Por Judith Martins-Costa e Miguel Reale Junior

Sumário. Introdução – Primeira Parte. Da visão funcional da causa interruptiva e a questão da prejudicialidade – Segunda Parte. Dos elementos do suporte fático do artigo 200 do Código Civil: fato a ser apurado no juízo criminal e existência de sentença penal definitiva.

Introdução

Em regra inovadora, se contrastada ao que vinha disposto no Código Civil de 1916, o vigente Código ocupou-se de particularizar a disciplina da prescrição na hipótese de a ação cível, de regra indenizatória, originar-se de fato que “deva ser apurado no juízo criminal”. Ainda que passados vinte anos da entrada em vigor do Código Civil, a “novidade” continua a suscitar dúvidas e perplexidades. Essas são sempre compreensíveis quando a regra jurídica não vem amparada em tradição consolidada pela experiência que só o tempo viabiliza. Para dissipá-las, o caminho mais seguro consiste em compreender a regra a partir dos termos conformadores de sua função e de seu suporte fático. Quando ocorrente a hipótese legal – “ação [que] se originar de fato que deva ser apurado no juízo criminal” – tem-se a previsão da consequência, qual seja: “não correrá a prescrição antes da respectiva sentença definitiva”.

Qual é a razão de ser dessa regra? Quais são o significado e o alcance da expressão nuclear – “fato que deva ser apurado no juízo criminal”? Quando um fato deve ser apurado? A que se refere a locução “juízo criminal”? Seria suficiente haver a vítima requerido a investigação de fato típico penal, em narração dotada de verossimilhança, para haver o efeito previsto no art. 200, qual seja, suspender a prescrição?

Primeira Parte. A visão funcional da causa interruptiva da prescrição e o significado e a extensão da prejudicialidade

A responsabilidade civil visa a ressarcir o dano, gerando o dever de indenizar; a responsabilidade penal tem por objetivo punir o culpado, impondo uma pena. Logo, uma colima fins, funções, interesses e método diversos daqueles buscados pela outra, o que é compreensível quando se percebe que um mesmo ato pode afrontar valores, finalidades e interesses que o Direito regra e tutela de modo diverso. Mas um mesmo fato jurídico pode gerar tutelas a diferentes bens jurídicos, acarretando níveis diversos de intervenção[1]. Ademais, conquanto a sua diversidade, ambas as esferas – a civil e a penal – se tangenciam, em matéria de responsabilidade por danos, em alguns aspectos específicos e legalmente determinados[2]. Assim, o mencionado art. 200, o qual manda suspender a prescrição quando o fato causador da pretensão civil constituir crime, determinando que a prescrição não flua (isto é, não encerre o prazo que já tenha começado a correr) enquanto o processo penal estiver pendente[3].

Pensamos ser o art. 200 causa de suspensão da prescrição, e não, causa de impedimento. Suspende-se o prazo prescricional pelo período transcorrido entre a notícia da infração penal a ser averiguada em inquérito policial e o momento em que se verifica o resultado da persecução penal. Diferentemente da hipótese de impedimento – em que se elimina o lapso de tempo já transcorrido a partir do conhecimento do evento danoso –, a suspensão faz pendente a continuidade do prazo, conquanto não anule o tempo eventualmente já transcorrido a partir do conhecimento do evento danoso.

E assim é porque o escopo do art. 200 é tutelar a vítima quando há inércia justificada pela probabilidade de uma relação de prejudicialidade, a qual se configura quando dois ou mais processos possam influir um no outro, gerando o risco de prolação de decisões conflitantes ou contraditórias caso decididos separadamente. Não por outra razão, dentre as hipóteses de suspensão e da interrupção da prescrição, taxativamente postas no Código Civil, a inércia injustificada do lesado tem papel central: as causas apreendidas nos incisos I a V do art. 202 do vigente Código Civil, quase todas, dizem respeito ao desaparecimento da inércia do credor[4]. Assim será, para os efeitos do art. 200, quando manifesta situação que indicie a possibilidade de o ato ilícito ser objeto de apuração na esfera criminal, pois o que a lei quer é evitar decisões conflitantes sobre os efeitos de ilícito danoso proveniente de um mesmo fato.

