José Emilio Nunes Pinto**
Giordano Farina Loureiro***
A vida no Brasil nos proporciona inúmeras surpresas, algumas boas e outras bem longe disso. Nos últimos tempos, instalou-se nos meios jurídicos uma vontade irrefreável de legislar e, sob o pretexto de se atualizar as leis para compatibilizá-las com os avanços obtidos e o novo perfil da sociedade brasileira, dá-se vazão ao desejo de agregar nomes a textos legais, codificados ou não.
Mais recentemente, a escolha recaiu sobre um texto fundamental para dar suporte à vida e existência dos cidadãos, sendo deles o seu estatuto maior – o Código Civil. Com cerca de 22 anos de vigência, haja vista a sua entrada em vigor em 2003, esse texto, tão discutido ao longo de décadas e proveniente das mentes de grandes juristas brasileiros, vê-se agora como alvo de reforma que mira mais de 1.000 de seus artigos. Isso mesmo: estamos no campo do milhar. Vale lembrar que o Código Civil Francês, promulgado por Napoleão Bonaparte em 1804, sofreu poucas alterações em seu texto ao longo de dois séculos e vige na França até os dias de hoje.
Não pretendemos neste texto discutir a iniciativa de reforma, nem mesmo a oportunidade de o fazer neste momento, mas parece-nos curioso que, com essa vigência tão breve, tantos problemas tenham surgido no Código, quando muitas de suas disposições carecem ainda de prática mais diuturna. Além disso, há de se considerar que o Código Civil vigente trouxe em seu texto cláusulas abertas que se destinam precisamente a evitar alterações frequentes.
A nossa meta é projetar os efeitos e constrangimentos que poderiam advir para a economia nacional, tomada esta em seu sentido mais amplo. Nessa toada, abriremos mão, como regra, de analisar criticamente disposições específicas constantes do PL nº 4/2025, uma vez que especialistas consagrados e nossos civilistas mais destacados já se ocupam dessa tarefa, com inquestionável competência.
Nosso foco será alertar os leitores sobre problemas que se situam para além da letra do PL nº 4/2025 e que têm o potencial de atingir o desenvolvimento de projetos de grande porte no Brasil, sejam eles industriais, sejam os de infraestrutura, sob a modalidade de greenfield projects (muito simplesmente, projetos novos a partir do ponto zero) ou de brownfield projects (também, muito simplesmente, projetos existentes em relação aos quais se fazem investimentos para modernização e introdução de tecnologia mais avançada).
Estudos e análises recentes do Banco Mundial indicam que os recursos necessários para o desenvolvimento e atualização da infraestrutura brasileira ascendem a cerca de 800 bilhões de dólares[1]. Esses dados são ainda mais alarmantes quando contrastados com a meta de captação de 8,6 trilhões de reais em investimentos no setor até o ano de 2050[2].
A poupança doméstica é incapaz de permitir que se financie parcela significativa desses investimentos. Ademais, mesmo em países com poupança doméstica mais substancial do que a brasileira, não é possível abrir-se mão de aportes de recursos de terceiros, a serem agregados aos recursos próprios levantados a partir de processos de capitalização pelos patrocinadores dos projetos. Por outro lado, projetos dessa magnitude e que carreiam recursos vultosos não se ajustam aos balanços dos patrocinadores, visto que afetariam fatalmente as operações quotidianas da empresa envolvida. Nessa direção, tais projetos pressupõem a criação de sociedades de propósito específico (SPEs), o que permite que os patrocinadores as capitalizem com recursos próprios no patamar de 25% a 30%, enquanto o saldo remanescente dos recursos necessários à consecução do projeto é suprido com recursos de terceiros, por meio de empréstimos bancários, financiamento de instituições de desenvolvimento e fomento, nacionais e multilaterais, e outras modalidades, entre 75% e 70%. Para tanto, faz-se mister que o projeto seja capaz de oferecer garantias próprias, bem como que outras sejam oferecidas pelos patrocinadores. A essa modalidade de projeto denomina-se operação estruturada e, sob a ótica financeira, são operações que envolvem a alavancagem de recursos.
Os projetos de infraestrutura sob a forma estruturada são bastante intensos em todos os seus aspectos: múltiplas partes, cadeia complexa de contratos, relacionados ou não entre si, e a necessidade de que se harmonizem às diversas etapas do projeto, seja durante a sua implantação, ou, sobretudo, quando do início de todas as operações representadas pelas diversas unidades do projeto.
Estando disponíveis os recursos de terceiros para futura contratação, uma enorme preocupação dos envolvidos é a estruturação do modelo econômico-financeiro do projeto. A partir dessa análise, e desde que assegurada a viabilidade do projeto, discutem-se taxas de juros, os demais encargos e o nível de garantia a ser provido pelos patrocinadores.
