP-IEC, vol. XX. Em outro comentário, o autor revela sua perplexidade nos seguintes termos: “Entre os arts. 927 e 954, há uma centena de propostas de alteração, que leva em consideração as mudanças em enunciados normativos, sem necessariamente a avaliação de quantas palavras, regras ou princípios estão sendo acrescidos, suprimidos ou modificados”. V. Rafael B. XAVIER, Boletim IDiP-IEC, vol. XXI. Mais: de acordo com doutrinadores abalizados, “(…) contam-se quase mais de mil mudanças do anteprojeto feito em velocidade incompatível com o tempo de reflexão que obra dessa natureza exige”. Débora GOZZO, Fábio Floriano MARTINS, Judith MARTINS-COSTA, Paulo DORON R. de ARAÚJO, “Preocupante, reforma do Código Civil pode trazer insegurança e litigiosidade”, https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2024/04/preocupante-reforma-do-codigo-civil-pode-trazer-inseguranca-e-litigiosidade.shtml;

[12] No original: L’idée d’une recodification civile se charge forcément d’intentions ou d’ambitions plus vastes qu’une mise à jour du contenu du Code; ce qui n’est évidemment pas pour faciliter l’entreprise . “La Recodification Civile,”, in Droits, PUF, Paris, 26, 1998, pp. 04-18.

[13] J. L. SOURIOUX, in “Codification et autres formes de systématisation à l’époque actuelle. Le droit français”. Journées de la Société de Législation Comparée , 1988, pp. 145 et ss.

[14] V. Ph. RÉMY, op. cit., pp. 15.

[15] L’età della decodificazione, Giuffrè, Milano, 3a ed. 1989.

[16] A caminho dos micro-sistemas, in Novos Temas de Direito Civil, Forense, São Paulo, 1983.

[17] In Prefácio à dissertação de Fabio ANDRADE, intitulada Da Codificação, Crônica de um conceito, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1997.

[18] Vale recordar o exemplo histórico do Código prussiano de 1794, contendo 19.000 artigos, abrangendo variadas matérias, como direito civil, penal, família, sucessões, constitucional, direito feudal, direito canônico, direito de polícia! V. Valérie LASSERRE- KIESOW, “La Codification en Allemagne au XVIII siècle. Réflexions sur la codification d’hier et aujourd’hui”, Arch.ph.Droit, n. 42, pp. 215-234, 1998.