Bem se vê, portanto, ser função do art. 200 evitar que se encontre prescrita a pretensão da vítima enquanto não julgada a ação criminal prejudicial, impedindo-se decisões conflitantes, pois o princípio chave do Ordenamento é o da segurança jurídica, que repele antinomias. “Se a prescrição civil acontecesse antes do encerramento do processo criminal, a condenação do acusado perderia a força de título executivo civil. O delinquente sofreria a sanção penal, mas não teria de indenizar o dano da vítima ou de seus dependentes”, ensina Humberto Theodoro Jr[5].

O núcleo da regra do art. 200 é a existência de fato que possa ter repercussão penal, o que leva a examinar a extensão da prejudicialidade. A potencial repercussão penal indica a possibilidade de o fato do qual decorreu o dano passível de gerar o dever de indenizar vir a ser apurado no âmbito criminal. Por isso, entende-se que a existência de um “mesmo fato discutido no cível” aponta à prejudicialidade, isto é: se houver pertinência, em tese, da imputação ao investigado, vale dizer, se houver potencial repercussão penal no ato ilícito e danoso, a fluência do prazo da ação que visa a obter a reparação civil fica na dependência da apuração criminal[6]. Então se suspende a fluência do prazo da prescrição, que ficará protelado no aguardo do desfecho do processo em torno do mesmo fato discutido no cível[7].

Prejudiciais “são as questões de mérito que antecedem, logicamente, à solução do litígio e nela forçosamente haverão de influir”[8]. Mas se trata de uma potencialidade, não de uma certeza. O fato deve ser apurado no juízo criminal, mas não se tem a certeza – que advirá apenas da sentença definitiva, como regra – que tenha efetivamente influído. Por isso se diz que o fato deve ser apurado, porque pode ter influência na ação cível[9].

Segunda Parte. Dos elementos do suporte fático do artigo 200 do Código Civil: o fato a ser apurado no juízo criminal e a existência de sentença definitiva.

A literal dicção do art. 200 é “fato que deva ser apurado”. O tempo verbal no presente do subjuntivo indica suposições, hipóteses ou a possibilidade de algo acontecer, apontando, por óbvio, aquele fato ainda não apurado, o qual depende, portanto, de uma investigação. Apurado, segundo o Dicionário Houaiss, vem a ser “desvendado após investigação”[10]. Logo, fato que deva ser apurado é o fato a ser desvendado por via de investigação.

Para a concreção do suporte fático nuclear do mencionado art. 200, o fato que “deve ser apurado” não diz respeito, logicamente, à infração já investigada como objeto de ação penal, mas sim a uma ação futura, qual seja, a notícia da infração penal a ser averiguada em inquérito policial. Releva, pois, o ato pelo qual essa notícia se corporifica, pois o termo inicial da suspensão há de ser a data do requerimento de instauração de inquérito policial baseado na descrição de fato verossimilmente típico.

Esse há de ser instaurado, conforme dispõe o art. 5º do Código de Processo Penal, em vista de requisição da autoridade judicial, ou do Ministério Público, ou de requerimento do ofendido. Tendo a autoridade conhecimento da infração penal, cumpre-lhe dar início ao inquérito policial, tomando as providências cabíveis para apuração do fato[11], como indicam os incisos do art. 6º do Código de Processo Penal.

Há, ainda, requisitos para que o fato deva ser apurado, ou seja, desvendado pela investigação a ser instaurada, pois a autoridade policial só deve iniciar o inquérito policial quando, ao tomar conhecimento da infração penal, constatar a procedência da narrativa do ofendido ou das informações recebidas de qualquer pessoa do povo. Esses requisitos para a instauração do inquérito podem ser vistos quer sob o ângulo positivo, quer sob o negativo.