O leitor, neste passo, deve estar se perguntando qual o papel desempenhado pelo PL nº 4/2025 nesta discussão. Creiam-nos: o impacto tende a ser maior do que se pode razoavelmente intuir.
Ao negociarem concessões de empréstimos e financiamentos, as entidades examinam o projeto sob todos os aspectos que podem ter impacto sobre a sua solidez e sobre sua estrutura econômico-financeira. No cardápio de riscos a serem analisados (e não são poucos), encontram-se riscos ambientais, riscos regulatórios, riscos legais, riscos administrativos (dentre eles, o maior ou menor índice de burocracia) e, sobretudo, o denominado risco soberano que implica a avaliação do risco Brasil na sua mais ampla acepção. Logo, é o conjunto dos riscos apreciados que determinará a taxa de juros, os encargos e o grau de comprometimento dos patrocinadores com o aporte de garantias. É neste momento que os patrocinadores e financiadores determinam a viabilidade econômico-financeira do financiamento e a capacidade de autossustentação do projeto. Em suma: o projeto deve assegurar um fluxo de caixa estável e íntegro, capaz de arcar com todos os custos e despesas incidentes para a sua estruturação, e, no futuro, para a sua operação.
Caso essas condições não sejam demonstradas, isso não significa que o financiamento não possa ser concedido, mas fatalmente as condições serão bem mais onerosas, o que poderá desestimular a contratação dos recursos.
É justamente aí que entra em cena o PL nº 4/2025. Vamos lá.
Um dos aspectos analisados detidamente pelos financiadores no momento de se determinar a matriz de risco do projeto é o grau de segurança jurídica oferecido pelo país hospedeiro, que contempla não só a estabilidade do marco legal, mas, em contraponto, a existência de condições e requisitos que escapem ao usualmente adotado em outras jurisdições, e com os quais os financiadores e consultores estão acostumados.
A percepção de insegurança jurídica dá lugar a diversas avaliações e discussões com os patrocinadores do projeto. Agregue-se a isso que projetos estruturados implicam a revisão integral pelas agências de classificação de risco. Ao surgir risco dessa natureza, os envolvidos na estruturação buscarão alternativas para a devida mitigação e, a partir de então, definirão os termos e condições aplicáveis e a contrapartida adicional por parte dos patrocinadores.
O Código Civil atual está em vigor há 22 anos. Sob a perspectiva de avaliação do grau de maturidade de um texto legal, 22 anos representam muito pouco, sendo certo, ainda, que a amostra que se teve ao longo desse período está longe de demonstrar solidez e coerência na sua aplicação e construção jurisprudencial. Não se pode olvidar que o Código Civil é o estatuto da cidadania. A alteração de um Código Civil é tarefa que exige que se avaliem as consequências jurídicas e econômicas, haja vista que o impacto existirá sempre, em maior ou menor escala, mas a vida do cidadão será sempre afetada. O Código Civil é a lei fundamental de qualquer jurisdição da família romano-germânica e deve ser preservado como se um cristal fosse, para que se evitem trincas ou fraturas.
Portanto, nessas jurisdições, a análise de viabilidade de projetos e de seu financiamento passa necessariamente pela aferição da solidez e da coerência na aplicação dos dispositivos do Código e da linha de interpretação corrente pelos Tribunais. Desnecessário enfatizar que a imprecisão e a obscuridade de conceitos e de linguagem levam necessariamente a que se acenda um sinal de alerta para aqueles a quem couber proceder às avaliações de risco.
Nesse passo, diversos foram os apontamentos realizados até aqui sobre as atecnias e os abusos de termos e expressões indefinidas empregadas no PL nº 4/2025. Apenas para ilustrar a gravidade da situação, registre-se o aumento de desmesurado nas referências legais à expressão “função social” em comparação ao Código atual[3]. Aumento exponencial também foi verificado nas alusões ao “princípio da boa-fé”, por vezes, inclusive, em nítida confusão entre as acepções objetiva e subjetiva do instituto[4]. Todas essas alterações têm o potencial de impactar a alocação de riscos efetuada pelos agentes econômicos nas mais variadas operações, abrindo-se brecha para uma possível interferência judicial/arbitral sobre a equação econômico-financeira dos contratos.
Já tivemos a oportunidade de afirmar que não analisaríamos, como regra, alterações específicas propostas pelo PL nº 4/2025, tendo em conta que muitos outros já o tem feito de forma bastante completa. Nada obstante, de extremo interesse e relevância para o assunto que ora analisamos é o proposto Artigo 1.134 e seus diversos parágrafos, de modo que nos deteremos brevemente sobre seu texto para ilustrar o argumento que aqui vem sendo desenvolvido.
O aludido Artigo sofreria alterações que comprometem a sua interpretação e aplicação prática[5]. Na versão vigente, o Código Civil estabelece que a sociedade estrangeira, para poder operar no Brasil, depende da outorga de autorização do Poder Executivo. No entanto, essa disposição é complementada por ressalva que permite a participação em sociedade anônima brasileira – o que a doutrina entende ser também aplicável à participação em outros tipos societários[6].
Ocorre, no entanto, que o caput do Artigo 1.134 viria a sofrer alteração no PL de forma que, na versão projetada, a ressalva até então existente seria eliminada. Lembremos que foi a partir dessa ressalva que o mercado de fusões e aquisições (ou M&A, conforme o acrônimo em inglês) conheceu desenvolvimento sem precedentes no Brasil, com o crescimento exponencial de participações de sociedades estrangeiras em sociedades empresárias nacionais, afastando-se de antigos laivos de protecionismo, sem prejuízo de termos convivido por alguns anos com conceitos discutíveis como o da sociedade brasileira de capital nacional.
Ao examinar-se o parágrafo 2º do Artigo 1.134 na versão projetada, pode-se encontrar referência à ressalva. Entretanto, a redação é diversa daquela que foi eliminada. Ainda que o parágrafo 2º preveja a possibilidade de participação da sociedade estrangeira em empresa nacional, a redação projetada parece limitar essa possibilidade a sociedades estrangeiras com autorização para operar no País, haja vista que a letra do parágrafo 2º estatui que, “autorizada”, a sociedade poderá participar do capital de sociedade brasileira.
Essa alteração vem gerando enormes dúvidas quanto à verdadeira intenção do legislador: se a redação é produto de um equívoco, ou se, na realidade, a intenção seria a de criar um passo adicional para que operações de M&A viessem a se materializar. A ser essa a intenção, o Brasil passará a ter duas categorias de sociedades estrangeiras participando do capital de sociedades nacionais: aquelas de quem a legislação atual não exigia autorização para operar no País e aquelas de quem passou a se exigir autorização do Poder Executivo.
As dúvidas e consequências de prevalecer essa linguagem, já que hoje não se pode ler a disposição projetada de forma distinta, são inúmeras e podem afetar, inclusive, programas governamentais visando à participação estrangeira na economia mediante a atração de recursos novos. Por outro lado, há que se lembrar os preceitos de liberdade econômica, acesso e transparência em matéria de mercado e investimentos. Ressalta-se, ainda, que a existência dessa aludida restrição ou pré-condição para participação no capital de sociedades nacionais vai de encontro às regras de adesão do Brasil à OCDE, com efeitos sobre tratados e convenções internacionais em vigor.
Essa dúvida afeta primordialmente a segurança jurídica. Pode-se bem imaginar a reação de investidores estrangeiros a essa alteração por seu conteúdo vetusto. Em suma, há evidente contradição entre tais obstáculos – e o ambiente de incerteza por eles gerado – e os objetivos de atração de investimentos abertamente propalados pelo PL nº 4/2025.
São, portanto, circunstâncias dessa natureza que ameaçam inviabilizar projetos de interesse geral, como é o caso dos projetos de infraestrutura de que tanto nos ressentimos e que afetam a qualidade de vida dos cidadãos.
Há anos o Brasil vem lutando e esforçando-se para atingir o grau de investimento (“investment grade” no jargão do mercado) conferido pelas agências de risco – e que é de tanta importância para os investidores, especialmente os estrangeiros. Essa criação do PL nº 4/2025, que, em verdade, altera a política que vem sendo praticada há algumas décadas no País, se assim mantida, afetará fatalmente o esforço do Brasil e de seu governo para a obtenção do tão almejado grau de investimento.
A criação de obstáculos do tipo daquele inserido no parágrafo 2º do Artigo 1.134 do PL limita a livre circulação de capitais e será um constrangimento adicional para a implementação dos planos governamentais. Essa verdadeira “mudança de lei”, ainda que ato soberano, pode acarretar consequências severas sobre a atração de investimento estrangeiro, com a imposição de restrições significativas ao fluxo de capitais para o país.
Nos dias atuais, e já há algum tempo, é crescente o investimento estrangeiro nas operações do mercado de capitais brasileiro – bolsa e mercado de balcão. Os investidores externos buscam mercados mais atrativos para alocar recursos livres. No entanto, a administração desses recursos foca na solidez do fluxo de caixa do investidor, dando lugar a entradas e saídas constantes de recursos, o que seria incompatível com um sistema de autorizações do Poder Executivo – ainda mais quando já há regras claras de autorização pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e pela própria Brasil, Bolsa, Balcão (B3). Diante disso, forçoso será perguntar como se pretende harmonizar as operações no mercado de capitais por investidores estrangeiros com as novas exigências do Código Civil.