Positivamente, deve haver justa causa para a instauração de inquérito policial. Haverá justa causa se a notitia criminis repousar, ainda que de forma sumária, em dados justificadores da movimentação da máquina da Polícia Judiciária[12]. O relevante é que, da narração do fato, em todas as suas circunstâncias, seja possível a constatação sumária da existência de dados indicativos[13], com verossimilhança, da ocorrência de infração penal, de fato típico penal a ser apurado e cuja autoria é sabida ou a ser descoberta. Torna-se, então, imperiosa a instauração de inquérito policial para apurar o fato.

Para instauração de inquérito policial cujo objeto seja “fato a ser apurado”, requer-se justa causa. Essa não carece ter a intensidade exigida para propositura de ação penal, quando se dá início ao processo judicial. Sempre será necessário, porém, ser o fato passível de enquadramento penal a partir de indícios da materialidade reveladores da verossimilhança da infração penal noticiada. O fato deve aparentar tipicidade, ou, dito de outro modo, deve ser apurado sempre que a atipicidade não for patente[14]. A autoridade policial pode recusar a instauração de inquérito policial quando o requerimento do ofendido “não apresentar conjunto indiciário mínimo à abertura de investigação”[15]. Em contrário senso, se houver a apresentação de fato correspondente à infração penal, de forma verossímil, cumpre à autoridade policial, para não prevaricar, instaurar inquérito. Se é bem verdade não poder haver atuação persecutória do Estado sem tipicidade, ao revés, havendo a tipicidade sumariamente verificada pela autoridade policial, cabe instaurar a ação persecutória estatal[16], como afirmado, aliás, pelo Supremo Tribunal Federal[17].

Esses elementos, rigorosamente de ordem dogmática, permitem afirmar que o “oferecimento” de notícia crime, desde que fundamentada, constitui fato suficiente para suspender a prescrição nos termos do art. 200 do Código Civil. Esta é a interpretação concernente à finalidade do referido artigo: não atuar em prol do agente do ilícito, mas sim da vítima do ilícito. Suspende-se a prescrição, mas não se impede a propositura de ação indenizatória. Evita-se, assim, que situações kafkianas ocorram, como e.g., aquela em que a autoridade pública seja autora do ilícito, ou esteja mancomunada com o autor do ilícito, e não aceite a queixa crime, deixando de instaurar inquérito para que o ilícito não seja descoberto e assim impedindo o exercício da pretensão indenizatória no juízo cível.

Como elemento completante do cerne do suporte fático está a indicação do locus no qual o fato deve ser apurado, sendo esse o juízo criminal. Essa indicação levou alguns comentadores a entender ser preciso haver denúncia ou queixa[18], dando-se início à ação penal em juízo para se operar a suspensão da prescrição. Esse não nos parece, todavia, o melhor entendimento sequer sendo confortado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, e por estudiosos, para os quais basta a existência de fato justificador do início da persecução penal por via de inquérito policial[19].

A expressão juízo criminal não importa na exigência de haver ação penal ajuizada. De um lado, porque ao mencionar o juízo criminal se está fazendo referência ao âmbito criminal, à esfera criminal, compreendendo, evidentemente, a fase inicial, quando o fato começa a ser apurado, ou seja, no inquérito policial. De outra parte, o inquérito policial se enquadra no juízo criminal, pois é instaurado pela Polícia Judiciária sob estrito controle do juiz, ao qual se remete e do qual recebe autorizações a cada passo. Ademais, quanto à extensão, a expressão juízo criminal compreende tanto o inquérito policial como a ação penal, pois ao juízo criminal está sujeita em grande parte a Investigação Criminal, realizada pela Polícia Judiciária, mas sob controle e ordenação do juiz, devendo ser entendida como início da investigação criminal quando há o recebimento de requerimento.

Este estado de suspensão não se encerra, diz o Código Civil, antes da sentença definitiva penal ou, analogicamente, por outros atos ou fatos cujo efeito seja o de extinguir a punibilidade.