Note-se, por exemplo, que atualmente parcela significativa do investimento estrangeiro se dá por meio de fundos. Nesses casos, fundos domiciliados no exterior seriam caracterizados como sociedade estrangeira para os fins da autorização do Executivo[7]? Estariam livres para deter ações de sociedades brasileiras cotadas na B3 e adquiridas em bolsa através de corretores? E como seria o tratamento dispensado aos American Depositary Receipts (“ADRs”) que são emitidos por bancos americanos e estão lastreados em ações de sociedades brasileiras que podem ser adquiridos na NYSE ou NASDAQ? Tudo isso causa enorme incerteza e perplexidade. A locução “operar no Brasil” sempre foi entendida como consequência de dar seguimento ao objeto social – da sociedade. Ao inserir-se “autorizada” no início do texto do parágrafo 2º do projetado Artigo 1.134, amplia-se o sentido da locução e criam-se todas essas dúvidas.
Como visto, o PL nº 4/2025 ameaça impor verdadeira revolução no campo do direito privado brasileiro. Mais do que uma reforma do Código, há quem defenda estarmos diante de proposta de nova codificação com impactos extremamente negativos para o direito brasileiro. Alterações legislativas dessa magnitude requerem tempo e, acima de tudo, parcimônia por parte do legislador. Frise-se que a posição aqui adotada não é de imutabilidade absoluta da Lei Civil. Muito pelo contrário: a atualização de pontos específicos da codificação é processo natural – quiçá até mesmo desejável – em qualquer sociedade. O que não se pode é, por reforma ou atualização, fazer-se tábula rasa de um sistema que, conquanto jovem, tem se provado resiliente e adaptável às mudanças sociais e econômicas dos tempos. É ao escopo excessivamente amplo e às graves falhas de método presentes no PL que estão dirigidas nossas críticas.
São justamente essas questões, acreditamos, que podem trazer consequências indesejadas sobre a atração de investimento privado no Brasil, para muito além da letra do PL nº 4/2025.
** Advogado, sócio fundador de José Emilio Nunes Pinto Advogados.
*** Advogado em José Emilio Nunes Pinto Advogados.
[1] BANCO MUNDIAL. Opportunities for All. Brazil Policy – Notes 2022, p. 42. Disponível em: https://documents.worldbank.org/pt/publication/documents-reports/documentdetail/. Acesso em 08 de abril de 2025.
[2] BRASIL. Comitê Interministerial de Planejamento da Infraestrutura (CIP-INFRA). Plano Integrado de Longo Prazo da Infraestrutura: 2021 – 2050 / Comitê Interministerial de Planejamento da Infraestrutura (CIP-INFRA). Brasília: Secretaria-Executiva do Comitê/Casa Civil/Presidência da República, 2021.
[3] ARAUJO, Paulo Doron R. de. Função Social do Contrato na Reforma do Código Civil: Passado Tumultuado, Presente Discreto e Futuro Sombrio In: MARTINS-COSTA, Judith; MARTINS, Fábio; CRAVEIRO, Mariana Conti; XAVIER, Rafael Branco (Orgs.). Boletim IDiP-IEC. Vol. XLVI, Canela-São Paulo. Publicado em 12.03.2025, p. 1. Disponível em: https://canalarbitragem.com.br/xlvi-boletimidip-iec/funcao-social-do-contrato/.
[4] MARTINS-COSTA, Judith; MARTINS, Fábio Floriano Melo; CRAVEIRO, Mariana Conti; XAVIER, Rafael Branco. Apresentação. In: MARTINS-COSTA, Judith; MARTINS, Fábio Floriano Melo; CRAVEIRO, Mariana Conti; XAVIER, Rafael Branco (Orgs.). Um Novo Código Civil? Análise crítica do Projeto de Lei 4/2025. Boletins IDIP-IEC & outros textos. Rio de Janeiro: Processo, 2025, p. 6.
[5] PL nº 4/2025, alterações ao Art. 1.134: “A sociedade estrangeira, qualquer que seja o seu objeto, não pode, sem a autorização do poder executivo, funcionar no país. § 1º A autorização se dará nos limites fixados pela Constituição Federal, por este Código e por leis especiais. § 2º Autorizada, a sociedade estrangeira pode ser sócia ou acionista de sociedade brasileira, bem como instalar estabelecimentos subordinados no País. (…)”.
[6] E.g. V Jornadas de Direito Civil, Enunciado nº 486: “[a] sociedade estrangeira pode, independentemente de autorização do Poder Executivo, ser sócia em sociedade de outros tipos além das anônimas”.
[7] Sob a égide da lei brasileira, fundos não se confundem com sociedades. Nos Estados Unidos, por exemplo, não se conhece esse conceito brasileiro de fundos posto que os denominados fundos estrangeiros são, na verdade, LLCs (“limited liability companies”), ou seja, sociedades limitadas sob a lei americana.