Como regra, o critério da volta de cômputo do prazo é marcado pelo momento da sentença definitiva. Não se restringe, porém, à sentença, abarcando qualquer outra causa de extinção da punibilidade, e.g., a morte. Importa o caráter de definitividade do pronunciamento da autoridade criminal, quando capaz de eliminar a situação de prejudicialidade entre as esferas criminal e cível. A partir daí tem-se que a inércia do lesado será injustificada[20]. Note-se que a extinção da punibilidade não importa em irresponsabilidade na esfera cível. Assim, por exemplo, se decretada a extinção da punibilidade do agente causador do dano em razão de prescrição penal. Nesse caso, a partir deste momento, recomeça a fluir o restante do prazo prescricional para a pretensão de ressarcimento, pois não se verificará mais a possibilidade de sentenças conflitantes entre as esferas.

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[1] Sobre o fenômeno da “multiplicidade de incidências”, vide, por todos: PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo II. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, § 169, p. 209-219.

[2] Sinteticamente, os previstos no Código de Processo Penal, art. 63 a 67; 92 a 94. No Código Penal, art. 74, I. No Código de Processo Civil, arts. 110; 265, IV, a, e § 5o; 584, II. No Código Civil, art. 935.

[3] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao Novo Código Civil. Arts. 185 a 231. Vol. III. Tomo II. 4a ed. Rio de Janeiro: Gen-Forense, 2008, p. 247.

[4] A exceção é a do ato causado pelo devedor, qual seja: a configuração de uma sua conduta que aponte, de modo inequívoco, ao reconhecimento do direito pleiteado pelo credor.

[5] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Prescrição e Decadência. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 139.

[6] NEVES, Julio Gonzaga Andrade. A Prescrição no Direito Civil brasileiro. Natureza Jurídica e Eficácia. Tese de Doutorado. Professor Orientador Cristiano de Souza Zanetti. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2019, p. 353.

[7] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Prescrição e Decadência. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 247.

[8] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. I. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995.

[9] NEVES, Julio Gonzaga Andrade. A Prescrição no Direito Civil brasileiro. Natureza Jurídica e Eficácia. Tese de Doutorado. Professor Orientador Cristiano de Souza Zanetti. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2019, p. 158-159.

[10] HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, p. 265.

[11] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 135 e seguintes.

[12] MOURA, Maria Thereza de Assis. Justa causa para ação penal. Doutrina e jurisprudência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 150.

[13] MOURA, Maria Thereza de Assis. Justa causa para ação penal. Doutrina e jurisprudência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 167, nota 12.

[14] SAAD, Marta. O Direito de Defesa no Inquérito Policial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 145, nota 16; SANTOS, Cleopas Isaías. Justa Causa para a Investigação Criminal. Fundamentos e limites constitucionais da investigação policial no Brasil. Tese de Doutorado. Orientador Professor Vinícius Gomes de Vasconcellos. Brasília: Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa – IDP, 2022, p. 99.

[15] PACELLI, Eugenio. Curso de processo penal. 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 58.

[16] FREDERICO MARQUES, José. Elementos de Direito Processual Penal. Vol. I.  2ª ed. Campinas: Millenium, 2000, p. 139 e seguintes.

[17] STF. HC 69.462/AP. Tribunal Pleno. Rel. Min. Celso de Mello. J. em 18.11.1992) STJ. HC 38.093/AM. Quinta Turma. Rel. Min. Gilson Dipp. J. em 26.10.2004

[18] DUARTE, Nestor. In: PELUSO, César (Coord.). Código Civil Comentado. Doutrina e jurisprudência. 5ª ed. Barueri: Manole, 2019, p. 127.

[19] MATIELI, Louise Vago. Análise funcional do artigo 200 do Código Civil. In: MORAES, Maria Celina de Bodin. GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. SOUZA, Eduardo Nunes de (Coords.). A Juízo do Tempo. Estudos atuais sobre prescrição. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2019, p. 123; DELGADO, José Augusto. JÚNIOR, Luiz Manoel Gomes. Comentários ao Código Civil brasileiro. Vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 916.

[20] MATIELI, Louise Vago. Análise funcional do artigo 200 do Código Civil. In: MORAES, Maria Celina de Bodin. GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. SOUZA, Eduardo Nunes de (Coords.). A Juízo do Tempo. Estudos atuais sobre prescrição. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2019, p. 268.